segunda-feira, 19 de novembro de 2012

sobre EU - poemas de Augusto dos Anjos (P2)

 



sobre os poemas de “Eu” (1912)
de Augusto dos Anjos (1884-1941)


O Eu poético entre o Corpo e a Mente, o Finito e o Metafísico




Parte 2

Drama da Consciência

Augusto dos Anjos era a personificação do mal-estar do pensador: o autor vivia atormentado entre o materialismo e o misticismo, entre o positivismo e o espiritualismo, num embate entre o vivido e o possível, o que se pode tocar e o que apenas se pode imaginar, e sobretudo uma agônica luta entre o corpo e o espírito (que também encontramos em poemas de Baudelaire),

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme
num leito de feridas, goza
O
lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija
a peçonha, e não se contamina!

(Gemidos de Arte)

É neste embate que surge a crítica do poeta ao filósofo moderno sempre cavando em busca de novas descobertas, investigando a Natureza para catalogar fenômenos e leis físicas, mas em esforço vão, que leva ao ceticismo e ao niilismo,

Ai vem sujo, a coçar chagas plebeias,
Trazendo
no deserto das ideias
O
desespero endêmico do inferno,
Com
a cara hirta, tatuada de fuligens,
Esse
mineiro doido das origens,
Que
se chama o Filósofo Moderno!

(Monólogo de uma Sombra)

e

Homem! por mais que a Ideia desintegres,
Nessas
perquisições que não têm pausa,
Jamais,
magro homem, saberás a causa
De
todos os fenômenos alegres!

(As Cismas do Destino)

A poesia é carregada de morbidez, mas uma faísca de profunda filosofia a repelir a morte, por mais que a morte seja a 'palavra final', a imperativa condição de desintegrar-se no Nada, assim em As Cismas do Destino”,

Morte, ponto final da última cena,
Forma
difusa da matéria imbele,
Minha
filosofia te repele,
Meu
raciocínio enorme te condena!


Então, mesmo em vão, o poeta se rebela contra as leis da Natureza, a decadência e a morte, em ciclos do fenecer e do renascer, antes a preferir um nirvana (como aquele ansiado pelos budistas), um cessar do desespero,

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

(Queixas Noturnas)

e

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Ideia Soberana!

(O Meu Nirvana)


PoisVieram todos, por fim; ao todo, uns cem... / E não pôde domá-lo enfim ninguém, / Que ninguém doma um coração de poeta!(Vencedor) onde a condição de poeta é vista como superação e vitória.


No ciclo de vida e morte, jaz à margem a angústia do inexistente, o não-nascido, o Nada. Então a se questionar se pior do que nascer é não ter nascido? Eis o profundo Desespero que se projeta de uma visão cósmica, onde fazem falta as coisas incriadas, que jazem perdidas em potencialidades que não se realizam, 'o que poderia ter sido' e não se concretiza,


Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!

E a dor da Força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza.
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é em suma, o subconsciente formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!

(“O Lamento das Coisas”)


Atentos, alguns autores defendem um olhar espiritualista sobre a poética de Augusto dos Anjos, que não seria tão materialista assim, como outras leituras apontam; antes um estudioso de gnoses e outros esoterismos, segundo o psiquiatra e psicoterapeuta Paulo Urban, em seu blogAmigo da Alma,

Entretanto, se nos detivermos mais serenamente sobre sua obra, encontraremos não obstante os termos difíceis por onde esbanja o cientificismo, toda uma mística que lhe serve de arcabouço, inequívoca função compensatória para o pessimismo declarado do poeta, sempre a questionar severamente o sentido de nossas vidas. Em alguns de seus sonetos e outras partes não tão popularizadas de seus versos, deparamo-nos com um caráter filosófico ocultista absolutamente singular em toda a literatura brasileira, com genuínas reflexões à moda esotérica, em versos sublimados por uma religiosidade espiritualista, voltados para a libertação e transcendência de nossa alma, que, no mais das vezes, vive atormentada.
e mais,

Esta sua mística, espécie de filosofia em forma de poesia inclassificável, destoante de qualquer escola literária, transborda por seus intrincados versos, científicos sim, mas, sobretudo, herméticos. Exemplos tácitos de sua espiritualidade poética, dentre tantos outros, sãoO Lamento das Cousas, soneto schopenhaueriano que bem sintetiza os paradoxos atualmente pesquisados pela mecânica quântica;O Meu Nirvana;Caput Immortale;Louvor à Unidade, soneto que privilegia a mônada de Leibnitz (ou pitagórica, se preferirem);Supreme Convulsion;Natureza Íntima, verdadeira máxima alquimista, a de que a natureza evolui per si e também em decorrência do aprimoramento pessoal de cada um;Ao Luar, soneto em que descreve aquilo que bem pode ter sido uma experiência sua fora do corpo, fenômeno este com que se preocupam hoje os parapsicólogos; eUltima Visio, no qual é a alquimia gnóstica quem se pronuncia.



Percebemos que a interpretação espiritualista de P. Urban ajudaria a entender versos como estes deQueixas Noturnas, que destoam na obra de um poeta 'materialista',

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais.
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

e emA Vitória do Espírito,

Além, entanto, na redoma clara
Que envolve a porta da região etérea,
O espírito da viúva se quedara
Ao contemplar dessa fulgente porta
E dessa clara e alva redoma aérea,
No desfilar de sua carne morta
A transitoriedade da matéria!


O eu lírico encontra-se num dilema entre a fé e o ceticismo, entre o cristianismo (no qual foi criado, por família tradicional) e o niilismo (que foi aprendido nas tantas leituras), ora situa-se de um lado, ora do outro, basta compararAs Cismas do DestinocomCítara Mística”, para nos inquietarmos com as ambivalências do poeta, dilacerado e antagônico,

Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era
a expectoração pútrida e crassa
Dos
brônquios pulmonares de uma raça
Que
violou as leis da Natureza!

(...)

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob
a forma de mínimas camândulas,
Benditas
sejam todas essas glândulas,
Que,
quotidianamente, te segregam!

Escarrar
de um abismo noutro abismo,
Mandando
ao Céu o fumo de um cigarro,
mais filosofia neste escarro
Do
que em toda a moral do Cristianismo!

(...)

e

Cantas... E eu ouço etérea cavatina!
nos teus lábios - dois sangrentos círios -
A gêmea florescência de dois lírios
Entrelaçados numa unção divina.

Como o santo levita dos Martírios,
Rendo piedosa dúlia peregrina
À tua doce voz que me fascina,
-Harpa virgem brandindo mil delírios!

Quedo-me aos poucos, penseroso e pasmo,
E a Noite afeia corno num sarcasmo
E agora a sombra vesperal morreu...

Chegou a Noite... E para mim, meu anjo,
Teu canto agora é um salmodiar de arcanjo,
É a música de Deus que vem do Céu!


Entre a e a descrença, uma possibilidade de esperança? Temos a esperança, mas é de se desconfiar da Esperança – a lembrar o episódio da caixa de Pandora - para o pensador Nietzsche a esperança é derradeiro e o pior dos males (emHumano, Demasiado Humano), uma vez que ter esperança apenas reforça o comodismo de esperar pelo melhor que virá amanhã ou sabe-se quando...

O homem tem agora o vaso da felicidade, e pensa maravilhas do tesouro que nele possui; este se acha a sua disposição: ele o abre quando quer; pois não sabe que Pandora lhe trouxe o recipiente dos males, e para ele o mal que restou é o maior dos bensé a esperançaZeus quis que os homens por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhe deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens.


Para a poética augustiana a Esperança tem o papel de equilibrar, quando se perdem sonhos para um ser descrente, a superação na presença de novos sonhos que incentivam a novos avanços,

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também
como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se
sonhos nas asas da Descrença,
Voltam
sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No
entanto o mundo é uma ilusão completa,
E
não é a Esperança por sentença
Este
laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te
a crença de fanal bendito,
Salve-te
a glória no futuro - avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também
espero o fim do meu tormento,
Na
voz da morte a me bradar: descansa!

(“A Esperança”)


Compreendemos, enfim, que o EU de Augusto dos Anjos não é um ente egocêntrico no sentido de egoísta, pois não se volta apenas para si mesmo, em seus dramas cotidianos , mesquinhos, mas, antes, está preocupado com o drama de todos os humanos, do passado, do presente e do futuro, sacudidos pela consciência, abatidos pelas dúvidas e golpeados pelos infortúnios. Ele tem consciência de si mesmo, ao mesmo tempo em que procura se entender, a antiga questão do 'quem sou eu', assim no sonetoAnseio,

Quem sou eu, neste ergástulo das vidas
Danadamente, a soluçar de dor?!
- Trinta trilhões de células vencidas,
Nutrindo uma efeméride interior.


Neste olhar voltado para um macrocosmoonde se insere o efêmero microcosmo da consciência individual, mera ilusãositua-se convincente o budismo no poeta, que não ignorava as correntes filosóficas do época, principalmente o evolucionismo e o positivismo, todas estudadas com o arraigado pessimismo – que encontramos também no poeta italiano Leopardi e no pensador alemão Schopenhauer – sempre a manter o eu lírico em inquietação, em doloroso ceticismo, sem abraçar uma fé em devoção.

Entre o corpo e a alma, entre a fé e a descrença, em pleno drama da Consciência, 'em som e fúria' sobre um palco (mas expressou Shakespeare em Macbeth), o poeta Augusto dos Anjos deixou como legado uma poética de indagações, de visões inquietantes, que ameaçam o nosso senso comum de meias-verdades e mesquinharias cotidianas, ao dispor em caleidoscópio, entre sombrio e escarlate, o mundos das verdades que sangram, dos pesadelos que dilaceram, das podridões que insistimos por ocultar de nós mesmos. Seu Eu sem egoísmos engloba o nosso Nós de aflitos indagadores de um Sentido para existir.



Out/12

(revsd: nov/12)

Leonardo de Magalhaens





Links diversos


poemas :







ensaios sobre a poética de Augusto dos Anjos













artigo em História Viva




monismoHaeckel


ver mais em :




Schopenhauer e Augusto dos Anjos

referência à H. Spencer



poema de Augusto dos Anjos musicado
por Arnaldo Antunes (rock)
Budismo Moderno

por Folklord (pagan)
Os Doentes


Poeta com um estilo a la Augusto

Henriques do Cerro Azul





Referências


ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1998.

BOSI, Alfred. História Concisa da Literatura Brasileira. Cultrix, SP, 1975.

Augusto dos Anjos / seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Zenir Campos Reis. São Paulo: Abril Educação, 1982. (Literatura Comentada)

Literatura no Brasil, A. Direção Afrânio Coutinho; co-direção Eduardo de Faria Coutinho. ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2004.

Um comentário:

  1. Gostei muito do ensaio, me fez conhecer mais sobre esse grande poeta que tanto prezo. OBRIGADO.

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