sexta-feira, 10 de maio de 2013

sobre Angústia - romance de Graciliano Ramos / P1






Sobre “Angústia” (1936)
romance de Graciliano Ramos (1892-1953)


É possível ficcionalizar a angústia humana?


Continuamos em nossa série de obras que ficcionalizam o desconforto individual, quando o ser se debate contra forças que não pode controlar. São narrações em 1ª pessoa que mostram o mal-estar do eu diante do coletivo, do cidadão nas entranhas da sociedade, onde uma voz se confessa e, ao mesmo tempo, nos condena.

Desde o 'homem do subsolo', na obra do autor russo Dostoiévski, passando pelo literato faminto de Hamsun, até o nauseado Roquetin, percebemos a tentativa de expressar o desconforto humano, o que faz que ações irracionais brotem apenas para torturar o protagonista, vítima e carrasco de si mesmo. Afinal, dispor-se contra a sociedade é prejudicar-se, pois aqueles que mandam sabem ser carismáticos e ocuparem os melhores cargos e postos. Os misantropos sofrem nos arquivos e nas sarjetas. Seres plenos de consciência e capazes de longas observações e confissões, os sociopatas nos despertam a curiosidade. Como conseguem acumular tanto sofrer?

Vários protagonistas-narradores desfilam diante de nossos olhos, todos problemáticos e fascinantes, nunca satisfeitos, sempre irônicos e desafiantes. Literatos ou não, inocentes ou não, todos têm algo a dizer – daí termos as narrativas. O que não é diferente com o amargo Luís da Silva na obra “Angústia” de Graciliano Ramos, um texto pesado e ácido, que golpeia o leitor, sem frescuras. Com seu estilo seco e direto, sem desperdícios e floreamentos, o autor alagoano quer tornar o leitor um cúmplice do drama narrado. Seu desejo é que a obra possa revirar vísceras e expor as hipocrisias cotidianas, as relações de poder, a dialética dominador-dominado, sejam entre patrões e proletários, ou entre homens e mulheres.


Há toda uma força de ímpeto e flagelação em Angústia, que, logo lembramos, foi finalizada durante a penosa detenção do autor nas prisões do fascismo varguista (como se percebe no testemunho “Memórias do Cárcere”, publicado postumamente em 1953). Certamente devido a uma narração em 1ª pessoa - assim já notamos em obras tais como “Notas do Subsolo”, “Fome”, “Pergunte ao Pó”, dentre outras - com o protagonista e narrador Luís da Silva, a figura do intelectual nordestino com ancestrais ruralistas, sempre em dilemas morais e existenciais, entre o amargor e a consciência.

Na obra, ele narra fatos já ocorridos , cerca de 30 dias antes, e rememora o passado, os tempos dos antepassados, a vida semi-feudal do sertão, os contrapontos na cidade, centro urbano de novas relações sociais, anonimato e decadência de costumes. No estilo, temos frases curtas, repetitivas, a compor um labirinto de obsessão, ao reafirmar para melhor negar, ao confessar para melhor se culpar, o narrador não oculta sua amargura com o mundo que o cerca, com a hipocrisia e dupla-face dos seus contemporâneos.


Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios. (p. 7)


E “visões” estas que ocupam as últimas dez páginas, com toques surrealistas, cubistas, mesclando factual e ficcional, delírios e sentimento de culpa, ruminações de desilusões, uma vida inteira desperdiçada, sem reconhecimento e sem a mulher amada. O que realmente aconteceu que o afetou tanto ? “Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.” (p. 7)

Um ressentimento contra os vagabundos, os políticos e os literatos. Quem são aqueles que escrevem? Quem são aqueles que exibem seus nomes em capas de livros? São eles os mercenários das palavras, os prostituídos da arte? “E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama.” (p. 7)

A obsessão doentia por um tal Julião Tavares, sujeito intrometido, de posses, que anda em rodas literárias e farejando donzelas incautas. O que liga o narrador ao antipático Tavares? É certamente um dos eixos de leitura – até o ápice, onde os destinos de ambos estará ligado. Outra obsessão: uma mocinha caprichosa chamada Marina. Nome que deixa o narrador marulhado, com enjoo em terra firme. O que terá feito a moça para deixá-lo tão angustiado?

Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formas combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. (p. 8)

Ele confessa ser incapaz de escrever, de se concentrar num artigo, de esquecer seus traumas, fontes de angústia e rancor, “O artigo que me pediram afasta-se do papel. É verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido.” (p. 8) E mais “Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, [...]” (p. 9)

Preso a uma vida de rotinas e horários, sem paixão e sem realizações, o funcionário público Luís da Silva deixa fermentar em si um denso bolor de amargura, de ressentimento e desejos de destruição, assim mais propenso ao ‘princípio de morte’, em termos freudianos. “O que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Uma viagem, embriaguez, suicídio...Penso no meu cadáver, magríssimo, com os dentes arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem casca, os dedos pretos do cigarro cruzados no peito fundo.” (p. 9)

Ele tenta se libertar seus traumas e obsessões, mas é inútil, sua mente de intelectual foi atropelada por sofrimento e atos irracionais, ele mesmo confessa, “Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, sem vergonha, e com elas a lembrança de Julião Tavares. Intolerável. Esforço-me por desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato. Tento distrair-me olhando a rua.” (p. 9) Em alguns momentos, o narrador, em sua reclusão, lembra o ‘homem do subsolo’ do livro de Dostoiévski, recluso em seu subterrâneo, insociável e amargurado, confessando suas mesquinharias.


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       É o estado de quase-alienação do narrador-protagonista diante das vicissitudes que provocam um desejo de evasão, “Distraio-me, esqueço Marina, que algumas ruas apenas separam de mim. Afasto-me outra vez da realidade, mas agora não vejo os navios, a recordação da cidade grande desapareceu completamente.” (p. 11)

Recordações da infância, da vida rural, com a tradicional família patriarcal em decadência, o fim do coronelismo, como vimos em obras de José Lins do Rêgo, Menino de Engenho e Fogo Morto, com a criança perdendo as referências do avô dominador e da avó submissa, resignada. Uma velha sociedade que convivera com a escravatura, que sobrevivera na exploração do trabalho braçal, da miséria dos camponeses, na mineração dos recursos naturais, desbravando sertão, a derrubar as matas para ampliar as plantações e para as pastagens do gado. Toda uma sociedade de modelo feudal que desaparece a partir do ingresso da sociedade brasileira no industrialismo, com o êxodo rural e o inchaço das cidades.

Ele anda na cidade, ambiente urbano, meio ao alegado ‘progresso’, mas ainda convive com imagens da infância, da vida no campo, dos gritos dos coronéis insultando os negros escravos, cenas da amplidão da casa-grande, da vastidão das plantações, em comparação com a vida mesquinha, num barraco, com um mísero quintal. É a decadência – um neto de latifundiário reduzido a funcionário público. O mesmo drama de um amanuense Belmiro, perdido nas ruas da provinciana Belo Horizonte, em obra homônima do autor mineiro Cyro dos Anjos.

Digamos que o protagonista é assombrado pelo seu passado, por seus ancestrais ruralistas, com severos comportamentos feudais, como ele mesmo confessa, “os defuntos antigos me importunam.” (p. 14) Ele vive com os próprios problemas e com aqueles dos antepassados, e dos semelhantes, daí seu discurso muitas vezes tender para um tom de denúncia e solidariedade, uma tendência esquerdista, mas sem ser panfletária, sem dogmatismos.

Lembra da morte do pai, que é a perda de um ente e de toda uma época, um sepultar de um drama familiar, “Estava espantado, imaginando a vida que ia suportar, sozinho neste mundo. Sentia frio e pena de mim mesmo. A casa era dos outros, o defunto era dos outros. Eu estava ali como um bichinho abandonado, encolhido na prensa que apodrecia.” (p. 17) e “que ia ser de mim, solto no mundo?” (p. 18) A morte do pai marca a perda dos últimos bens, o pagamento das dívidas, o êxodo para a cidade, a luta pela sobrevivência. O jovem está sozinho diante das adversidades e das hipocrisias.


     Entro no quarto, procuro um refúgio no passado. Mas não me posso esconder inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranquilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou.” (p. 20) Os trechos de auto-observação explicitam o grau de consciência do narrador, que sabe se situar entre o que ele pensa que é e o que pensam que ele seja, uma questão de introversão em contraponto ao papel social, enquanto ele anda pelas ruas, distraído, se perde e se indaga,

Assaltam-me dúvidas idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer. Mexo-me, atravesso a rua a grandes pernadas. (p. 22)


Para Luís da Silva é muito difícil o convívio social, seja com os colegas burocratas, seja com os amigos literatos, todos à deriva na cidade, forçados à hipocrisia na busca de seus interesses de reconhecimento e aumento de renda, dados à vaidade de uma fama ou status social. Outras pessoas, na convivência forçada da cidade, só mostram indiferença ou arrogância. Dramas pessoais, dramas coletivos se entrelaçam. Dívidas, falências, crise de produção, êxodo rural, guerras, perseguição aos judeus, tudo se mistura.

Ele sabe que a infância não pode ser recuperada, assim como a vida rural dos antepassados. o que sofreram na aspereza dos sertões? O quanto ele se lembra, e o quanto imagina? Aqui o ficcional se mescla ao factual, “Procuro recordar-me dos verões sertanejos, que duram anos. A lembrança chega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances. Dificilmente poderia distinguir a realidade da ficção. Penso em coisas percebidas vagamente.” (p. 28)

E quando a mocinha Marina entra no drama do protagonista? Quando ele está em sua vida de tédio, convivendo com amigos cotidianos e uma empregada meio demente, lendo romances medíocres (“os livros idiotas animam a gente. Se não fossem eles, nem sei quem se atreveria a começar.” p. 32), ele percebe um vulto feminino no quintal vizinho, certamente uma moradora nova. O narrador tenta se concentrar, mas a atração do vulto é mais forte, “E mergulhei na leitura, desatento, está claro, porque o livro não valia nada. Virava a página muitas vezes, e quando isto acontecia, olhava, fingindo desinteresse, a mulher dos cabelos de fogo. Tinha as unhas pintadas.” (p. 33)

Qual a relação do modesto Luís da Silva com as mulheres? Além de amargo, é ele um cínico, um canalha, um misógino? Antes, se declara tímido, ao sentir-se observado pela jovem vizinha, “Encabulei. Sou tímido: quando me vejo diante de senhoras, emburro, digo besteiras. Trinta e cinco anos, funcionário público, homem de ocupações marcadas pelo regulamento. O estado não me paga para eu olhar as pernas das garotas. E aquilo era uma garota. Além de tudo sei que sou feio. Perfeitamente, tenho espelho em casa.” (p. 34)


Ele sempre tão alheio, de súbito se interessa pela novidade: uma jovem vizinha que anda entre as ramagens do quintal. Quem será? Terá dono esta beleza? “Os negócios não iam mal. E foi exatamente por me correr a vida quase bem que a mulherinha me inspirou interesse – novidade, pois sempre fui alheio aos casos de sentimento. Trabalhos, compreendem? Trabalhos e pobreza. Às vezes o coração se apertava como corda de relógio bem enrolada. Um rato roía-me as entranhas.” (pp. 34-35)

O protagonista se percebe assediado pelo desejo que não se sufoca impunemente, “As ruas estavam cheias de mulheres. E o rato roía-me por dentro.” (p. 35) E lembra uma série de experiências com mulheres com as profissionais do sexo, com as aparentes donzelas da vizinhança. Mas nenhuma gerou um drama a ponto de gerar uma narrativa (esta mesma que estamos lendo).

Afinal, para a minha história, o quintal vale mais que a casa. Era ali, debaixo da mangueira, que, de volta da repartição, me sentava todas as tardes, com um livro. Foi lá que vi Marina pela primeira vez, em janeiro do ano passado. E lá nos tornamos amigos. (p. 38)

         Uma questão de acaso? Se a moça não fosse uma vizinha, ele se envolveria? “Se ela morasse no prédio à esquerda, talvez não nos conhecêssemos.” (p. 38) e “O meu horizonte ali era o quintal da casa à direita: as roseiras, o monte de lixo, o mamoeiro.” (p. 39) Dentro de sua perspectiva, numa vida sem atrativos, a mocinha é uma novidade que gera mais inquietação, as agulhadas do desejo. Ele troca olhares e palavras com a jovem Marina, mas tudo frivolidades, “Procurando reproduzir os nossos diálogos, compreendo que não dizíamos nada.” (p. 39) Nada de romantismos nesta história. Temos apenas uma radiografia da carência afetiva.

Como pode o narrador, com suas poses de intelectual, ter se envolvido com uma ‘desmiolada’, como ele mesmo diz? “Vejam que miolo. E que tendências. Eu, se não fosse um idiota com fumaças de homem prático, lido e corrido, teria cortado relações com aquela criatura.” (p. 40) Como ele permitiu que o caso se tornasse um drama? Ou, melhor, que controle ele tem sobre a própria vida? É mais um anônimo, um deslocado, na cidade.

       É quando surge outra figura da tragédia: um pernóstico Julião Tavares, moço rico e deveras inconveniente. Apresenta todo um discurso patriótico, nacionalista, mas só tem olhos para os próprios interesses. A presença de Tavares começa a corporificar tudo o que Silva detesta. “À noite chegava-me a casa, empurrava a porta e, quando eu menos esperava, desembocava na sala de jantar, que, não sei se já disse, é o meu gabinete de trabalho. e lá vinham intimidades que me aborreciam. Linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensamento nenhum.” (p. 43)

        O inconveniente cidadão não percebe que incomoda o protagonista, que pouco suporta os tipos exibidos, e , muito menos, hipócritas. Tavares é de uma família influente, e usa seus recursos para ‘brilhar na sociedade’, e seduzir mocinhas inocentes, como veremos. Na consideração do protagonista pelos membros da elite é mínima, pois ‘eram uns ratos’, pessoas que usam a riqueza para obter mais riqueza e prestígio. São hipócritas, defendem a ordem e a religião desde que mantenham o status quo, no qual eles podem lucrar. São pessoas que elogiam apenas para receberem elogios.

        O que interessa para Luís da Silva é ler e escrever, e observar o mundo. Daí o seu senso crítico, “Habituei-me a escrever, como já disse. Nunca estudei, sou um ignorante, e julgo que os meus escritos não prestam. Mas adquiri cedo o vício de ler romances e posso, com facilidade, arranjar um artigo, talvez um conto. Compus, no tempo da métrica e da rima, um livro de versos.” (p. 45)

        Mas, contraditório, o protagonista escreve segundo interesses alheios, artigos que serão assinados por outros, “Trabalho num jornal. À noite dou um salto por lá, escrevo umas linhas. Os chefes políticos do interior brigam demais. Procuram-me, explicam os acontecimentos locais, e faço diatribes medonhas que, assinadas por eles, vão para a matéria paga. Ganho pela redação e ganho uns tantos por cento pela publicação.” (p. 45) Além dos artigos pagos, o protagonista faz traduções de romances de ‘gosto popular’. Tudo para seguir vivendo sua vida mesquinha. Ele vive entre literatos, pseudo-intelectuais, pseudo-revolucionários, rebeldes discursivos, conservadores, ex-latifundiários, etc, e tenta desvelar as hipocrisias, o que ele faz com um tom de amargura. Entre direitas e esquerdas, quem é confiável? Ele desconfia até de si mesmo.

           Então como aguentar um falador bacharel Julião Tavares, cheio de palavras e vazio de conteúdo? Ele, o filho de família rica, tem outra educação, outros modos, outro círculo social, então por que se intrometeu na vida de um simples funcionário público? A presença do outro aguça o complexo de inferioridade do narrador, “Diante dele eu me sentia estúpido. Sorria, esfregava as mãos com esta covardia que a vida áspera me deu e não encontrava uma palavra para dizer. A minha linguagem é baixa, acanalhada.” (p. 49)

      O protagonista tem consciência do quanto tem se conformado com os poderes dominantes, como tem sido pago para forjar e mentir, como ele mesmo confessa, mas não pode suportar alguém tão falso e exibido quanto Julião Tavares, que nem ao menos lhe pagou um artigo para elogios. “Pratiquei neste mundo muita safadeza. Para que dizer que não pratiquei safadezas? Seu eu as pratiquei ! É melhor botar a trouxa abaixo e contar a história direito.” (p.50) Em seus ataques o narrador não poupa sequer a si mesmo. Sua amargura cobre toda a narrativa.

       Seu relacionamento com a bela mocinha vizinha também naufraga. Começa com segundas intenções, finge uma amizade, seduz a moça junto a cerca do quintal. Tudo é obsessivamente narrador e só tem valor para o quadro psicológico do narrador-protagonista, que narra o drama após o desfecho violento. Sabemos que há um mal-entendido, uma separação, um crime, desde o início, afinal ele se diz recuperar de uma crise. Luís se preocupa com a moça, com a família da moça, com a pobreza da família, e assume o compromisso de arrumar um emprego para ela. Ele sabe que não tem influência, sabe que a moça não tem educação ou talento, mas não hesita em tentar.

       É uma distração em sua vida sem atrativos, a admirar a pobreza dos vizinhos, a hipocrisia dos jornalistas e autoridades. Ver a vizinha Marina, com suas roupas de jovem mulher a se exibir, é um passatempo que logo atormenta Luís, sem paixões. Ela sabe que ele tem olhos para ver e que um homem solteiro é facilmente levado em cativeiro. Sabe que ele se preocupa com ela, que até vai lhe conseguir um emprego, e deixa que a sedução continue. Era para ele ter desconfiado, mas não. Antes, presta toda a atenção, saberá descrever tudo após a crise. “O cheiro das flores, dos monturos, da água estagnada, da carne de Marina, entravam-me no corpo violentamente. Apertei as pálpebras. A poça de água, os canteiros mofinos, o monte de lixo sumiram-se. O que eu via bem eram os quartos brancos de Marina curvada, as coxas brancas.” (p. 59)

Eu devia estar ridículo. Baixei a cara, com vergonha, e pus-me a esfregar as pálpebras, a agitar a cabeça para espalhar as ruindades que havia dentro dela. Quando terminei a esfregação, Marina continuava no mesmo lugar, exibindo os dentinhos, com tanta malícia no rosto que fiquei besta, acuado. Felizmente podia vê-la da barriga para cima. (p. 59)

O narrador descreve a imagem de sua obsessão, “Estava num entorpecimento estúpido. Tive a impressão extravagante de que o ar havia tomado de repente a consistência mole e pegajosa de goma-arábica. Nesse ambiente gelatinoso Marina se movia, nadava, desesperadamente bonita, [...]” (p. 60) Ele, com toda consciência, se deixa mergulhar nestas miragens de oásis feminino. A consciência, a madureza, não o impede de se afundar na beleza fútil da vizinha. Ele se envolve até o ponto de não ter volta, e é então quando investe tempo, gasta suas economias, em suma, assume o caso, que trará apenas mais desassossegos.

       É assim que ele resume a cena de paixão, que leva ao compromisso. “É uma dos diabos. Eu queria dar a ela alguma independência. Acabou-se. Gosto da pequena, amarro uma pedra no pescoço e mergulho.” (p. 63) É como se o enlace fosse um fardo, uma punição, por ter atentado contra a ‘inocência’ da vizinha. Ele sente tudo como um peso, não uma leveza, não um prazer, desde o início. Pois sabe das convenções sociais.





continua …






fonte: RAMOS, Graciliano. Angústia. 57ª ed. Rio, São Saulo: Record, 2004.





abr/mai/13


Leonardo de Magalhaens



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