Sobre
“Notas do Subsolo” (ou “Memórias do Subterrâneo”,
ou “Memórias do Subsolo”)
(original : Zapiski iz pòdpol'ja)(1865)
de
Fiódor Dostoiévski (1821-1881)
O drama da consciência na corrosiva ironia da auto-observação
Conhecido por seus
mergulhos nos dramas que revelam profundezas psicológicas, no que se
convencionou chamar psicologismo, o
autor russo F. Dostoiévski é um homem de sua época, marcada por contradições,
entre avanços e recuos, querendo democracia, liberalismo e socialismo (ideias
do Ocidente) numa terra de absolutismo czarista. Contraditório, o autor flertou
com os esquerdistas, que depois julgaria terroristas, e dedicou sua fé ao
cristianismo ortodoxo, ao culto dos santos – não aqueles do catolicismo, ao
qual o autor considera apóstata e corrupta.
Ao trocar o
socialismo pelo cristianismo ortodoxo, a reforma social pela conversa pessoal,
o autor russo voltou-se para a auto-observação, a introspecção, em busca dos
labirintos mentais que guiam o comportamento humano, contraditório e egoísta, profano
e sagrado. Esta análise do humano em si mesmo, da falta que leva ao desejo de
transcendência, religação com um Ser Supremo, uma Providência Divina, que dê
algum Sentido ao existir. Assim as razões de estar-aqui e agora num mundo de
ânsias e sofrimentos que leva ao filosofar como vimos em Pascal, Kierkegaard e
Tolstoi. Para muitos o que foi, no século 20, chamado Existencialismo teve então início.
Um existencialismo
ainda envolto em brumas religiosas, ainda demasiadamente platonista, sem o
toque ateu e materialista de um Sartre, de um Camus, de um Cioran. Mas um
pensamento que já se mostrava crítico e ácido, quando o autor russo se volta
contra os racionalismos, o positivismo, o arrivismo hipócrita do mundo europeu
pós-ascensão da burguesia. Um mundo ocidental invejado e desejado pela
inteligência russa, mas, para Dostoiévski, enquanto eslavófilo, a solução está
na religiosidade ortodoxa russa – não exatamente clerical, mas enquanto devoção
pessoal. Ao contrário, para os existencialistas posteriores, importa superar os
subterfúgios, as tradições, e as superstições, e encontrar um sentido para
viver, pois tal razão de ser não existe a priori, transcendental. É possível
que sequer exista algum Sentido.
Mas para sabermos o
que fazemos aqui e agora é preciso um olhar atento primeiramente para si mesmo,
nas sombrias profundezas das próprias motivações, uma lente introspectiva que
levaria ao método psicanalítico freudiano, que postula um ser profundo dentre
de cada um – pois somos Egos submetidos a um Id primitivo e inconsciente que
nos governa. Não é o racional que nos guia, mas uma irracionalidade que pode
até se voltar contra nós. Somos médicos e monstros –como evitar que o lado Hyde
destrua nosso lado Jekyll?
Em Notas do Subsolo , desde a parte 1 – Subsolo - temos um narrador e
protagonista, que não se nomeia, mas se permite confissões, que se declara um
ser doentio, “Sou um homem doente... Sou
mau.” (p. 11), que não teve sucesso na vida, que vive em limitações e
frustrações incontornáveis, percebendo em si uma amargura que envenena sua
mísera existência, afundada em dor e consciência. Se ele fosse um tolo, um
arruinado qualquer, jamais teceria as considerações que podemos ler neste
relato.
“Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado.” (p. 13)(trad.
Maria Aparecida B. P. Soares)
O amargurado narrador
tem interlocutores
imaginários,
confessa-se diante de alguém, ou muitos,
que ele desconhece, que simbolizam uma espécie de consciência reflexiva, quando
ele responde as questões de antemão, prevendo assim o que os outros julgarão
– como um SuperEgo atento ao Id, no freudismo. Antes será uma consciência a se
exibir,
“Aposto que os senhores estão pensando que estou escrevendo tudo isso por gabolice, para fazer graça às custas dos homens de ação, e estão pensando ainda que, num gracejo de péssimo gosto, faço tinir meu sabre, como o meu oficial. Mas, senhores, quem pode se gabar de suas próprias doenças e ainda usá-las para fazer pilhéria?
Aliás, que estou dizendo? É isso que todos fazem: vangloriar-se de suas doenças, e faço-o, talvez, mais do que todo mundo. Não vamos discutir; minha objeção é absurda. Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não só a consciência em alto grau é uma doença, como também o é qualquer consciência.” (p. 15)
Assim, o narrador ao tentar o tempo todo se explicar, justificar perante os 'interlocutores', que parecem mais uns juízes rancorosos. Sofre de um prazer mórbido de se explicar, se retalhar em público, a expor sentimentos,
ao ser um voyeur de si mesmo, um
exibicionista do desespero, “Sou, por exemplo, uma pessoa com um amor próprio exagerado. Sou desconfiado e ressentido, [...].” (p. 17)
Um caso de modéstia pouca: o protagonista se julga mais inteligente (não só
mais intelectual) que os medíocres, aqueles
arrivistas hipócritas e funcionários submissos,
“Sou culpado, em primeiro lugar, porque sou mais inteligente do que todos os que me rodeiam. (Sempre me considerei mais inteligente do que todos os que me rodeiam e, às vezes – podem crer? - até disso me envergonhava. Pelo menos, toda a vida eu andei olhando para o lado e nunca conseguia olhar diretamente nos olhos das pessoas.)” (p. 17)
“Finalmente , até se eu não quisesse ser de maneira alguma generoso e, ao contrário, desejasse me vingar do meu ofensor, eu não conseguiria me vingar de nada e de ninguém, porque provavelmente não me decidiria a fazer o que quer que fosse, mesmo se pudesse.” (p. 18)
O homem que pensa, que rumina, de 'consciência amplificada', não aprecia – antes despreza – o homem 'normal', que age diretamente, sem meditações e hesitações. Enquanto o homem consciente nutre seus rancores, cabisbaixo, envergonhado por ser diferente, e é incapaz de atingir os outros, que seguem suas vidas indiferentes. É incapaz de se vingar, pois “em todas as suas tentativas de vingar-se, ele mesmo vai sofrer cem vezes mais do que aquele que pretende atingir, e este provavelmente nem se coçará.” (p. 20)
O narrador diz não se importar com as opiniões – e os julgamentos – alheios, mas constantemente se explica, se justifica, como se diante de uma autoridade. Afinal, ao narrar ele já pressupõe um leitor, ou leitores, que poderão concordar ou não com o que é dito / escrito. Ele insiste em desabafos, confissões de suas mesquinharias.
“É nesses gemidos que se expressa o prazer do sofredor; se ele não sentisse prazer com isso, não gemeria. Este é um bom exemplo, senhores, vou desenvolvê-lo. Nesses gemidos se expressa, em primeiro lugar, toda a inutilidade de sua dor, humilhante para a nossa consciência; toda a legitimidade das leis da natureza, de que os senhores, certamente, podem fazer pouco caso, mas em consequência da qual os senhores sofrem, ao passo que ela não.” (p. 23)
Para o homem do subsolo o
fato de ter consciência é estar desligado de seu próprio solo e povo, é um “homem que foi atingido pelo desenvolvimento e pela civilização europeia, um homem 'que renegou seu solo e as raízes populares'” e que não merece mais respeito, “por acaso um homem com consciência pode ter algum respeito próprio?” (p. 25), pois “será possível que um homem possa ter um mínimo de respeito próprio depois de ter tentado buscar prazer até mesmo no sentimento da própria humilhação?”
Por que então se humilhar?
Por que permitir que o lado monstro se revele?
“Os senhores perguntarão: para que eu me mutilava e me torturava dessa maneira? Resposta: porque era muito chato ficar sentado de braços cruzados, e então entregava-me a essas extravagâncias. É a pura verdade.” (p. 25) e “No fundo, a pessoa não acredita que está sofrendo, quer fazer uma pilhéria sobre o assunto, mas, apesar disso, eu sofria, e era um sofrimento verdadeiro, real; sentia ciúmes, ficava fora de mim... E tudo isso por tédio, senhores, tudo por tédio; fui esmagado pela inércia.” (p. 26)
Para não ficar na indolência de um Oblomov, o personagem inativo e entediado (o símbolo do homem inútil, supérfluo, o nobre acomodado oposto ao burguês empreendedor) do célebre romance (1859) de Ivan Gonchorov, o Homem do subsolo procura inventar suas angústias e humilhações para 'agitar' sua vida subterrânea, indiferente.
Assim, ao estilo Oblomov, moroso, cheio de dúvidas, o narrador-protagonista aqui sente-se incapaz de agir, “Pois, para se começar a agir, é preciso que antes se esteja completamente calmo e totalmente livre de dúvidas. E como eu, por exemplo, me tranquilizaria? Onde estão os meus motivos originais, nos quais me apoiaria? Onde estão os fundamentos? De onde vou tirá-los?” (p. 26)
e “Mas tente abraçar com paixão e cegamente o seu sentimento, sem reflexão, sem buscar o motivo original, afastando a consciência pelo menos temporariamente; sinta ódio ou amor, nem que seja para não ficar sentado de braços cruzados. No mais tardar, depois de amanhã você começará a sentir desprezo por si mesmo, por ter-se enganado conscientemente.” (p. 27)
mais sobre o romance 'Oblomov'
Realmente um prolixo falante, este homem do subsolo, que tenta se explica, legitimar seu egotismo, sua auto-observação doentia! Uma fala que é inútil, num transbordar de auto-recriminação e ironia com os intelectuais! Trata-se de um homem que não age em prol dos próprios interesses, mas contra si-mesmo, se prejudica como um masoquista. O homem culto, instruído, até literato, sabe tudo o que deve fazer, e como fazer, mas no momento de agir – devido a forças obscuras? - fará tudo ao contrário, como se dando um tiro no pé! Será o instinto de autodestruição diagnosticado pela psicanálise de Freud? O impulso para causar auto-dano, ao agir contras as 'leis da razão'. Mas, de fato, o quanto somos racionais?
É a civilização que domestica o ser humano instintivo? Estamos ficando mais pacíficos? Quantas guerras explodem a cada dia! Quanta miséria e violência! (E quando Dostoiévski escreveu sua obra não acontecera ainda as Guerras Mundiais, então as referências aqui são as guerras coloniais, a Guerra de Secessão e as guerras de unificação da Alemanha),
“Em que a civilização nos está abrandando? A civilização desenvolve no homem apenas uma diversidade de sensações... e nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessas sensações, é bem possível que o homem acabe por descobrir no derramamento de sangue um certo prazer. Isso já aconteceu. Já notaram que os sanguinários mais refinados quase sempre têm sido os cavalheiros mais civilizados, aos pés dos quais não chegam todos os Átilas e Stenkas Rázin? E que, se eles não chamam muita atenção, como Átila e Stenka Rázin, é justamente porque são muito comuns e frequentes e já nos acostumamos a eles? Pelo menos se pode dizer que, se o homem não se tornou mais sanguinário com a civilização, tornou-se, com certeza, um sanguinário pior, mais hediondo.” (p. 33)
Assim, por mais que se tente atingir a paz, ou o controle, mais complexo, violento e incontrolável se encontra o indivíduo em sociedade, pois é impossível criar um sistema social perfeito se o homem não é perfeito, mas longe disso, é sempre ignorante e ingrato. E mais: o homem é um ser caprichoso, não só teimoso. Quer fazer o que não se deve fazer. Se é proibido fumar, beber, fornicar a mulher do próximo: então é justamente o que o homem quer fazer: fumar, beber, fornicar a mulher alheia. O indivíduo se guia mais por vontades – não exatamente dele – do que pela racionalidade, que pretende explicar tudo,
“Bem, quando tudo isso estiver explicado e exposto numericamente no papel (o que é perfeitamente possível, porque é indigno e sem sentido crer antecipadamente que haja leis da natureza que o homem nunca descobrirá), então , evidentemente, não existirão as chamadas vontades. Pois, se a vontade um dia coincidir completamente com a razão, nós iremos raciocinar e não querer, propriamente, porque é impossível , por exemplo, conservando a razão, desejar coisas sem sentido, indo, desse modo, conscientemente contra a razão e desejando algo que nos prejudique...” (p. 37)
Para se sentir livre, o ser humano tem o desejo de errar, de se extraviar, a preferir uma vida desregrada, sem rumos. Pois uma vida regulada, prevista, controlada, sem desvios, parece ser opressiva: o prazer nasce do erro e do pecado. Daí inventar leis apenas para poder transgredi-las! Toda a filosofia do Homem do subsolo (que vive quatro décadas no mundo da indiferença!) se resume em defender sua vontade de ser livre para se prejudicar! Ou ele é guiado por convenções e normas ou ele é dono do próprio nariz, ainda que seja um fracasso! “E, mesmo que a nossa vida pareça às vezes bem ruinzinha do ponto de vista acima, ela é vida, apesar de tudo, e não apenas a extração de uma raiz quadrada.” (p. 38)
Será o homem do subsolo um intrigante irracionalista? Mas estará ele, paradoxalmente, usando lógica contra a racionalidade? É isso mesmo? Pois entre a vontade e a razão, ele prefere a primeira, o risco do desejar sem as amarras da previsão e controle. Ele afirma sem hesitações que o ser humano é ingrato e caprichoso – e que servir à razão é servir apenas a uma parte mínima de si mesmo. Ou seja, antecipa aquilo que disse Freud em sua psicanálise: o lado racional é uma ponta de um iceberg da psiquê, mas inclinada ao inconsciente, ao delírio, ao sonho e ao fantástico.
Será possível explicar e regular o comportamento humano? Aqui há toda uma crítica ao cientificismo, ao behaviorismo, que prevê uma 'domesticação' dos instintos em prol de uma civilização regulada, onde o ser humano se encaixa na sociedade como uma engrenagem na máquina. Os indivíduos preferem o fantástico ao racional, a ponto de se prejudicarem, em teimosias sem qualquer propósito além do capricho.
Vários trechos repetem tal argumentação até a exaustão,
“Se os senhores disserem que tudo isso também pode ser calculado pela tabela – o caos, a treva, a maldição, de modo que a mera possibilidade de cálculo prévio pare tudo e a razão triunfe -, então nesse caso o homem ficará propositalmente louco, para ficar privado da razão e defender sua opinião!” (p. 42)
“Admito: o homem é, acima de tudo, um animal que constrói, condenado a buscar conscientemente um objetivo e exercer a arte da engenharia, ou seja, a abrir caminho para si mesmo incessante e eternamente, não importando aonde esse caminho o leve. Mas eis que, vez opor outra, ele tem vontade de se desviar para um lado, talvez precisamente porque ele esteja condenado a abrir esse caminho, e também talvez porque, por mais idiota que geralmente seja o homem direto, de ação, às vezes ele pensa que aquele caminho, na realidade, quase sempre leva não importa aonde, o mais importante não é para onde ele leva, e sim que ele continue a levar, (...)” (p. 43)
“O homem gosta de
criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas por que ele também ama com
paixão a destruição e o caos? Digam-me, por favor!” (p. 44)
“Mas o homem é um ser
inconstante e pouco honesto e, talvez, à semelhança do jogador de xadrez, goste
apenas do processo de procurar atingir um objetivo, e não do objetivo em si.”
(p. 44)
“Ele [o ser humano]
ama o processo de conseguir, mas atingir mesmo, nem tanto, e isso, claro está, é
terrivelmente engraçado. Em uma palavra, o homem é constituído de modo cômico;
em tudo isso, pelo visto, há um jogo de palavras. Mas dois e dois são quatro é,
de qualquer modo, uma coisa extremamente insuportável. Dois e dois são quatro,
na minha opinião, é pura insolência.” (p. 45)
O ser humano só
deseja vantagens? Ou deseja também o infortúnio? Deseja o mundo imprevisível ao
mesmo tempo em que fala em formas de controle? É possível mesmo uma sociedade
onde todos ganhem igualmente?
“E por que os senhores
estão assim tão firme e solenemente convencidos de que apenas o que é normal e
positivo, ou seja, o bem-estar, é vantajoso para o homem? A razão não estará
cometendo um erro quanto às vantagens? Quem sabe o homem ame não apenas o
bem-estar? Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o sofrimento é
para ele tão vantajoso quanto o bem-estar? O homem, às vezes, ama o sofrimento
de maneira terrível, apaixonada; isto é um fato.” (p. 45)
Por que sofremos
sabemos que sofremos. Sabendo adquirimos um fenômeno de auto-observação, numa
forma reflexiva, assim a consciência, visto que “O sofrimento é a única causa da consciência. E, embora eu tenha
declarado no início que, na minha opinião, a consciência é a maior infelicidade
para o homem, eu sei que o homem ama a consciência e não a trocará por
satisfação alguma. A consciência, por exemplo, é infinitamente superior ao dois
mais dois.” (p. 46)
Será que o humano é
isto mesmo: a preferência pelo irracional? Mesmo que seja em prejuízo de si
mesmo? Preferir os desejos mesquinhos ao brilho da razão? Mas que razão? Que
lógica defende o narrador? Não é ele uma contradição? “Juro aos senhores que não acredito em uma palavra sequer de tudo o que
rabisquei até aqui! Ou melhor, eu acredito, talvez, mas, ao mesmo tempo, não
sei por que, sinto e desconfio que estou mentindo desbragadamente.” (p. 49)
E o que os 'interlocutores' diriam? Como compreendem (ou não) o contraditório
narrador? Como o narrador imagina o que os 'outros' pensam sobre ele?
“O senhor diz
absurdos e fica contente com eles; diz coisas insolentes, mas está o tempo todo
com medo por causa delas e pede desculpas. O senhor afirma não ter medo de nada
e, ao mesmo, busca nossa aprovação. O senhor afirma que range os dentes e, ao
mesmo tempo, fica fazendo graça para nos divertir. O senhor sabe que seus
gracejos não são nada espirituosos, mas, ao que parece, está muito satisfeito
com a sua qualidade literária. Talvez o senhor tenha sofrido realmente algumas
vezes, mas o senhor não respeita nem um pouco o próprio sofrimento.” (p. 49)
O narrador inventa
o que diz os interlocutores, e elabora comentários metalinguísticos: “Claro está que essas palavras dos senhores
fui eu mesmo que acabei de inventar. Elas também vieram o subsolo. Durante
quarenta anos seguidos fiquei escutando pela fresta as palavras que os senhores
diziam. Eu mesmo as inventei, pois somente isso era possível inventar.” e “Mas será possível, será possível que os
senhores sejam tão crédulos e imaginem que eu vá imprimir tudo isso e ainda
lhes dar para ler? E eis ainda uma questão que preciso resolver: para que, na
verdade, eu os chamo de 'senhores', para que dirijo-me aos senhores, como se de
fato estivesse dirigindo-me a leitores? Confissões, como as que tenho a
intenção de começar a narrar, não se publicam nem se dão a outros para que
leiam.” (p. 50)
São possíveis as
confissões? “É possível alguém ser
inteiramente sincero consigo mesmo e não temer toda a verdade? A propósito,
Heine afirma que é quase impossível existirem autobiografias sinceras, porque
na certa o ser humano mentirá, falando de si mesmo. Na opinião dele, por
exemplo, Rousseau sem dúvida mentiu sobre si mesmo em suas Confissões e fez
isso até deliberadamente, por vaidade.” E também “No meu caso, escrevo só para mim, e declaro de uma vez por todas que,
se escrevo como se me dirigisse a leitores, é unicamente por exibicionismo, e
porque desse modo me é mais fácil escrever. Isso é apenas forma, uma forma
vazia, eu nunca terei leitores. Já havia declarado isso...” (p. 51) Nunca
terá leitores? então por que foi publicado? Como nós, leitores, viemos a ter
acesso a semelhante texto? Foi furtado do autor? Foi contrabandeado?
Ele tenta explicar
para quem escreve. Se é que escreve para alguém. “No meu caso, escrevo só para
mim, e declaro de uma vez por todas que, se escrevo como se me dirigisse a
leitores, é unicamente por exibicionismo, e porque desse modo me é mais fácil
escrever. Isso é apenas forma, uma forma vazia, eu nunca terei leitores. Já
havia declarado isso ...” (p. 51) e defende o direito de se expressar
livremente, num fluxo (quase a la surrealistas...), “Não
quero que nada me cerceie na redação de minhas notas. Não vou estabelecer ordem
nem sistema. Escreverei tudo o que me vier à memória.” (p. 51)
No mais, escrever é
algo mais solene. “Há, neste caso, toda
uma psicologia. Talvez, inclusive, eu seja simplesmente covarde. Pode ser
também que eu imagine de propósito um público na minha frente para me comportar
mais decentemente enquanto escrevo.” (p. 52) e “O papel inspira respeito, serei mais exigente comigo mesmo, o estilo
lucrará. Além disso, escrevendo, talvez eu sinta de fato alívio. Neste momento,
por exemplo, uma recordação antiquíssima me oprime.” (p. 52) e “Finalmente: sinto-me entediado, pois fico o
tempo todo sem fazer nada. O ato de anotar é, de certo modo, um trabalho. dizem
que o homem se torna bom e honesto com o trabalho.” (p. 52)
Na parte 2 (A propósito da neve úmida) a voz narrativa volta ao passado,
lembra-se da juventude – diferente, por exemplo, de Roquetin, em A Náusea, que narra ao mesmo tempo em
que vivencia, ao manter uma forma de diário. “Naquela época eu tinha vinte e
quatro anos. Já então minha vida era sombria e desordenada, eu era solitário
como um bicho do mato. Não tinha amizades, até mesmo evitava falar com as
pessoas, e cada vez me enfurnava mais no meu canto.” (p. 54)
Um ser solitário que
é visto como diferente, excêntrico. Por isso ainda mais se amargura. “Às vezes eu me perguntava: por que será que,
além de mim, ninguém tem essa impressão de ser olhado com repulsa?” (p. 54)
Ou não é um caso de auto-insatisfação? “Está inteiramente claro para mim agora
que, devido à minha desmensurada vaidade e, consequentemente, à tremenda
exigência para comigo mesmo, eu me olhava com uma insatisfação furiosa que chegava
às raias da aversão e, com isso, mentalmente transferia aos outros essa maneira
de me ver.” p. 54
“Um
homem honrado e evoluído não pode ser vaidoso sem possuir uma exigência
infinita para consigo mesmo e sem, em certos momentos, se desprezar até o ponto
de se odiar. Mas, seja desprezando o outro, seja julgando-me inferior, eu
baixava os olhos diante de quase todas as pessoas com quem cruzava. Cheguei a
fazer experiências para ver se aguentaria o olhar de alguém sobre mim. Sempre
era eu o primeiro a baixar os olhos. Isso me torturava a ponto de me deixar
furioso.” (p. 55)
E o narrador não é
nem um pouco contente consigo mesmo, além de desprezar as pessoas de seu tempo.
“Mas não era apenas questão de parecer: de fato, eu era um covarde e um
escravo. Digo isso sem nenhum constrangimento. Todo homem honesto neste nosso
tempo é e deve ser um covarde e um escravo. Essa é a sua condição normal.” (p.
55)
E ele vive a julgar a
si mesmo: “sem mais nem menos, começava uma fase de ceticismo e indiferença
(comigo tudo acontecia em fases), e eu mesmo começava a rir de minha
intolerância e minhas aversões e censurava a mim mesmo pelo meu romantismo.” (p.56)
Mas o romantismo
russo é diferente daquele alemão ou francês, que vivem em ‘altas esferas’.
Sobre o estilo eslavo o narrador esclarece ter as características de “compreender
tudo, ver tudo e, frequentemente, enxergar muito mais claramente do que as
nossas inteligências mais positivas; não se resignar diante de nada ou de
ninguém, mas, ao mesmo tempo, nada menosprezar, tudo contornar, ceder a tudo,
comportar-se com todos de maneira política; nunca perder de vista um objetivo
prático, útil (como algum apartamentinho do governo, uma pensãozinha, uma
condecoraçãozinha), e ter em mira esse objetivo em todo entusiasmo e em todos
os volumezinhos de versinhos líricos e, ao mesmo tempo, conservar incólume em
si o ‘belo e sublime’, até o túmulo, e, a propósito, conservar a si mesmo
embrulhado em algodão, como uma joiazinha, nem que seja, por exemplo, em prol
do mesmo ‘belo e sublime’.” pp. 57-58
O caráter
contraditório dos ‘românticos’, os idealistas, “Já um número incalculável de
românticos ascende aos cargos mais elevados. Que versatilidade fora do comum
eles têm! E que talento para sensações as mais contraditórias!” [p. 58] E a
honestidade dos ‘canalhas’, “É, senhores, somente entre nós o mais rematado
canalha pode ser inteiramente honesto de alma, e isso até mesmo de maneira
sublime, sem, por isso, deixar de ser um canalha um pouquinho que seja.” (p. 59)
O narrador é daqueles
que se refugiam na leitura, na evasão, “E
a leitura era para mim a única fonte possível de impressões exteriores. A
leitura, é claro, me ajudava muito: emocionava, deliciava e torturava. Mas de
vez em quando ela me entediava terrivelmente.” (p. 59) Assim como se sente
culpado ao dar livre curso aos prazeres, “Eu
saía para a libertinagem à noite, secretamente, com medo e com sensação de
sujeira, sentindo uma vergonha que não me abandonava nem nos instantes mais
repugnantes, como uma maldição. Já então eu trazia na alma o meu subsolo.” (p.
60)
O narrador é vaidoso
e quer ser reconhecido, se indigna quando é tratado de modo indiferente. Quer
impor sua presença e ser respeitado, nem que seja por meio de uma briga – entre
cavalheiros. Mas é simplesmente ‘tratado como uma mosca’. Preferia ter se
batido em duelo, para provar que tem dignidade, que não é um covarde. Esta
necessidade de se afirmar diante dos outros causa uma dependência psicológica
para manter a auto-estima. Quando não é reconhecido, o ‘homem do subsolo’ se
impõe inconveniente, a ponto de humilhar-se.
O narrador é mais
culto e vaidoso que os frequentadores de tavernas, e se sente intimidade não
por covardia, mas por amor-próprio. Romântico, ele que proteger seu ‘ponto de honra’. Mas apenas consegue ser
ignorado. É obsessivo a tal ponto que quando se sente humilhado, ele passa a
seguir e até pesquisar a vida de quem o ofendeu. Ou então transforma a obsessão
em forma literária – tal qual a narrativa que faz agora. Escreve uma novela
onde o ofensor é descrito de forma caricatural, ironizado sem piedade. É essa
sua forma de vingança. Pobre literato!
Ao mesmo tempo em que
deseja desafiar o ofensor para um duelo, o narrador espera a amizade do outro,
como uma forma de reconhecimento. O outro tem status, mas o narrador tem erudição literária. Mas o narrador quer
é se impor – marcar sua presença no mundo, deixar o anonimato. E o mais
importante é não ceder passagem – os outros que desviem! Ele é o culto, o
inteligente, o narrador que é o umbigo do mundo. Afinal, só temos a perspectiva
dele.
Andar nas ruas já é
uma forma de acatar hierarquias. Um oficial se desvia para um general passar,
mas quando é um civil, o oficial simplesmente atropela. A posição social
determina até o uso das calçadas! Caminhar na principal avenida de São
Petersburgo é uma forma de medir o status
social – desfilar e esperar que as pessoas subalternas se desviem. Andar e ter
prioridade sobre o uso da calçada - isto é privilégio! A forma de se vingar é
não se desviar... mas terá tal ousadia? Afinal, deve estar apresentável,
sociável, para ser visto como igual. O ofensor só aceitará o desafio de alguém
de mesmo status. Um cavalheiro jamais
se ofenderá com a audácia de um plebeu.
É tecendo todo um
plano que o narrador resolve não se desviar na calçada. Faz planos e sofre –
como um obsessivo. E finalmente entra em ação – o outro vem, o narrado não se
desvie – ombro contra ombro – mesmo que sofrendo maior abalo, o ‘homem do
subsolo’ sente ter se comportado como alguém digno, e mais: agindo como alguém
da mesma classe social. Entenda-se: o direito de não ser pisado.
Enquanto idealista, o
narrador se idealiza, imagina-se um herói. Vive dentro de sonhos para evitar os
choques da realidade. Não aceita ser um medíocre : ou é um herói ou um
salafrário. “Ou herói ou a lama, não
havia meio-termo.” (p. 69) Um herói pode até cair na lama, mas não se suja
inteiramente. Em seus devaneios o narrado ora despreza o mundo, ora espera
aplausos. E tudo isso é confessado.
“Os senhores dirão
que é vulgar e indigno expor tudo isso em praça pública, depois de tantos
arrebatamentos e lágrimas que eu mesmo confessei. Por que seria indigno? Será
possível que os senhores pensem que eu me envergonho de tudo isso e que tudo
isso era mais idiota do que qualquer episódio de suas próprias vidas?” (p. 71)
O homem do subsolo
vive em seu canto em reclusão e de repente precisa cultivar certa
sociabilidade, encontrar alguns funcionários e literatos. É o ‘desejo de
abraçar a humanidade’ como ele mesmo diz. Adentra as reuniões e saraus, mui
modestamente, é pouco percebido, é solenemente ignorado. Imagina-se ignorado
por ser um sujeito sem sucesso na vida. E as pessoas só bajulam aquelas com
status e renda superiores. O mais baixo se inclina diante do mais alto. Os
grupos sociais se organizam hierarquicamente: uns mandam, outros obedecem.
Principalmente, o exército e a burocracia. [Tanto que na Rússia pós-revolução
as segmentações continuaram, pois havia o Partido e o povo, havia o Exército
Vermelho e os civis; formulários e condecorações não foram abolidos.]
Sempre há os
superiores, aqueles de sucesso, ou que assim se consideram, e o narrador
detesta prestar vassalagem a estes privilegiados, enquanto a maior parte da
sociedade é subalterna e submissa. É um homem culto, um literato, mas fará
parte da intelligentsia? É letrado,
mas não passa de um funcionário ordinário. (O mesmo drama de um certo amanuense
Belmiro, de obra homônima de Cyro dos Anjos) O que o homem do subsolo sente em
relação aos superiores é uma mescla de aversão e admiração, uma certa inveja,
um ressentimento, por ele mesmo não ser uma excelência.
As cenas de sociedade
são descritas apenas para que o narrador possa ‘verter seu fel’, contra os de
sucesso e os que pretendem, contra os medíocres e os aduladores. Mas, ao mesmo
tempo, quer ser olhado com respeito por estes mesmos que ele despreza. Colegas
de escola, funcionários, servidores, oficiais, pessoas com as quais o convívio
é social, não pessoal, muito menos íntimo. No mais, o homem do subsolo não
hesita em se prejudicar – não usa os contatos para subir na sociedade, antes
cria inimizades, aumenta as exclusões. Ele é o maior inimigo de si mesmo.
Se sentindo diferente
e por isso rejeitado, o narrador relembra suas agruras na infância, na escola,
as zombarias, as portas fechadas, os cinismos dos arrivistas, o esforço para
estudar, a inveja dos iletrados. Ele tenta fazer amigos, mas é sempre
possessivo e ciumento, e quer tiranizar o amigo, e quando este se submete, ele
o despreza. Assim ele vive somente atento ao amor-próprio, que oscila a cada
olhar de indiferença ou desprezo. Os contatos com os outros não é como
idealizado, não se encaixa nas expectativas. Na realidade existe pouco daquela
literatura que ele cultiva. Os diálogos são banais e simplórios, as pessoas são
superficiais.
Por mais que se sinta
excluído, o homem do subsolo não quer ser incluído, pois despreza as reuniões
sociais, recheadas de hipocrisia e subserviência. E, se ele resolve participar
de algum evento social, acaba por se prejudicar – ao não ser conveniente, não
seguir as regras da etiqueta. E é assim não porque ele seja o mais estúpido,
mas por ter um excesso de consciência – ele percebe as piruetas do circo
social. Percebe-se atuando, usando uma máscara, e rebaixando-se ao nível dos hipócritas
e arrivistas. Para se dar bem entre os hipócritas basta ser outro medíocre,
fazer parte do grupo. Justamente o que é impossível para o homem do subsolo.
Ele obsessivamente
tenta explicar, justificar todas as ações e méritos, todas as ousadias e fracassos,
como hesita diante dos superiores, como evita os inferiores, como prejudica os
próprios interesses, como fecha as portas ao seu avanço. “’Ó Senhor, será para mim esta sociedade?’, pensava eu. ‘E como fiz papel
de bobo na frente deles! Os imbecis acham que me fizeram uma grande honra ao
conceder-me um lugar na sua mesa, mas não entendem que sou eu que estou fazendo
uma grande honra a eles, e não o contrário!” (pp. 89-90) Pois o
ressentimento guia o homem do subsolo, “Não
estava habituado, fiquei logo embriagado e, com isso, cresceu ainda mais meu
ressentimento. De repente me deu vontade de ofender a todos da maneira mais
insolente e depois ir embora. Aproveitar o momento propício e mostrar meu valor
– ele que digam depois: apesar de ridículo, ele é inteligente... e ... e...
ora, ao diabo com eles!” (p. 90)
Ele adentra reuniões
de sociedade e não hesita em dizer algumas verdades, se justificar, implorar
por atenção, e logo será caluniado e ofendido, quando não punido e jogado ao
limbo dos sinceros inconvenientes. O narrador quer se enturmar, mas do jeito
dele, nas regras dele. Despreza os arrivistas, mas quer ser admirado por eles e
fazer parte da festa. Ele se expõe ao ridículo, ao vexame da humilhação
pública, doentios impulsos ao desprezo, “Era
impossível humilhar-me de maneira mais vergonhosa e voluntária.” (p. 94) De
nada impor a própria ‘cultura e erudição’ aos outros, que se movem por seus
próprios interesses. Febrilmente, ele se prejudica, ele se mortifica. Para
Freud, seria um ego torturado pelo id e vigiado pelo superego.
Pior de tudo é que os
outros são indiferentes a ele : sequer podem se sentir ofendidos por ele! É
pior do que ser cuspido em público. Ele
se autotortura e está consciente disso. Tem uma terrível consciência de tudo ao
redor: um olhar de observação aos detalhes. (Assim é o narrador de Fome, assim são Roquetin em A Náusea e Luís da Silva em Angústia. Todos vítimas de uma atenção
obsessiva.) “O problema é que naquele
exato instante eu percebia, de maneira mais clara e viva do que qualquer outra
pessoa no mundo, todo o torpe absurdo de minhas suposições e todo o reverso da
medalha, mas...” (p. 99)
Tudo o que o desatina
é a não-admiração alheia. Daí exibir seus desespero, “Vejam todos até que ponto
podem levar um homem desesperado!” (p. 99), para se legitimar diante dos
outros. É todo um jogo ambivalente: desprezo aos outros, mas são estes mesmos
outros cujos olhares sustentam sua identidade. Ele está disposto a tudo para
ser aceito – mesmo quando ironiza tal aceitação: afinal conviver com desprezíveis
não se tornar também desprezível? Mas não é pior quando até os desprezíveis o
desprezam? Para ele é a vergonha suprema.
No mais, ele sente um
prazer mórbido em se sujeitar, em se resignar, em aceitar o destino. Sua
miséria está traçada e não há que se possa fazer. Sente que está perdido, que
segue para a ruina, e, mesmo consciente, ele continua rumo ao desastre. Sua
sorte é que os ofendidos nem se lembram de qualquer ofensa. Mas ele precisa se
vingar de alguém – nem que seja contra uma pobre prostituta. Ele jaz no que
considera depravação – física e moral – num quarto ao lado de uma profissional
do sexo e não pode deixar de tecer suas ruminações.
Junto da pobre
prostituta – figura que aparecerá em outros romances do autor russo, por
exemplo a Sonia de Crime e Castigo e
a cocote Nastácia de O Idiota – o
homem do subsolo começa suas inquirições e lições, a destilar suas leituras e
indigestões. Ele veio de um subsolo e se encontra no subsolo de outro alguém,
mas mesmo assim só sabe julgar o subsolo alheio. A jovem é obrigada a se
prostituir devido a sua miséria – assim acontecera com a Fantini de Os Miseráveis, de Victor Hugo – e o
narrador só sabe julgá-la como se fosse a real culpada por tal degradação..
“Virei-me com repugnância; já não estava argumentando com frieza.
Começava a sentir o que dizia e me exaltava. Estava ansioso para discorrer
sobre as minhas ideiazinhas secretas que cultivara no meu canto. Algo em mim se
inflamou: ‘surgira’ um objetivo.” (p. 108) Aqui o objetivo é a conversão da
jovem prostituta no melhor estilo ‘vá e não peques mais’ moralista cristão.
Vender o próprio corpo é como ‘vender a alma ao diabo’. Toda a atenção dada à
prostituta é uma forma de criar um julgamento rigoroso. É humilhante e causa
ainda mais angústia. E para ela é como se o homem estivesse lendo um livro :
ele fala tal um livro : é meramente discursivo.
Ele alerta a
prostituta sobre o ‘caminho da perdição’ mas tudo faz para que ela se sinta
ainda mais miserável. Por alguns momentos, ele sabe que, se ela não fosse tal
degradada, até se apaixonaria por ela. É o mesmo drama do assassino e da
prostituta em Crime e Castigo, quando
Raskolnikov e Sonia leem a Bíblia no quarto sórdido. Como poderá ele amar uma
mulher que perdeu toda a ‘pureza’? quando vale o amor para ela? Ou sobrou algo
além do sexo ? Alguns rublos e a consciência pesada?
“Eu me tornara tão
patético que quase me deu um espasmo na garganta e... De repente parei, ergui o
tronco assustado e, inclinando amedrontado a cabeça, pus-me a escutar, com o
coração disparado. Algo perturbador estava de fato acontecendo.
Já bem antes eu havia
pressentido que estava revolvendo toda a sua alma e partindo o seu coração e,
quanto mais eu me certificava disso, mais queria atingir esse objetivo o mais
rápida e poderosamente possível. Foi o jogo, o jogo que me estimulou; aliás,
não foi apenas o jogo...” (p. 119)
Ele sabe que é
‘artificial e livresco’ mas continua a pregar moral contra a jovem ‘degradada’.
A jovem que se debate em convulsões de desespero. Depois, ele tenta acalmá-la,
mas, em pânico, só pensa em ir embora. Então ela quer provar que não é tão
‘decaída’, até recebe cartas de amor, sim, de um estudante, que desconhece a
‘profissão’ da amada. Para a jovem, em tal condição, em tamanho desespero e
vergonha, aquela carta era um ‘tesouro’, como bem sabe o narrador, apesar de
todo o seu sentimentalismo e cinismo. Para abafar sua consciência – e a
angústia que esta causa - ele perambula pelas ruas.
“Era especialmente ao
anoitecer que eu gostava de passear por essas ruas, justamente quando é mais
densa a multidão de transeuntes de todos os tipos, gente do comércio e
artesãos, com rostos preocupados e irritados, que voltam para casa depois de um
dia de trabalho. eu gostava exatamente dessa agitação barata, dessa coisa descaradamente
prosaica. Mas, dessa vez, todo esse empurra-empurra das ruas me fez ficar ainda
mais nervoso. Não conseguia me controlar nem encontrar uma explicação. No meu
íntimo algo crescia, crescia sem parar, dolorosamente, e não queria sossegar.
Voltei para casa num péssimo estado de espírito. Era como se um crime me
pesasse na alma.” (p. 125)
Crime que depois será
real, duplamente real, no destino de Raskolnikov, que culpado vem a preparar o
próprio castigo. Os crimes do homem do subsolo são de natureza livresca, isto
é, nascem de sua vontade de romantizar, de impressionar, de passar por herói e
aceitar duelos, de salvar mocinhas dos antros de perdição, de julgar moralmente
os hipócritas. Ele imagina cenas de romance – a arrependida prostituta a se
jogar aos seus pés, considerando-o o nobre salvador. Ele a desposar uma mulher
salva da degradação!
Além dos problemas na
sociedade – repartição, colegas, vizinhos – o homem do subsolo sofria com seu
criado, orgulhoso e pedante, que sabia pagar ressentimento com mais
ressentimento. Um verdadeiro caso de ‘morando com o inimigo’, com a relação
patrão-empregado tensionada por desconfiança e desprezo mútuo. Um atraso de
pagamento de salário é motivo para recriminações e insultos. Quando a jovem
prostituta vem em visita ao homem do subsolo mais cenas de pobreza e humilhação
– para todos! – se seguem. Todo o rancor do narrador explode numa crise
nervosa. Ele deseja a mulher ao mesmo tempo em que a despreza – está assim em
constante ambiguidade e dissonância moral. “O
principal mártir era evidentemente eu mesmo, porque estava plenamente
consciente de toda a baixeza asquerosa daquela minha raiva estúpida, e ao mesmo
tempo não conseguia absolutamente me dominar.” (p. 138)
Em seu subsolo o
homem não hesita em humilhar e ironizar ainda mais a jovem indefesa. Se ele
simulou ser compassivo e sentimental, foi para melhor humilhá-la. “Fui humilhado, então também quis humilhar;
fui pisado como se fosse um trapo e quis demonstrar o meu poder...” (p.
139) ele desabafa. E a jovem é moral e fisicamente abatida – como ‘derrubada
por um golpe de machado’, a prever o crime de Raskolnikov (em obra publicada um
ano depois, 1866) – e pode perceber que há gente pior do que ela.
Ele se disfarça de
herói , mas detesta os ‘humilhados e ofendidos’ e despreza a realidade. Ao
confessar, ele não pode deixar de se detestar por justamente confessar! “E estas coisas que estou confessando a você
agora, também nunca lhe perdoarei por elas!” (p. 140) Tudo porque ele vive
afastado da vida real – idealiza para sobreviver. E a mulher percebe a maior
miséria do narrador: “ela percebeu que eu era infeliz.” E ela acaba por abraçá-lo
e ambos choram quase até a histeria – uma cena de subsolo. Com toda a
ambivalência : “como eu a odiava e me
sentia atraído por ela naquele instante! Um sentimento reforçava o outro.”
(p. 143)
O narrador se declara
incapaz de amar – isto é, se solidarizar – pois somente sabe dominar, ou
desejar o domínio. Para ele, no subsolo, a vida é luta, a aproximação do outro
é uma conquista. Mas, para a jovem ‘decaída’, o amor é uma forma de
‘ressurreição’, ao encontrar um amante, um marido, e deixar o comércio sexual.
Com seu cinismo, ele apenas a humilha mais. Mas até esta crueldade é livresca,
é inventada! Ele sabe que é egoísta e
pouco respeitoso – ele sabe e não pode mudar. O drama da consciência ‘corrosiva
e dolorosa’ a ampliar o sofrimento: a vida de penúrias e ressentimentos aumenta
a introspecção (como veremos em Fome e Pergunte ao Pó). “E de fato agora eu mesmo estou colocando uma questão ociosa: é melhor
uma felicidade barata ou um sofrimento elevado? Então, o que é melhor?” (p.
147)
Ele lembra que tudo é
narrado a partir de lembranças, então vitimado por uma memória obsessiva (no
século 20 temos os memorialistas Proust e Nava, com suas memórias excepcionais)
ao se punir com tal confissão – “pelo
menos fiquei envergonhado durante todo o tempo que levei para escrever esta
narrativa: consequentemente, isto já não é literatura, e sim um castigo
correcional.” (p. 147) E enquanto castigo, vem corrigir ao narrador e aos
leitores, no que estes se identificam com aquele, a teimosia de continuar
tecendo as teias que prejudicam não somente aos outros, mas principalmente a si
mesmo.
Assim, ele, o homem
em seu subsolo, sabe que é um anti-herói, um anti-exemplo, um perverso livresco
que merece ficar mesmo nos livros. Ele sabe, sabe até demais. E se justifica a
cada linha de confissão – precisa existir diante do(s) imaginado(s)
interlocutor(es) / leitor(es), para ser
admirado e odiado. É um ‘paradoxista’ perdido em ambivalências – detesta o
leitor ao mesmo tempo em que precisa do leitor, em que somente existirá ao
surgir nos olhares do leitor. Permanecerá anônimo como se espera de um vulto
nas sombras, demasiadamente consciente de sua condição de homem do subsolo.
fonte: DOSTOIÉVSKI, Fiódor . Notas do Subsolo. Trad. Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.
dez/12 & mar/13
Leonardo
de Magalhaens
Mais info em
Considerado por alguns “o Dostoiévski francês”, Georges Bernanos figura entre os grandes escritores cristãos do século XX. Sua obra tem sido publicada no Brasil pela É Realizações Editora, e agora sua passagem pelo país é narrada ao público local. O estudo de Sébastien Lapaque “Sob o Sol do Exílio: Georges Bernanos no Brasil (1938-1945)” acaba de ser publicado, trazendo à luz a visita de Bernanos a várias cidade do Rio de Janeiro e Minas Gerais, sua estadia no sítio Cruz das Almas, sua revolta contra a mediocridade dos intelectuais e a ascensão do totalitarismo, sua amizade com pensadores brasileiros e a visita que Stefan Zweig lhe fez à véspera de se suicidar.
ResponderExcluirMatérias na Folha de S. Paulo a propósito do lançamento do livro: http://goo.gl/O8iFve e http://goo.gl/ymS4lL
Para ler algumas páginas de “Sob o Sol do Exílio”: http://goo.gl/6hAEOM
Confira também:
Diálogos das Carmelitas: http://goo.gl/Yy3ir3
Joana, Relapsa e Santa: http://goo.gl/CAzTTk
Um Sonho Ruim: http://goo.gl/Kd091z
Diário de um Pároco de Aldeia: http://goo.gl/ISErLc
Sob o Sol de Satã: http://goo.gl/qo18Uu
Nova História de Mouchette: http://goo.gl/BjXsgm
ANDRÉ GOMES QUIRINO
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