sexta-feira, 17 de maio de 2013

Sobre 'Angústia' - romance de Graciliano Ramos / P2






Sobre “Angústia” (1936)
romance de Graciliano Ramos (1892-1953)


É possível ficcionalizar a angústia humana?



p2


Quando Luís da Silva explicita seu desejo pela vizinha, ele entra em novo ciclo de circunstâncias, sua vida social vai mudar, seus recursos financeiros serão avaliados, precisará ter uma imagem pública de homem correto capaz de constituir família. Ele não pode ser mais o solteirão amargurado. Mas ele continua a ser o mesmo. Se irrita com a família da noiva, por exemplo. Enquanto julga e avalia todos os que estão ao redor, os vizinhos, os colegas, os amigos. Todos julgam a todos, sem isenção.

E, ao mesmo tempo, cessa um certo julgamento sobre Marina, a quem o protagonista deseja. Quem ama o fútil, interessante lhe parece, seria uma variação aqui. Pois Luís passa a ver a Marina que ele quer ver, não a Marina tal como ela é – vaidosa, fútil, volúvel. O primeiro julgamento que ele tivera ao vê-la! Ele cria uma outra imagem da mulher desejada,

Aquilo viera pouco a pouco, sem a gente sentir. Naturalmente gastei meses construindo esta Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela. Antes de eu conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa grande quantidade de pedaços de mulher, e às vezes os pedaços não se combinavam bem, davam-me a impressão de que a vizinha estava desconjuntada. […] Foi difícil reunir essas coisas e muitas outras, formar com elas a máquina que ia encontrar-me à noite, ao pé da mangueira. Preguiçosa, ingrata, leviana. Os defeitos, porém, só me pareceram censuráveis no começo das nossas relações. (p. 67)

Logo as disparidades – tal como narradas - entre o noivo e a noiva já evidenciam uma 'tragédia antecipada', assim como é perceptível no romance “São Bernardo” (de 1934) a distância entre o conservador Paulo Honório e Madalena, a professora progressista, que acaba por sucumbir ao autoritarismo (e ciúmes) dele.

Ao desposar Marina, o protagonista precisa ingressar na família, ter novas relações sociais, apresentar-se na condição de pretendente, ser respeitável e agradável, conseguir o consentimento, etc. É toda uma encenação ritual de 'casamento' na qual é preciso atuar. Mas o protagonista não hesita, usa seus recursos de funcionário público para comprar tecidos para as roupas da noiva. Mas dinheiro seria necessário para móveis, utensílios, etc, em suma, toda uma vida em comum. O desejo por Marina justificaria tal mudança de expectativas? Ele não se arrependeria depois? O caso é que ele narra já arrependido – depois dos acontecimentos. A amargura do remorso preenche tudo.

A mente obsessiva do narrador lembra de todos os detalhes da época narrada, das impressões e mal-entendidos – e contrapõe a própria pobreza com a soberba riqueza do rival (logo sabemos quem é o rival...) - para apresentar a sequência de sua decadência – o motivo de sua perturbação (da qual ele se restabelece, como é explicitado na primeira frase do romance...) Ele é incapaz de assimilar a vaidade da noiva, que gasta o dinheiro (ganho com tanto sofrimento e auto-renúncia) e, logo em seguida, a leviandade da mocinha que dá atenção a outro.

Quando ela está mais rendido ao desejo é que o golpe é mais fundo, “um choque tremendo” – ele presencia uma troca de olhares entre o rival (o filho de rico Julião) e a noiva. E o pernóstico falastrão não hesita em manter seu palavrório, sua fala de literato de aparências, sua pose de poeta nacionalista. É quando o protagonista perde a paciência. O que é pior: evidencia-se o ciúme e o rival não sossegará até conquistar a mocinha leviana (que logo pagará o preço da infidelidade...) É todo um jogo trágico de egos que leva a nada – todos perdem, principalmente o protagonista-narrador.

E sempre que o protagonista tem uma derrota em sua vida medíocre o que ele faz? Se lembra logo da vida de seus antepassados, senhores ruralistas, figuras patriarcais que mandavam e desmandavam –e não levavam desaforos. Ou seja, ainda mais derrotado, o narrador se sente em comparação! Ele descende de 'senhores feudais' mas agora reduzido a um mero funcionários público apagado – e enganado. O que os seus antepassados pensariam de tal homem frouxo? Um metido à literato? Desprezo, certamente.

O lado agressivo de Luís da Silva continua, mas adormecido, pois ele se limita a resmungar e ofender, mas não libera os impulsos homicidas, tão soltos na época de seus antepassados, que castigavam negros e caçavam índios. Ele digere a própria ira em volteios e perambulações, a falar consigo mesmo, a falar sozinho pelos caminhos, a registrar o drama que agora podemos ler, atenciosos ou indiferentes ao seu sofrimento,

Passeei à toa pelas ruas, parando em frente às vitrinas, com a tentação de destruir os objetos expostos. As mulheres que ali estavam em pasmaceira, admirando aquelas porcarias, mereciam chicote. Fui ao jornal, li os telegramas. Eram notícias sem importância, mas julguei perceber nelas graves sintomas de decomposição social. (p. 78)


Ele olha o conservadorismo de seus avós e bisavós, com admiração, e aponta a decadência social, onde as mulheres mandam nos destinos dos homens. Olha o quanto os antepassados foram produtivos, desbravadores, os criadores de gado, ou colhendo vastas plantações, e agora ele reduzido a um literato... Ele desconfia das letras, da escrita - É preciso deixar de literatura! (Mesmo quando o que ele faz é isso mesmo: literatura) Sim, “acabe com essa literatura” e “A linguagem escrita é uma safadeza que vocês inventaram para enganar a humanidade, em negócios ou com mentiras.” (p. 79)

Tal como os personagens de Dostoiévski, o protagonista aqui perambula e se envolve com prostitutas, apenas para aumentar seu senso de culpa, ter consciência de seu abismo moral (basta comparar com o homem do subsolo, em “Notas do Subsolo” do autor russo), compartilhar a miséria com o outro, testemunhar que a decadência não abraça apenas o seu caráter amargurado.



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Claro que a mocinha tenta se explicar, mas a amargura do protagonista não aceita explicações – assim como a 'macheza' do Paulo Honório, o sertanejo arrivista. Ela jura inocência e fidelidade – não pode evitar os olhares 'cobiçosos' alheios. É claro que Luís não pode mais ter confiança nela – e muito menos tolerar o rival. Mesmo que as aparências enganem – e ele se deixe ser enganado... Ele não tem mais certezas, não pode mais confiar. Mas hesita em condená-la simplesmente. Afinal, ele tem horror às injustiças. “As aparências mentem. A terra não é redonda? Esta prova da inocência de Marina me pareceu considerável. Tantos indivíduos condenados injustamente neste mundo ruim!” (p. 83)


Ele não confia mais na mulher, mas o drama continua. É uma tragédia anunciada, como sabemos. Ele se entregas às dívidas para poder agradar a noiva – mas sabe que está a cavar a própria cova. A moça não hesita em humilhar o noivo, homem de poucas posses. Ele é vaidosa e, se um noivo mais rico aparecer, ela não vai pensar duas vezes. Ele sabia o tempo todo que andavas na beira do abismo,

Assim, acabei de encalacrar-me. Marina recebeu os panos friamente, insensível ao sacrifício que eu fazia, aquela ingrata. Se eu não tivesse cataratas no entendimento, teria percebido logo que ela estava com a cabeça virada. Virada para um sujeito que podia pagar-lhe camisas de seda, meias de seda. Que valiam os tecidos grosseiros comprados ao velho Abraão, ou Salomão, o tio de Moisés? Nem olhou os pobres trapos, que ficaram em cima de uma cadeira, esquecidos.

Lembro-me perfeitamente da cena muda que houve naquela tarde. Sentada, a cabeça caída para o encosto da cadeira, as pernas cruzadas, os dedos cruzados num joelho, não me via, era como se estivesse só. […] p. 85

Ele sabia ou não? Em dado momento ele confessa ter tido “cataratas no entendimento”, ou seja, uma cegueira apaixonada. Mas lembra de vários mal-entendidos que levou o relacionamento ao fracasso. Só se percebe depois? Ou melhor, ele só lembrou desses 'ruídos' agora ao narrar? A conservar esta “recordação de coisas mesquinhas” (p. 87) Ele sabe o quanto é violento, ainda que reprimido, com sua agressividade ancestral agora atordoada pela vida miserável. “Isto me desapontava, arrancava-me pragas e insultos, que eu engolia com medo de praticar uma violência.” (p. 85) e “Sentia-me atordoado, com um nó na garganta. Se falasse, diria injúrias. Uma ingratidão assim! Não esperava aquilo.” (p. 86) Se ele fosse dono de terras, senhores de escravos, certamente marcaria a mulher à ferro. Ele seria um Paulo Honório, homem que manda e os outros obedecem.

Marina não se decide, não dá um fim ao relacionamento, não entrega logo ao 'pretendente' rico (como ela o julga), e isso irrita ainda mais o protagonista enciumado. Um ser amargurado que conserva recordações mesquinhas, prosaicas, sujas. Nenhum romantismo aqui. Tudo é dessacralizado, sem ideais. Ela mantém as aparências com o protagonista, e depois 'fica de prosa' com o rival. Ela faz 'jogo duplo'? Ou é impressão dele? Quando ela se decidiu pelo moço rico? (O que ela não sabia era que o moço rico não era um pretendente, mas um aproveitador de donzelas...) Enquanto o drama se encaminha para o ato final, Luís da Silva tenta manter-se na rotina. “O meu desejo era desligar-me daquela gente, passar calado, carrancudo, as mãos nos bolsos, o chapéu embicado. Esforçava-me por me dedicar às minhas ocupações cacetes: escrever elogios ao governo, ler romances e arranjar uma opinião sobre eles. Não há maçada pior.” (p. 88)


Sua vida parece a de um preso num labirinto circular, vai e vem e ele se encontra diante dos mesmos muros, cercas e obstáculos. Angústias, insônias, irritações, tudo num cenário quase sombrio de delírio – que se agrava após o ato homicida. Ele vê outras mulheres – na rua ele admira uma mocinha, que julga ser datilógrafa – e pensa que sua vida poderia ser diferente. Ele não poderia encontrar uma 'cara metade'? Mas seria a mocinha também infiel? “Se [ela] não tivesse sumido, é possível que a minha vida fosse hoje diferente. E talvez não fosse. Duas criaturas juntam-se um minuto, mas entre elas há um obstáculo. Provavelmente a datilógrafa dos olhos verdes, enquanto sorria para mim no bonde ou na esquina, pensava numa espécie de Julião Tavares que iria visitá-la horas depois.” (p. 91)

Em seguida, o moço rico passa a frequentar a casa da mocinha, com consentimento da família. Mas nada de casório – é tudo uma encenação. E o moço rico sabe que não será punido – afinal, papai tem bons advogados. Enquanto a família humilde nada pode fazer. E a vida continua com seus dramas, fatos políticos, revoluções, contra-revoluções, ações terroristas, crimes passionais. Tudo passa em quase-delírio e deixa lembranças desencontradas e amargas. Enquanto isso o moço rico passeia com a 'noiva', toma liberdades, financia luxos – tudo em intenção de luxúria.

Enquanto isso, o protagonista pensava na possível datilógrafa, que seria uma solução para seu impasse. Ela seria sua companheira, ajudaria em seu trabalho, em suas redações, apoiaria seu lado artístico, de escritor (e não apenas leitor de obras alheias) – figura de mulher bem diversa daquela de Marina, ingrata, leviana, só corpo e gestos. Ele pensa em mulheres, mas não 'cai na farra', não consegue sufocar a amargura e seguir como se nada o afetasse. Sua mente obsessiva gera mais espectros. Ele não se concentra, os textos não brotam, suas dívidas engordam, tudo ameaça ruir e desabar. Ele está amordaçado.

Naquele momento, porém, não pensava em nada disso. Pensava na miséria antiga e tinha a impressão de que estava amarrado de cordas, sem poder mexer-me. No banco do jardim, com os sapatos gastos, as meias reduzidas a canos, esperava ansiosamente um auxílio qualquer. Estudava as caras, numa agonia. (p. 98)

Ele que vive problemas com seus 'amores', “o amor para mim sempre fora uma coisa dolorosa, complicada e incompleta” (p. 102), enquanto seus antepassados nem pensavam em amor, mas tinham esposa, outras mulheres e seduziam escravas. O que ele quer é se vingar pelas agulhadas do ciúme. O balofo rival, o moço rico, deverá pagar. Ainda mais quando se fica sabendo da gravidez precoce da mocinha. Antes disso, ele até cogitava em aceitar Marina de volta, quando ela descobrisse que tipo de gente era o moço rico. “Tantos caminhos errados na vida! Quem sabe lá escolher com segurança os atalhos menos perigosos? A gente vai, vem, faz curvas e ziguezagues, e dá topadas de arrancar as unhas. A água lava tudo, as feridas mais graves cicatrizam.” (p. 103)


Nem tudo é compreensível, nem tudo é racional. Pelo contrário, o drama todo é irracional. Não daria certo, por que insistir? Só pela paixão? Ele mesmo não compreende, ele se perde em lacunas, suas lembranças são feitas de mosaicos, de tapeçarias desfiadas, numa trama narrada depois do delírio pós-crime (assim como percebemos na narrativa de O Estrangeiro / O Estranho, de Albert Camus, depoimento de um criminoso 'acidental'...), “Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos parecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez.“ (p. 106)

A Marina se diverte, o moço rico aproveita, só o protagonista não tem sossego, anda a esmo, sem ânimo, sem amizades, a criticar só vizinhos, a desperdiçar literatura, pobre escriba incompreendido entre proletários e mendigos, sem acesso aos donos do poder. Não há solidariedade de classe, o narrador é um burocrata, um funcionário público, “parafuso insignificante na máquina do Estado”, um isolado entre as classes sociais, incapaz de aderir a uma revolução, ao mesmo tempo em que serve aos interesses do governo. Entre os homens humilde, de 'várias profissões', ele não sente simpatia, ele afastado pela literatura, pelo serviço estatal, pela amargura. Toda uma cena de vida das classes baixas é aqui retratada.

Sabemos que o autor Graciliano Ramos foi acusado de envolvimento com os grupos comunistas, e sofreu pensa de detenção no regime varguista, relatada em “Memórias do Cárcere” (publicadas postumamente em 1953), mas o narrador Luís da Silva não se sente à vontade com os camaradas esquerdistas, imagina-se julgado. “Está claro que não inspiro confiança aos trabalhadores” e “'Camarada Luís da Silva, antes da revolução você elogiava os políticos safados do interior, os prefeitos ladrões. Onde está o dinheiro que essa gente lhe deu?'” (p. 119)

Deslocado entre dominados e dominadores, o protagonista só consegue mesmo é complicar ainda mais sua miséria, a levar tudo para o drama e o crime. Ele complica a própria vida e a vida alheia, ele se perde em acontecimentos insignificantes que se avolumam e desencadeiam sinistros. Ele anda meio a multidão da cidade e mesquinharias lhe chamam a atenção. O drama de Marina segue paralelamente e intricadamente próximo – as vidas estão desmoronando juntas. Ele é enganado pela mocinha e ela é enganada pelo moço rico – está grávida e abandonada. A miséria só aumenta.


Daqui em diante a queda é vertiginosa. A angústia vem dos fatos e do narrado, onde real e delírio se mesclam, sobram lembranças doloridas, um complexo de culpa, uma sensação de tempo perdido. Marina está grávida de outro homem, um crápula com recursos para se safar, um pernóstico moço rico literato que seduz mocinhas (não tão 'inocentes', pois estão interessadas no dinheiro alheio...), e o que pode o protagonista fazer senão proclamar sua miséria? Daí a angústia que nomeia a obra.

Da angústia ao crime o labirinto é tortuoso, mas inevitável. Drama atraindo drama e só falta a arma e a oportunidade. Uma corda deixada no bolso, uma árvore no caminho, a vítima desatenta. Temos uma árvore do enforcado, temos a doença que se materializa no crime, no horror do cadáver. Mas é um drama anunciado – desde a primeira linha. Sem o drama não haveria motivo para a narrativa – não haveria o delírio que a enredou.

A figura de Julião Tavares concentra o ódio de Luís da Silva. Eis ali o rival, o moço rico, o literato pedante, o homem do discurso, mas sem ação, o filho da Elite, o aproveitador de donzelas, em suma, simboliza tudo o que o protagonista odeia. Não falta ódio para pavimentar a estrada ao crime. O narrador sabia disso – sabe que só falta a oportunidade. É uma vingança o que ele quer – por sua condição de miséria. Alguém deve pagar, então que seja o moço rico, gordo e frívolo. O que impede o crime? O medo, a falta de coragem, a opinião pública, a consciência? Tudo circunstancial, como logo se vê. Deve Julião Tavares ser eliminado? Alguns julgam que sim, outros não. Depende dos interesses. Aqui o interesse do protagonista é o que importa.

Na medida em que obsessão aumenta, a atenção contínua, o apego aos detalhes mesquinhos, a urgência do crime se avoluma, como a exigir uma válvula de escape – a eliminação física do outro. História, revolução, honra, tudo se esfumaça perto da urgência de desinfectar, livrar-se do rival, do homem sem honra, mas que é bem recebido em toda parte, porque tem pai rico. Enquanto isso, Marina vai se livrar do filho não-desejado, se encaminha para uma parteira de periferia, uma 'fazedora de anjos', uma especialista em abortos que atende as moças enganadas e rejeitadas.

O que pode fazer o protagonista? Todas as suas leituras, sua quase-erudição, seu apego aos livros, tudo inútil quando tenta se comunicar – incompreendido por quem está acima e por quem está abaixo. Não pode consolar a mulher enganada que preferiu o outro, não pode evitar que o aborto ocorra. É inútil. E ninguém saberá e a família de marina seguirá em sua pobreza. E outros moços ricos podem aparecer com mais promessas e mais gravidez indesejada.

E quanto ao narrador ele tenta humilhar Marina, mas só consegue se rebaixar. Ela é vítima tanto quanto ele. Ele, a empregada, a família de Marina, o judeu que se julga revolucionário, o mendigo andarilho, o funcionário, o chefe de repartição, o soldado na esquina, todos vítimas da ordem social, onde uns vencem e o restante perde. E Julião Tavares continua livre a seduzir donzelas incautas, as novas clientes para as 'fazedoras de anjos'. Promessas de casamento e riqueza que atraem as mocinhas para a teia de aranha do moço rico pseudo-literato. O que o protagonista pode fazer, senão enforcar o crápula? O problema é que é um canalha simpático, afetuoso, balofo e bem-tratado que se acha no direito de emitir opiniões nacionalistas e escrever versos.

O sedutor é seguido, o protagonista-narrador tem pensamento distorcidos e homicidas, quer vingança e justiça, ideias e rancores se entrelaçam na cena do crime, tudo se precipita, a narração não é racional, é deslocada, desconexa, explicações em excesso que nada explicam, em cenas de antepassados, em cenas de infância, antigos amores, mulheres de outrora, oportunidades perdidas, um catálogo caótico de uma vida mesquinha, uma confissão de anti-herói. No que ele é melhor do que o moço rico? Ele, se fosse rico, também desvirginaria mocinhas inocentes?


Ele anda num semi-delírio, a seguir o moço rico, que tem tudo o que ele não tem - “para que seguir o homem odioso que tinha tudo, mulheres, cigarros?” (p. 187) - e sabe que vai até o fim : o ato criminoso. Seguimos ansiosos e angustiados, entre os impulsos e hesitações, ódios e piedades do obsessivo narrador, até que o corpo esteja suspenso na árvore. O criminoso ainda hesita, “porque era que o miserável não corria, não se livrava dos meus instintos ruins?” e “queria que ele se afastasse de mim” (p. 190), mas é arrastado para a vítima. Ao eliminar o rival, ele se sente forte, elevado acima dos outros mesquinhos. Ele julga fazer justiça, ainda que distorcida. Tudo é narrado em detalhes, excessivamente detalhado, excessivamente explicativo sem elucidar, no entanto. E depois o delírio.

Assim é. Ele pratica o crime e se atordoa, deixa-se ficar ao lado do cadáver, depois perambula pelas ruas, sem rumos. “Vagar a noite inteira, como um judeu errante! Continuei a andar.” (p. 200) Seus passos o conduzem, ele anda em círculos, ele volta ao local do crime, ele se afasta, ele pensa estar senso seguido, tudo é confuso – o que é real? o que é delírio? - ainda mais suas aproximações com os semelhantes, sempre incompletas, até um mendigo o despreza, “O isolamento em companhia de uma pessoa era mais opressivo que a solidão completa.” (p. 202) O narrador imagina os olhares alheios, o julgamento, a condenação, a sua falta de palavras, como se defender?, como se comportar? “Todos os gestos eram culpas graves.” Afinal, tudo desmorona, junto com sua vida mesquinha. “Um rumor enchia-me os ouvidos, burburinho que ia crescendo e me dava a impressão de que a casa, a cidade, tudo, caía lentamente.” (p. 206)

O delírio – narrado e rememorado – ocupa as últimas dez páginas sem interrupções, parágrafos, mas abundante em colagens, mudanças de perspectivas, dialogismo, jogos de palavras, figuras de pensamento, vultos cotidianos, personagens esfumaçadas, tipos urbanos, funcionários, amigos, boêmios, em suma, todo um mosaico de sandices que exteriorizam a angústia que vitima o criminoso. É como se o Raskólnikov (de “Crime e Castigo”, de Dostoiévski) tivesse então voz e expressão para testemunhar seu martírio psicológico. (O mesmo veremos em “O Estrangeiro” / “O Estranho” de Camus) Um martírio que une factual e ficcional onde detalhes são aumentados e a agonia avolumada.

O que sobra então? Verdade ou ficção? Crime ou imaginação? “Aquele silêncio, aqueles rumores comuns, espantavam-me. Seria tudo ilusão?” (p. 209) e “Ia adormecer, perder a consciência. As coisas afastavam-se ou aproximavam-se de maneira absurda, as palavras moviam-se. Não ter consciência.” (p. 214) Temos apenas o relato, o que podemos ler, depois do delírio, quando o protagonista-narrador Luís da Silva se encontra em recuperação. Nenhum narrador onisciente aqui, acima do drama, mas alguém que vivenciou tudo.

Não sabemos se ele, o narrador e criminoso confesso, será condenado pelos outros. (Ele que até espera 'fazer um livro na prisão' – como, aliás, aconteceu com o autor Graciliano Ramos, prisioneiro do fascismo getulista!) Mas já sabemos que ele se condena – na condição de vítima e de criminoso. Sabe que o moço rico nada vale, mas que ele, o funcionário metido a literato, não tem o direito de sair a eliminar os salafrários da vida. O preço a se pagar é muito alto, para ele e para a sociedade. Um homicídio não é uma solução, mas um golpe contra si mesmo.



fonte: RAMOS, Graciliano. Angústia. 57ª ed. Rio, São Paulo: Record, 2004.



abr/mai/13



Leonardo de Magalhaens





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