Sobre
“Angústia” (1936)
romance
de Graciliano Ramos (1892-1953)
É
possível ficcionalizar a angústia humana?
p2
Quando
Luís da Silva explicita seu desejo pela vizinha, ele entra em novo
ciclo de circunstâncias, sua vida social vai mudar, seus recursos
financeiros serão avaliados, precisará ter uma imagem pública de
homem correto capaz de constituir família. Ele não pode ser mais o
solteirão amargurado. Mas ele continua a ser o mesmo. Se irrita com
a família da noiva, por exemplo. Enquanto julga e avalia todos os
que estão ao redor, os vizinhos, os colegas, os amigos. Todos julgam
a todos, sem isenção.
E,
ao mesmo tempo, cessa um certo julgamento sobre Marina, a quem o
protagonista deseja. Quem ama o fútil, interessante lhe parece,
seria uma variação aqui. Pois Luís passa a ver a Marina que ele
quer ver, não a Marina tal como ela é – vaidosa, fútil, volúvel.
O primeiro julgamento que ele tivera ao vê-la! Ele cria uma outra
imagem da mulher desejada,
Aquilo viera pouco a pouco, sem a
gente sentir. Naturalmente gastei meses construindo esta Marina que
vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com
ela. Antes de eu conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me
aparecia dividida numa grande quantidade de pedaços de mulher, e às
vezes os pedaços não se combinavam bem, davam-me a impressão de
que a vizinha estava desconjuntada. […] Foi difícil reunir essas
coisas e muitas outras, formar com elas a máquina que ia
encontrar-me à noite, ao pé da mangueira. Preguiçosa, ingrata,
leviana. Os defeitos, porém, só me pareceram censuráveis no começo
das nossas relações. (p. 67)
Logo
as disparidades – tal como narradas - entre o noivo e a noiva já
evidenciam uma 'tragédia antecipada', assim como é perceptível no
romance “São Bernardo” (de 1934) a distância entre o
conservador Paulo Honório e Madalena, a professora progressista, que
acaba por sucumbir ao autoritarismo (e ciúmes) dele.
Ao
desposar Marina, o protagonista precisa ingressar na família, ter
novas relações sociais, apresentar-se na condição de pretendente,
ser respeitável e agradável, conseguir o consentimento, etc. É
toda uma encenação ritual de 'casamento' na qual é preciso atuar.
Mas o protagonista não hesita, usa seus recursos de funcionário
público para comprar tecidos para as roupas da noiva. Mas dinheiro
seria necessário para móveis, utensílios, etc, em suma, toda uma
vida em comum. O desejo por Marina justificaria tal mudança de
expectativas? Ele não se arrependeria depois? O caso é que ele
narra já arrependido – depois dos acontecimentos. A amargura do
remorso preenche tudo.
A
mente obsessiva do narrador lembra de todos os detalhes da época
narrada, das impressões e mal-entendidos – e contrapõe a própria
pobreza com a soberba riqueza do rival (logo sabemos quem é o
rival...) - para apresentar a sequência de sua decadência – o
motivo de sua perturbação (da qual ele se restabelece, como é
explicitado na primeira frase do romance...) Ele é incapaz de
assimilar a vaidade da noiva, que gasta o dinheiro (ganho com tanto
sofrimento e auto-renúncia) e, logo em seguida, a leviandade da
mocinha que dá atenção a outro.
Quando
ela está mais rendido ao desejo é que o golpe é mais fundo, “um
choque tremendo” – ele presencia uma troca de olhares entre o
rival (o filho de rico Julião) e a noiva. E o pernóstico falastrão
não hesita em manter seu palavrório, sua fala de literato de
aparências, sua pose de poeta nacionalista. É quando o protagonista
perde a paciência. O que é pior: evidencia-se o ciúme e o rival
não sossegará até conquistar a mocinha leviana (que logo pagará o
preço da infidelidade...) É todo um jogo trágico de egos que leva
a nada – todos perdem, principalmente o protagonista-narrador.
E
sempre que o protagonista tem uma derrota em sua vida medíocre o que
ele faz? Se lembra logo da vida de seus antepassados, senhores
ruralistas, figuras patriarcais que mandavam e desmandavam –e não
levavam desaforos. Ou seja, ainda mais derrotado, o narrador se sente
em comparação! Ele descende de 'senhores feudais' mas agora
reduzido a um mero funcionários público apagado – e enganado. O
que os seus antepassados pensariam de tal homem frouxo? Um metido à
literato? Desprezo, certamente.
O
lado agressivo de Luís da Silva continua, mas adormecido, pois ele
se limita a resmungar e ofender, mas não libera os impulsos
homicidas, tão soltos na época de seus antepassados, que castigavam
negros e caçavam índios. Ele digere a própria ira em volteios e
perambulações, a falar consigo mesmo, a falar sozinho pelos
caminhos, a registrar o drama que agora podemos ler, atenciosos ou
indiferentes ao seu sofrimento,
Passeei à toa pelas ruas, parando em
frente às vitrinas, com a tentação de destruir os objetos
expostos. As mulheres que ali estavam em pasmaceira, admirando
aquelas porcarias, mereciam chicote. Fui ao jornal, li os telegramas.
Eram notícias sem importância, mas julguei perceber nelas graves
sintomas de decomposição social. (p. 78)
Ele
olha o conservadorismo de seus avós e bisavós, com admiração, e
aponta a decadência social, onde as mulheres mandam nos destinos dos
homens. Olha o quanto os antepassados foram produtivos,
desbravadores, os criadores de gado, ou colhendo vastas plantações,
e agora ele reduzido a um literato... Ele desconfia das letras, da
escrita - É preciso deixar de literatura! (Mesmo quando o que ele
faz é isso mesmo: literatura) Sim, “acabe com essa literatura”
e “A linguagem escrita é uma safadeza que vocês inventaram
para enganar a humanidade, em negócios ou com mentiras.” (p.
79)
Tal
como os personagens de Dostoiévski, o protagonista aqui perambula e
se envolve com prostitutas, apenas para aumentar seu senso de culpa,
ter consciência de seu abismo moral (basta comparar com o homem do
subsolo, em “Notas do Subsolo” do autor russo),
compartilhar a miséria com o outro, testemunhar que a decadência
não abraça apenas o seu caráter amargurado.
mais
sobre Notas do Subsolo
em
Claro
que a mocinha tenta se explicar, mas a amargura do protagonista não
aceita explicações – assim como a 'macheza' do Paulo Honório, o
sertanejo arrivista. Ela jura inocência e fidelidade – não pode
evitar os olhares 'cobiçosos' alheios. É claro que Luís não pode
mais ter confiança nela – e muito menos tolerar o rival. Mesmo que
as aparências enganem – e ele se deixe ser enganado... Ele não
tem mais certezas, não pode mais confiar. Mas hesita em condená-la
simplesmente. Afinal, ele tem horror às injustiças. “As
aparências mentem. A terra não é redonda? Esta prova da inocência
de Marina me pareceu considerável. Tantos indivíduos condenados
injustamente neste mundo ruim!” (p. 83)
Ele
não confia mais na mulher, mas o drama continua. É uma tragédia
anunciada, como sabemos. Ele se entregas às dívidas para poder
agradar a noiva – mas sabe que está a cavar a própria cova. A
moça não hesita em humilhar o noivo, homem de poucas posses. Ele é
vaidosa e, se um noivo mais rico aparecer, ela não vai pensar duas
vezes. Ele sabia o tempo todo que andavas na beira do abismo,
Assim, acabei de encalacrar-me. Marina
recebeu os panos friamente, insensível ao sacrifício que eu fazia,
aquela ingrata. Se eu não tivesse cataratas no entendimento, teria
percebido logo que ela estava com a cabeça virada. Virada para um
sujeito que podia pagar-lhe camisas de seda, meias de seda. Que
valiam os tecidos grosseiros comprados ao velho Abraão, ou Salomão,
o tio de Moisés? Nem olhou os pobres trapos, que ficaram em cima de
uma cadeira, esquecidos.
Lembro-me perfeitamente da cena muda
que houve naquela tarde. Sentada, a cabeça caída para o encosto da
cadeira, as pernas cruzadas, os dedos cruzados num joelho, não me
via, era como se estivesse só. […] p. 85
Ele
sabia ou não? Em dado momento ele confessa ter tido “cataratas
no entendimento”, ou seja, uma cegueira apaixonada. Mas lembra
de vários mal-entendidos que levou o relacionamento ao fracasso. Só
se percebe depois? Ou melhor, ele só lembrou desses 'ruídos' agora
ao narrar? A conservar esta “recordação de coisas mesquinhas”
(p. 87) Ele sabe o quanto é violento, ainda que reprimido, com sua
agressividade ancestral agora atordoada pela vida miserável. “Isto
me desapontava, arrancava-me pragas e insultos, que eu engolia com
medo de praticar uma violência.” (p. 85) e “Sentia-me
atordoado, com um nó na garganta. Se falasse, diria injúrias. Uma
ingratidão assim! Não esperava aquilo.” (p. 86) Se ele fosse dono
de terras, senhores de escravos, certamente marcaria a mulher à
ferro. Ele seria um Paulo Honório, homem que manda e os outros
obedecem.
Marina
não se decide, não dá um fim ao relacionamento, não entrega logo
ao 'pretendente' rico (como ela o julga), e isso irrita ainda mais o
protagonista enciumado. Um ser amargurado que conserva recordações
mesquinhas, prosaicas, sujas. Nenhum romantismo aqui. Tudo é
dessacralizado, sem ideais. Ela mantém as aparências com o
protagonista, e depois 'fica de prosa' com o rival. Ela faz 'jogo
duplo'? Ou é impressão dele? Quando ela se decidiu pelo moço rico?
(O que ela não sabia era que o moço rico não era um pretendente,
mas um aproveitador de donzelas...) Enquanto o drama se encaminha
para o ato final, Luís da Silva tenta manter-se na rotina. “O
meu desejo era desligar-me daquela gente, passar calado, carrancudo,
as mãos nos bolsos, o chapéu embicado. Esforçava-me por me dedicar
às minhas ocupações cacetes: escrever elogios ao governo, ler
romances e arranjar uma opinião sobre eles. Não há maçada pior.”
(p. 88)
Sua
vida parece a de um preso num labirinto circular, vai e vem e ele se
encontra diante dos mesmos muros, cercas e obstáculos. Angústias,
insônias, irritações, tudo num cenário quase sombrio de delírio
– que se agrava após o ato homicida. Ele vê outras mulheres –
na rua ele admira uma mocinha, que julga ser datilógrafa – e pensa
que sua vida poderia ser diferente. Ele não poderia encontrar uma
'cara metade'? Mas seria a mocinha também infiel? “Se [ela]
não tivesse sumido, é possível que a minha vida fosse hoje
diferente. E talvez não fosse. Duas criaturas juntam-se um minuto,
mas entre elas há um obstáculo. Provavelmente a datilógrafa dos
olhos verdes, enquanto sorria para mim no bonde ou na esquina,
pensava numa espécie de Julião Tavares que iria visitá-la horas
depois.” (p. 91)
Em
seguida, o moço rico passa a frequentar a casa da mocinha, com
consentimento da família. Mas nada de casório – é tudo uma
encenação. E o moço rico sabe que não será punido – afinal,
papai tem bons advogados. Enquanto a família humilde nada pode
fazer. E a vida continua com seus dramas, fatos políticos,
revoluções, contra-revoluções, ações terroristas, crimes
passionais. Tudo passa em quase-delírio e deixa lembranças
desencontradas e amargas. Enquanto isso o moço rico passeia com a
'noiva', toma liberdades, financia luxos – tudo em intenção de
luxúria.
Enquanto
isso, o protagonista pensava na possível datilógrafa, que seria uma
solução para seu impasse. Ela seria sua companheira, ajudaria em
seu trabalho, em suas redações, apoiaria seu lado artístico, de
escritor (e não apenas leitor de obras alheias) – figura de mulher
bem diversa daquela de Marina, ingrata, leviana, só corpo e gestos.
Ele pensa em mulheres, mas não 'cai na farra', não consegue sufocar
a amargura e seguir como se nada o afetasse. Sua mente obsessiva gera
mais espectros. Ele não se concentra, os textos não brotam, suas
dívidas engordam, tudo ameaça ruir e desabar. Ele está amordaçado.
Naquele momento, porém, não pensava
em nada disso. Pensava na miséria antiga e tinha a impressão de que
estava amarrado de cordas, sem poder mexer-me. No banco do jardim,
com os sapatos gastos, as meias reduzidas a canos, esperava
ansiosamente um auxílio qualquer. Estudava as caras, numa agonia.
(p. 98)
Ele
que vive problemas com seus 'amores', “o amor para mim sempre
fora uma coisa dolorosa, complicada e incompleta” (p. 102),
enquanto seus antepassados nem pensavam em amor, mas tinham esposa,
outras mulheres e seduziam escravas. O que ele quer é se vingar
pelas agulhadas do ciúme. O balofo rival, o moço rico, deverá
pagar. Ainda mais quando se fica sabendo da gravidez precoce da
mocinha. Antes disso, ele até cogitava em aceitar Marina de volta,
quando ela descobrisse que tipo de gente era o moço rico. “Tantos
caminhos errados na vida! Quem sabe lá escolher com segurança os
atalhos menos perigosos? A gente vai, vem, faz curvas e ziguezagues,
e dá topadas de arrancar as unhas. A água lava tudo, as feridas
mais graves cicatrizam.” (p. 103)
Nem
tudo é compreensível, nem tudo é racional. Pelo contrário, o
drama todo é irracional. Não daria certo, por que insistir? Só
pela paixão? Ele mesmo não compreende, ele se perde em lacunas,
suas lembranças são feitas de mosaicos, de tapeçarias desfiadas,
numa trama narrada depois do delírio pós-crime (assim como
percebemos na narrativa de O Estrangeiro / O Estranho, de
Albert Camus, depoimento de um criminoso 'acidental'...), “Há
nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas
insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas
ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra
pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos parecem
inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde
transitei perdem a nitidez.“ (p. 106)
A
Marina se diverte, o moço rico aproveita, só o protagonista não
tem sossego, anda a esmo, sem ânimo, sem amizades, a criticar só
vizinhos, a desperdiçar literatura, pobre escriba incompreendido
entre proletários e mendigos, sem acesso aos donos do poder. Não há
solidariedade de classe, o narrador é um burocrata, um funcionário
público, “parafuso insignificante na máquina do Estado”,
um isolado entre as classes sociais, incapaz de aderir a uma
revolução, ao mesmo tempo em que serve aos interesses do governo.
Entre os homens humilde, de 'várias profissões', ele não sente
simpatia, ele afastado pela literatura, pelo serviço estatal, pela
amargura. Toda uma cena de vida das classes baixas é aqui retratada.
Sabemos
que o autor Graciliano Ramos foi acusado de envolvimento com os
grupos comunistas, e sofreu pensa de detenção no regime varguista,
relatada em “Memórias do Cárcere” (publicadas
postumamente em 1953), mas o narrador Luís da Silva não se sente à
vontade com os camaradas esquerdistas, imagina-se julgado. “Está
claro que não inspiro confiança aos trabalhadores” e
“'Camarada Luís da Silva, antes da revolução você elogiava
os políticos safados do interior, os prefeitos ladrões. Onde está
o dinheiro que essa gente lhe deu?'” (p. 119)
Deslocado
entre dominados e dominadores, o protagonista só consegue mesmo é
complicar ainda mais sua miséria, a levar tudo para o drama e o
crime. Ele complica a própria vida e a vida alheia, ele se perde em
acontecimentos insignificantes que se avolumam e desencadeiam
sinistros. Ele anda meio a multidão da cidade e mesquinharias lhe
chamam a atenção. O drama de Marina segue paralelamente e
intricadamente próximo – as vidas estão desmoronando juntas. Ele
é enganado pela mocinha e ela é enganada pelo moço rico – está
grávida e abandonada. A miséria só aumenta.
Daqui
em diante a queda é vertiginosa. A angústia vem dos fatos e do
narrado, onde real e delírio se mesclam, sobram lembranças
doloridas, um complexo de culpa, uma sensação de tempo perdido.
Marina está grávida de outro homem, um crápula com recursos para
se safar, um pernóstico moço rico literato que seduz mocinhas (não
tão 'inocentes', pois estão interessadas no dinheiro alheio...), e
o que pode o protagonista fazer senão proclamar sua miséria? Daí a
angústia que nomeia a obra.
Da
angústia ao crime o labirinto é tortuoso, mas inevitável. Drama
atraindo drama e só falta a arma e a oportunidade. Uma corda deixada
no bolso, uma árvore no caminho, a vítima desatenta. Temos uma
árvore do enforcado, temos a doença que se materializa no crime, no
horror do cadáver. Mas é um drama anunciado – desde a primeira
linha. Sem o drama não haveria motivo para a narrativa – não
haveria o delírio que a enredou.
A
figura de Julião Tavares concentra o ódio de Luís da Silva. Eis
ali o rival, o moço rico, o literato pedante, o homem do discurso,
mas sem ação, o filho da Elite, o aproveitador de donzelas, em
suma, simboliza tudo o que o protagonista odeia. Não falta ódio
para pavimentar a estrada ao crime. O narrador sabia disso – sabe
que só falta a oportunidade. É uma vingança o que ele quer – por
sua condição de miséria. Alguém deve pagar, então que seja o
moço rico, gordo e frívolo. O que impede o crime? O medo, a falta
de coragem, a opinião pública, a consciência? Tudo circunstancial,
como logo se vê. Deve Julião Tavares ser eliminado? Alguns julgam
que sim, outros não. Depende dos interesses. Aqui o interesse do
protagonista é o que importa.
Na
medida em que obsessão aumenta, a atenção contínua, o apego aos
detalhes mesquinhos, a urgência do crime se avoluma, como a exigir
uma válvula de escape – a eliminação física do outro. História,
revolução, honra, tudo se esfumaça perto da urgência de
desinfectar, livrar-se do rival, do homem sem honra, mas que é bem
recebido em toda parte, porque tem pai rico. Enquanto isso, Marina
vai se livrar do filho não-desejado, se encaminha para uma parteira
de periferia, uma 'fazedora de anjos', uma especialista em abortos
que atende as moças enganadas e rejeitadas.
O
que pode fazer o protagonista? Todas as suas leituras, sua
quase-erudição, seu apego aos livros, tudo inútil quando tenta se
comunicar – incompreendido por quem está acima e por quem está
abaixo. Não pode consolar a mulher enganada que preferiu o outro,
não pode evitar que o aborto ocorra. É inútil. E ninguém saberá
e a família de marina seguirá em sua pobreza. E outros moços ricos
podem aparecer com mais promessas e mais gravidez indesejada.
E
quanto ao narrador ele tenta humilhar Marina, mas só consegue se
rebaixar. Ela é vítima tanto quanto ele. Ele, a empregada, a
família de Marina, o judeu que se julga revolucionário, o mendigo
andarilho, o funcionário, o chefe de repartição, o soldado na
esquina, todos vítimas da ordem social, onde uns vencem e o restante
perde. E Julião Tavares continua livre a seduzir donzelas incautas,
as novas clientes para as 'fazedoras de anjos'. Promessas de
casamento e riqueza que atraem as mocinhas para a teia de aranha do
moço rico pseudo-literato. O que o protagonista pode fazer, senão
enforcar o crápula? O problema é que é um canalha simpático,
afetuoso, balofo e bem-tratado que se acha no direito de emitir
opiniões nacionalistas e escrever versos.
O
sedutor é seguido, o protagonista-narrador tem pensamento
distorcidos e homicidas, quer vingança e justiça, ideias e rancores
se entrelaçam na cena do crime, tudo se precipita, a narração não
é racional, é deslocada, desconexa, explicações em excesso que
nada explicam, em cenas de antepassados, em cenas de infância,
antigos amores, mulheres de outrora, oportunidades perdidas, um
catálogo caótico de uma vida mesquinha, uma confissão de
anti-herói. No que ele é melhor do que o moço rico? Ele, se fosse
rico, também desvirginaria mocinhas inocentes?
Ele
anda num semi-delírio, a seguir o moço rico, que tem tudo o que ele
não tem - “para que seguir o homem odioso que tinha tudo,
mulheres, cigarros?” (p. 187) - e sabe que vai até o fim : o
ato criminoso. Seguimos ansiosos e angustiados, entre os impulsos e
hesitações, ódios e piedades do obsessivo narrador, até que o
corpo esteja suspenso na árvore. O criminoso ainda hesita, “porque
era que o miserável não corria, não se livrava dos meus instintos
ruins?” e “queria
que ele se afastasse de mim” (p. 190), mas é arrastado para a
vítima. Ao eliminar o rival, ele se sente forte, elevado acima dos
outros mesquinhos. Ele julga fazer justiça, ainda que distorcida.
Tudo é narrado em detalhes, excessivamente detalhado, excessivamente
explicativo sem elucidar, no entanto. E depois o delírio.
Assim
é. Ele pratica o crime e se atordoa, deixa-se ficar ao lado do
cadáver, depois perambula pelas ruas, sem rumos. “Vagar a noite
inteira, como um judeu errante! Continuei a andar.” (p. 200)
Seus passos o conduzem, ele anda em círculos, ele volta ao local do
crime, ele se afasta, ele pensa estar senso seguido, tudo é confuso
– o que é real? o que é delírio? - ainda mais suas aproximações
com os semelhantes, sempre incompletas, até um mendigo o despreza,
“O isolamento em companhia de uma pessoa era mais opressivo que
a solidão completa.” (p. 202) O narrador imagina os olhares
alheios, o julgamento, a condenação, a sua falta de palavras, como
se defender?, como se comportar? “Todos os gestos eram culpas
graves.” Afinal, tudo desmorona, junto com sua vida mesquinha. “Um
rumor enchia-me os ouvidos, burburinho que ia crescendo e me dava a
impressão de que a casa, a cidade, tudo, caía lentamente.”
(p. 206)
O
delírio – narrado e rememorado – ocupa as últimas dez páginas
sem interrupções, parágrafos, mas abundante em colagens, mudanças
de perspectivas, dialogismo, jogos de palavras, figuras de
pensamento, vultos cotidianos, personagens esfumaçadas, tipos
urbanos, funcionários, amigos, boêmios, em suma, todo um mosaico de
sandices que exteriorizam a angústia que vitima o criminoso. É como
se o Raskólnikov (de “Crime e Castigo”, de Dostoiévski)
tivesse então voz e expressão para testemunhar seu martírio
psicológico. (O mesmo veremos em “O Estrangeiro” / “O
Estranho” de Camus) Um martírio que une factual e ficcional
onde detalhes são aumentados e a agonia avolumada.
O
que sobra então? Verdade ou ficção? Crime ou imaginação? “Aquele
silêncio, aqueles rumores comuns, espantavam-me. Seria tudo ilusão?”
(p. 209) e “Ia adormecer, perder a consciência. As coisas
afastavam-se ou aproximavam-se de maneira absurda, as palavras
moviam-se. Não ter consciência.” (p. 214) Temos apenas o
relato, o que podemos ler, depois do delírio, quando o
protagonista-narrador Luís da Silva se encontra em recuperação.
Nenhum narrador onisciente aqui, acima do drama, mas alguém que
vivenciou tudo.
Não
sabemos se ele, o narrador e criminoso confesso, será condenado
pelos outros. (Ele que até espera 'fazer um livro na prisão' –
como, aliás, aconteceu com o autor Graciliano Ramos, prisioneiro do
fascismo getulista!) Mas já sabemos que ele se condena – na
condição de vítima e de criminoso. Sabe que o moço rico nada
vale, mas que ele, o funcionário metido a literato, não tem o
direito de sair a eliminar os salafrários da vida. O preço a se
pagar é muito alto, para ele e para a sociedade. Um homicídio não
é uma solução, mas um golpe contra si mesmo.
fonte:
RAMOS, Graciliano. Angústia. 57ª ed. Rio, São Paulo:
Record, 2004.
abr/mai/13
Leonardo
de Magalhaens
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