Sobre
“Angústia” (1936)
romance
de Graciliano Ramos (1892-1953)
É
possível ficcionalizar a angústia humana?
Continuamos em nossa
série de obras que ficcionalizam o desconforto individual, quando o
ser se debate contra forças que não pode controlar. São narrações
em 1ª pessoa que mostram o mal-estar do eu diante do coletivo, do
cidadão nas entranhas da sociedade, onde uma voz se confessa e, ao
mesmo tempo, nos condena.
Desde o 'homem do
subsolo', na obra do autor russo Dostoiévski, passando pelo literato
faminto de Hamsun, até o nauseado Roquetin, percebemos a tentativa
de expressar o desconforto humano, o que faz que ações irracionais
brotem apenas para torturar o protagonista, vítima e carrasco de si
mesmo. Afinal, dispor-se contra a sociedade é prejudicar-se, pois
aqueles que mandam sabem ser carismáticos e ocuparem os melhores
cargos e postos. Os misantropos sofrem nos arquivos e nas sarjetas.
Seres plenos de consciência e capazes de longas observações e
confissões, os sociopatas nos despertam a curiosidade. Como
conseguem acumular tanto sofrer?
Vários
protagonistas-narradores desfilam diante de nossos olhos, todos
problemáticos e fascinantes, nunca satisfeitos, sempre irônicos e
desafiantes. Literatos ou não, inocentes ou não, todos têm algo a
dizer – daí termos as narrativas. O que não é diferente com o
amargo Luís da Silva na obra “Angústia” de Graciliano
Ramos, um texto pesado e ácido, que golpeia o leitor, sem frescuras.
Com seu estilo seco e direto, sem desperdícios e floreamentos, o
autor alagoano quer tornar o leitor um cúmplice do drama narrado.
Seu desejo é que a obra possa revirar vísceras e expor as
hipocrisias cotidianas, as relações de poder, a dialética
dominador-dominado, sejam entre patrões e proletários, ou entre
homens e mulheres.
Há toda uma força de
ímpeto e flagelação em Angústia, que, logo lembramos, foi
finalizada durante a penosa detenção do autor nas prisões do
fascismo varguista (como se percebe no testemunho “Memórias do
Cárcere”, publicado postumamente em 1953). Certamente devido a
uma narração em 1ª pessoa - assim já notamos em obras tais como
“Notas do Subsolo”, “Fome”, “Pergunte ao
Pó”, dentre outras - com o protagonista e narrador Luís da
Silva, a figura do intelectual nordestino com ancestrais ruralistas,
sempre em dilemas morais e existenciais, entre o amargor e a
consciência.
Na obra, ele narra fatos
já ocorridos , cerca de 30 dias antes, e rememora o passado, os
tempos dos antepassados, a vida semi-feudal do sertão, os
contrapontos na cidade, centro urbano de novas relações sociais,
anonimato e decadência de costumes. No estilo, temos frases curtas,
repetitivas, a compor um labirinto de obsessão, ao reafirmar para
melhor negar, ao confessar para melhor se culpar, o narrador não
oculta sua amargura com o mundo que o cerca, com a hipocrisia e
dupla-face dos seus contemporâneos.
Levantei-me há cerca de
trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente.
Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras
permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem
calafrios. (p. 7)
E “visões” estas
que ocupam as últimas dez páginas, com toques surrealistas,
cubistas, mesclando factual e ficcional, delírios e sentimento de
culpa, ruminações de desilusões, uma vida inteira desperdiçada,
sem reconhecimento e sem a mulher amada. O que realmente aconteceu
que o afetou tanto ? “Vivo agitado, cheio de terrores, uma
tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas:
são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas
cicatrizaram.” (p. 7)
Um ressentimento contra
os vagabundos, os políticos e os literatos. Quem são aqueles que
escrevem? Quem são aqueles que exibem seus nomes em capas de livros?
São eles os mercenários das palavras, os prostituídos da arte? “E
os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos,
oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama.” (p. 7)
A obsessão doentia por
um tal Julião Tavares, sujeito intrometido, de posses, que anda em
rodas literárias e farejando donzelas incautas. O que liga o
narrador ao antipático Tavares? É certamente um dos eixos de
leitura – até o ápice, onde os destinos de ambos estará ligado.
Outra obsessão: uma mocinha caprichosa chamada Marina. Nome que
deixa o narrador marulhado, com enjoo em terra firme. O que terá
feito a moça para deixá-lo tão angustiado?
Em duas horas escrevo uma
palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo
coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes.
Quando não consigo formas combinações novas, traço rabiscos que
representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros
disparates. (p. 8)
Ele confessa ser incapaz
de escrever, de se concentrar num artigo, de esquecer seus traumas,
fontes de angústia e rancor, “O artigo que me pediram afasta-se
do papel. É verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas
quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza
e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido.” (p. 8)
E mais “Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me
dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições,
[...]” (p. 9)
Preso a uma vida de
rotinas e horários, sem paixão e sem realizações, o funcionário
público Luís da Silva deixa fermentar em si um denso bolor de
amargura, de ressentimento e desejos de destruição, assim mais
propenso ao ‘princípio de morte’, em termos freudianos. “O
que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Uma
viagem, embriaguez, suicídio...Penso no meu cadáver, magríssimo,
com os dentes arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem casca,
os dedos pretos do cigarro cruzados no peito fundo.” (p. 9)
Ele tenta se libertar
seus traumas e obsessões, mas é inútil, sua mente de intelectual
foi atropelada por sofrimento e atos irracionais, ele mesmo confessa,
“Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, sem vergonha, e com
elas a lembrança de Julião Tavares. Intolerável. Esforço-me por
desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser
um rato. Tento distrair-me olhando a rua.” (p. 9) Em alguns
momentos, o narrador, em sua reclusão, lembra o ‘homem do subsolo’
do livro de Dostoiévski, recluso em seu subterrâneo, insociável e
amargurado, confessando suas mesquinharias.
mais
sobre Notas do Subsolo
em
É o estado de
quase-alienação do narrador-protagonista diante das vicissitudes
que provocam um desejo de evasão, “Distraio-me, esqueço
Marina, que algumas ruas apenas separam de mim. Afasto-me outra vez
da realidade, mas agora não vejo os navios, a recordação da cidade
grande desapareceu completamente.” (p. 11)
Recordações da
infância, da vida rural, com a tradicional família patriarcal em
decadência, o fim do coronelismo, como vimos em obras de José Lins
do Rêgo, Menino de Engenho e Fogo Morto, com a criança
perdendo as referências do avô dominador e da avó submissa,
resignada. Uma velha sociedade que convivera com a escravatura, que
sobrevivera na exploração do trabalho braçal, da miséria dos
camponeses, na mineração dos recursos naturais, desbravando sertão,
a derrubar as matas para ampliar as plantações e para as pastagens
do gado. Toda uma sociedade de modelo feudal que desaparece a partir
do ingresso da sociedade brasileira no industrialismo, com o êxodo
rural e o inchaço das cidades.
Ele anda na cidade,
ambiente urbano, meio ao alegado ‘progresso’, mas ainda convive
com imagens da infância, da vida no campo, dos gritos dos coronéis
insultando os negros escravos, cenas da amplidão da casa-grande, da
vastidão das plantações, em comparação com a vida mesquinha, num
barraco, com um mísero quintal. É a decadência – um neto de
latifundiário reduzido a funcionário público. O mesmo drama de um
amanuense Belmiro, perdido nas ruas da provinciana Belo Horizonte, em
obra homônima do autor mineiro Cyro dos Anjos.
Digamos que o
protagonista é assombrado pelo seu passado, por seus ancestrais
ruralistas, com severos comportamentos feudais, como ele mesmo
confessa, “os defuntos antigos me importunam.” (p. 14) Ele
vive com os próprios problemas e com aqueles dos antepassados, e dos
semelhantes, daí seu discurso muitas vezes tender para um tom de
denúncia e solidariedade, uma tendência esquerdista, mas sem ser
panfletária, sem dogmatismos.
Lembra da morte do pai,
que é a perda de um ente e de toda uma época, um sepultar de um
drama familiar, “Estava espantado, imaginando a vida que ia
suportar, sozinho neste mundo. Sentia frio e pena de mim mesmo. A
casa era dos outros, o defunto era dos outros. Eu estava ali como um
bichinho abandonado, encolhido na prensa que apodrecia.” (p.
17) e “que ia ser de mim, solto no mundo?” (p. 18) A morte
do pai marca a perda dos últimos bens, o pagamento das dívidas, o
êxodo para a cidade, a luta pela sobrevivência. O jovem está
sozinho diante das adversidades e das hipocrisias.
“Entro no quarto,
procuro um refúgio no passado. Mas não me posso esconder
inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me
tranquilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a
cidade puiu demais e sujou.” (p. 20) Os trechos de
auto-observação explicitam o grau de consciência do narrador, que
sabe se situar entre o que ele pensa que é e o que pensam que ele
seja, uma questão de introversão em contraponto ao papel social,
enquanto ele anda pelas ruas, distraído, se perde e se indaga,
Assaltam-me dúvidas
idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição?
Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos
movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim.
Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece eternidade. Está
claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão
como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador,
um Luís da Silva qualquer. Mexo-me, atravesso a rua a grandes
pernadas. (p. 22)
Para Luís da Silva é
muito difícil o convívio social, seja com os colegas burocratas,
seja com os amigos literatos, todos à deriva na cidade, forçados à
hipocrisia na busca de seus interesses de reconhecimento e aumento de
renda, dados à vaidade de uma fama ou status social. Outras
pessoas, na convivência forçada da cidade, só mostram indiferença
ou arrogância. Dramas pessoais, dramas coletivos se entrelaçam.
Dívidas, falências, crise de produção, êxodo rural, guerras,
perseguição aos judeus, tudo se mistura.
Ele sabe que a infância
não pode ser recuperada, assim como a vida rural dos antepassados. o
que sofreram na aspereza dos sertões? O quanto ele se lembra, e o
quanto imagina? Aqui o ficcional se mescla ao factual, “Procuro
recordar-me dos verões sertanejos, que duram anos. A lembrança
chega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances.
Dificilmente poderia distinguir a realidade da ficção. Penso em
coisas percebidas vagamente.” (p. 28)
E quando a mocinha Marina
entra no drama do protagonista? Quando ele está em sua vida de
tédio, convivendo com amigos cotidianos e uma empregada meio
demente, lendo romances medíocres (“os livros idiotas animam a
gente. Se não fossem eles, nem sei quem se atreveria a começar.”
p. 32), ele percebe um vulto feminino no quintal vizinho, certamente
uma moradora nova. O narrador tenta se concentrar, mas a atração do
vulto é mais forte, “E mergulhei na leitura, desatento, está
claro, porque o livro não valia nada. Virava a página muitas vezes,
e quando isto acontecia, olhava, fingindo desinteresse, a mulher dos
cabelos de fogo. Tinha as unhas pintadas.” (p. 33)
Qual a relação do
modesto Luís da Silva com as mulheres? Além de amargo, é ele um
cínico, um canalha, um misógino? Antes, se declara tímido, ao
sentir-se observado pela jovem vizinha, “Encabulei. Sou tímido:
quando me vejo diante de senhoras, emburro, digo besteiras. Trinta e
cinco anos, funcionário público, homem de ocupações marcadas pelo
regulamento. O estado não me paga para eu olhar as pernas das
garotas. E aquilo era uma garota. Além de tudo sei que sou feio.
Perfeitamente, tenho espelho em casa.” (p. 34)
Ele sempre tão alheio,
de súbito se interessa pela novidade: uma jovem vizinha que anda
entre as ramagens do quintal. Quem será? Terá dono esta beleza? “Os
negócios não iam mal. E foi exatamente por me correr a vida quase
bem que a mulherinha me inspirou interesse – novidade, pois sempre
fui alheio aos casos de sentimento. Trabalhos, compreendem? Trabalhos
e pobreza. Às vezes o coração se apertava como corda de relógio
bem enrolada. Um rato roía-me as entranhas.” (pp. 34-35)
O protagonista se percebe
assediado pelo desejo que não se sufoca impunemente, “As ruas
estavam cheias de mulheres. E o rato roía-me por dentro.” (p.
35) E lembra uma série de experiências com mulheres com as
profissionais do sexo, com as aparentes donzelas da vizinhança. Mas
nenhuma gerou um drama a ponto de gerar uma narrativa (esta mesma que
estamos lendo).
Afinal, para a minha
história, o quintal vale mais que a casa. Era ali, debaixo da
mangueira, que, de volta da repartição, me sentava todas as tardes,
com um livro. Foi lá que vi Marina pela primeira vez, em janeiro do
ano passado. E lá nos tornamos amigos. (p. 38)
Uma questão de acaso?
Se a moça não fosse uma vizinha, ele se envolveria? “Se ela
morasse no prédio à esquerda, talvez não nos conhecêssemos.”
(p. 38) e “O meu horizonte ali era o quintal da casa à direita:
as roseiras, o monte de lixo, o mamoeiro.” (p. 39) Dentro de
sua perspectiva, numa vida sem atrativos, a mocinha é uma novidade
que gera mais inquietação, as agulhadas do desejo. Ele troca
olhares e palavras com a jovem Marina, mas tudo frivolidades,
“Procurando reproduzir os nossos diálogos, compreendo que não
dizíamos nada.” (p. 39) Nada de romantismos nesta história.
Temos apenas uma radiografia da carência afetiva.
Como pode o narrador, com
suas poses de intelectual, ter se envolvido com uma ‘desmiolada’,
como ele mesmo diz? “Vejam que miolo. E que tendências. Eu, se
não fosse um idiota com fumaças de homem prático, lido e corrido,
teria cortado relações com aquela criatura.” (p. 40) Como ele
permitiu que o caso se tornasse um drama? Ou, melhor, que controle
ele tem sobre a própria vida? É mais um anônimo, um deslocado, na
cidade.
É quando surge outra
figura da tragédia: um pernóstico Julião Tavares, moço rico e
deveras inconveniente. Apresenta todo um discurso patriótico,
nacionalista, mas só tem olhos para os próprios interesses. A
presença de Tavares começa a corporificar tudo o que Silva detesta.
“À noite chegava-me a casa, empurrava a porta e, quando eu
menos esperava, desembocava na sala de jantar, que, não sei se já
disse, é o meu gabinete de trabalho. e lá vinham intimidades que me
aborreciam. Linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensamento
nenhum.” (p. 43)
O inconveniente cidadão
não percebe que incomoda o protagonista, que pouco suporta os tipos
exibidos, e , muito menos, hipócritas. Tavares é de uma família
influente, e usa seus recursos para ‘brilhar na sociedade’, e
seduzir mocinhas inocentes, como veremos. Na consideração do
protagonista pelos membros da elite é mínima, pois ‘eram uns
ratos’, pessoas que usam a riqueza para obter mais riqueza e
prestígio. São hipócritas, defendem a ordem e a religião desde
que mantenham o status quo, no qual eles podem lucrar. São
pessoas que elogiam apenas para receberem elogios.
O que interessa para
Luís da Silva é ler e escrever, e observar o mundo. Daí o seu
senso crítico, “Habituei-me a escrever, como já disse. Nunca
estudei, sou um ignorante, e julgo que os meus escritos não prestam.
Mas adquiri cedo o vício de ler romances e posso, com facilidade,
arranjar um artigo, talvez um conto. Compus, no tempo da métrica e
da rima, um livro de versos.” (p. 45)
Mas, contraditório, o
protagonista escreve segundo interesses alheios, artigos que serão
assinados por outros, “Trabalho num jornal. À noite dou um
salto por lá, escrevo umas linhas. Os chefes políticos do interior
brigam demais. Procuram-me, explicam os acontecimentos locais, e faço
diatribes medonhas que, assinadas por eles, vão para a matéria
paga. Ganho pela redação e ganho uns tantos por cento pela
publicação.” (p. 45) Além dos artigos pagos, o protagonista
faz traduções de romances de ‘gosto popular’. Tudo para seguir
vivendo sua vida mesquinha. Ele vive entre literatos,
pseudo-intelectuais, pseudo-revolucionários, rebeldes discursivos,
conservadores, ex-latifundiários, etc, e tenta desvelar as
hipocrisias, o que ele faz com um tom de amargura. Entre direitas e
esquerdas, quem é confiável? Ele desconfia até de si mesmo.
Então como aguentar um
falador bacharel Julião Tavares, cheio de palavras e vazio de
conteúdo? Ele, o filho de família rica, tem outra educação,
outros modos, outro círculo social, então por que se intrometeu na
vida de um simples funcionário público? A presença do outro aguça
o complexo de inferioridade do narrador, “Diante dele eu me
sentia estúpido. Sorria, esfregava as mãos com esta covardia que a
vida áspera me deu e não encontrava uma palavra para dizer. A minha
linguagem é baixa, acanalhada.” (p. 49)
O protagonista tem
consciência do quanto tem se conformado com os poderes dominantes,
como tem sido pago para forjar e mentir, como ele mesmo confessa, mas
não pode suportar alguém tão falso e exibido quanto Julião
Tavares, que nem ao menos lhe pagou um artigo para elogios.
“Pratiquei neste mundo muita safadeza. Para que dizer que não
pratiquei safadezas? Seu eu as pratiquei ! É melhor botar a trouxa
abaixo e contar a história direito.” (p.50) Em seus ataques o
narrador não poupa sequer a si mesmo. Sua amargura cobre toda a
narrativa.
Seu relacionamento com a
bela mocinha vizinha também naufraga. Começa com segundas
intenções, finge uma amizade, seduz a moça junto a cerca do
quintal. Tudo é obsessivamente narrador e só tem valor para o
quadro psicológico do narrador-protagonista, que narra o drama após
o desfecho violento. Sabemos que há um mal-entendido, uma separação,
um crime, desde o início, afinal ele se diz recuperar de uma crise.
Luís se preocupa com a moça, com a família da moça, com a pobreza
da família, e assume o compromisso de arrumar um emprego para ela.
Ele sabe que não tem influência, sabe que a moça não tem educação
ou talento, mas não hesita em tentar.
É uma distração em
sua vida sem atrativos, a admirar a pobreza dos vizinhos, a
hipocrisia dos jornalistas e autoridades. Ver a vizinha Marina, com
suas roupas de jovem mulher a se exibir, é um passatempo que logo
atormenta Luís, sem paixões. Ela sabe que ele tem olhos para ver e
que um homem solteiro é facilmente levado em cativeiro. Sabe que ele
se preocupa com ela, que até vai lhe conseguir um emprego, e deixa
que a sedução continue. Era para ele ter desconfiado, mas não.
Antes, presta toda a atenção, saberá descrever tudo após a crise.
“O cheiro das flores, dos monturos, da água estagnada, da carne
de Marina, entravam-me no corpo violentamente. Apertei as pálpebras.
A poça de água, os canteiros mofinos, o monte de lixo sumiram-se. O
que eu via bem eram os quartos brancos de Marina curvada, as coxas
brancas.” (p. 59)
Eu devia estar ridículo.
Baixei a cara, com vergonha, e pus-me a esfregar as pálpebras, a
agitar a cabeça para espalhar as ruindades que havia dentro dela.
Quando terminei a esfregação, Marina continuava no mesmo lugar,
exibindo os dentinhos, com tanta malícia no rosto que fiquei besta,
acuado. Felizmente podia vê-la da barriga para cima. (p. 59)
O narrador descreve a
imagem de sua obsessão, “Estava num entorpecimento estúpido.
Tive a impressão extravagante de que o ar havia tomado de repente a
consistência mole e pegajosa de goma-arábica. Nesse ambiente
gelatinoso Marina se movia, nadava, desesperadamente bonita,
[...]” (p. 60) Ele, com toda consciência, se deixa mergulhar
nestas miragens de oásis feminino. A consciência, a madureza, não
o impede de se afundar na beleza fútil da vizinha. Ele se envolve
até o ponto de não ter volta, e é então quando investe tempo,
gasta suas economias, em suma, assume o caso, que trará apenas mais
desassossegos.
É assim que ele resume
a cena de paixão, que leva ao compromisso. “É uma dos diabos.
Eu queria dar a ela alguma independência. Acabou-se. Gosto da
pequena, amarro uma pedra no pescoço e mergulho.” (p. 63) É
como se o enlace fosse um fardo, uma punição, por ter atentado
contra a ‘inocência’ da vizinha. Ele sente tudo como um peso,
não uma leveza, não um prazer, desde o início. Pois sabe das
convenções sociais.
continua …
fonte:
RAMOS, Graciliano. Angústia. 57ª ed. Rio, São Saulo:
Record, 2004.
abr/mai/13
Leonardo
de Magalhaens
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