Sobre
'Pé
na
Estrada'
(On
The
Road,
1951;1957)
do
escritor
e
poeta
Jack
Kerouac
(1922-1969)
(tradução
de
Eduardo
Bueno
/ 1984)
Testemunho
da
vida
em
movimento
parte 1
A
poesia
Beat
O
movimento
Beatnik
(ou
geração
Beat)
representou
um
momento
de
contestação
e
espontaneidade
em
plena
consonância
com
a
geração
pós-guerra,
a
mesma
geração
que
proclamaria
uma
'Contracultura',
uma
subversão
da
civilização
e
uma
libertação
da
libido.
Com
a
grande
potência
norte-americana
em
destaque,
não
é
de
se
admirar
que
no
seio
dos
próprios
EUA
surgisse
um
grupo
de
literatos
e
poetas
engajados
(ou
não)
em
contestação
contra
o
poderio
hegemônico
da
nova
potência.
Graças
às
traduções
e
releituras
críticas
de
Cláudio
Willer,
graças
à
tradução
de
On
The
Road
feita
pelo
entusiasta Eduardo
Bueno
(ou
Peninha),
o
movimento
Beatnik
teve
acolhida
e
influência
nos
poetas
e
literatos
brasileiros
a
partir
dos
anos
1970
– principalmente
na
chamada
'poesia
marginal'
e
na
nova
poética
surrealista
(em
contraponto
ao
concretismo).
Com
vinte
anos
de
atraso,
mas
finalmente
os
poetas
brasileiros
podem
receber
a
influência
Beat.
Os
poetas
da
geração
60
em
São
Paulo
são
um
exemplo.
O
nome
de
Roberto
Piva
se
destaca
ao
lado
de
Willer,
juntamente
com
Roberto
Bicelli
e
Antonio
Fernando
de
Franceschi,
segundo
se
apresenta
no
livro-reportagem
“Os
Dentes
da
Memória”.
(1)
Os
poetas
beatniks
mostram
uma
variedade
de
estilos
e
dicções,
estão
ao
lado
do
ritmo
(da
batida,
'beat')
quanto
da
'beatitude'
(no
sentido
de
plenitude
de
viver,
não
de
resignação
ou
mortificação
piedosa)
mas
enquanto
característica
geral
– se
podemos
mesmo
falar
em
'movimento'
– temos
o
fato
de
se
tem
duas
coisas
que
todos
odeiam
são
MORALISMO
e
HIPOCRISIA.
Estão
disposto
a
apregoar
uma
'Contracultura'
– e
estamos
falando
dos
EUA
pós-guerra
– com
a
guerra
na
Coreia
e
as
intervenções
militares
na
América
Central,
e
depois
nas
selvas
do
Vietnam
– anos
60
e
70.
São
poetas
que
desconfiam
da
civilização
(Kultur)
ocidental,
suspeitam
da
racionalidade
(ou
dita
'racionalidade
instrumental'
(2))
e
admiram
a
cultura
oriental
– principalmente
a
placidez
budista
– e
idolatram
o
irracionalismo,
o
surrealismo,
o
xamanismo,
o
ecologismo
– em
suma,
as
raízes
expressivas
da
Contracultura.
O
movimento
beatnik
buscava
uma
purificação
dos
sentidos
mais
do
que
um
'desregramento
de todos
os sentidos'
(nas
palavras
do
poeta
francês
Rimbaud),
buscava
mais
uma
liberdade
interior
do
que
uma
libertinagem.
Não
é
culpa
dos
autores
Beat
que
o
desregramento
e
a
libertinagem
tenham
dominado
– e
não
a
purificação
e
a
liberdade
(abstratos
para
os
'não-eleitos')
O
amor
pela
natureza
é
visível
na
maioria
dos
autores
Beats
– por influência de Thoreau e Whitman, em
harmonia
com
os
hipsters
ou
hippies
– que
até
hoje
tem
influência
cultural-midiática
– vejamos
o
belo
filme
'Into
the
Wild'
(no
Brasil:
Na
Natureza
Selvagem)
quando
um
jovem
ouve
o
'chamado
da
natureza'
(tal
qual
nos
livros
de
Jack Kerouac,
e
antes,
de
Jack
London)
(1)”Os
Dentes
da
Memória”,
Renata
D'Elia
e
Camila
Hungria.
2011.
Alguns
links:
notícia:http://www.redebrasilatual.com.br/blog/curta-essa-dica/livro-mostra-os-dentes-afiados-dos-poetas-paulistas-dos-anos-60
;
http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/762084-livro-captura-historia-de-roberto-piva-e-companheiros-de-geracao.shtml
;
resenha:
http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/trajetoria_da_poesia_paulista.html
;
Obra
de
Piva
segundo
Willer:
http://www.revista.agulha.nom.br/agulha6piva.html
vídeo:
http://www.youtube.com/watch?v=PjkC5qr5zgU
(2)O
conceito
de
'racionalidade
instrumental'
está
em
Adorno
&
Horkheimer,
“A
Dialética
do
Esclarecimento,
publicado
em
1950.
Ambos
participaram
da
Escola
de
Frankfurt
que
atuava
na
crítica
social,
incluindo
pensadores
como
Walter
Benjamin
e
Herbert
Marcuse.
Além
de
Claudio
Willer,
outros
literatos
se
debruçaram
sobre
as
interferências
e
influências
dos
autores
Beat,
quando
agiam
na
cultura
através
de
uma
pregação
de
'contracultura',
quando
denunciavam
com
ironia
e
iconoclastia
os
imperialismos
de
poder
e
consumo
na
nova
potência
norte-americana
que
surgia
das
cinzas
dos
conflitos
mundiais.
A
importância
dos
autores
Beat
é
ressaltada
pelo
poeta,
tradutor
e
crítico
literário
Rodrigo
Garcia
Lopes
que até fala em “revolução nas letras e na cultura
norte-americanas”,
“Impossível
falar
de
contracultura
sem
mencionar
Irwin
Allen
Ginsberg
(1926-1997)
e
os
melhores
escritores
associados
à
geração
beat
(como
seus
gurus,
William
Burroughs
e
Jack
Kerouac,
ou
ainda
Gary
Snyder,
Lawrence
Ferlinghetti
e
Gregory
Corso).
Os
beats
foram
responsáveis
por
fazer
uma
revolução
nas
letras
e
na
cultura
norte-americanas,
com
impactos
até
nossos
dias.
Com
exceção
da
chamada
language
poetry
(anos
1970),
nenhuma
outra
formação
poética
norte-americana
afetou
com
tanta
virulência
a
paisagem
literária
desde
a
Segunda
Guerra
Mundial.
Os
beats
tiraram
a
poesia
dos
gabinetes
sisudos
(onde
mofavam
sob
o
espectro
de
T.
S.
Eliot
e
o
modernismo
classicizante
da
“nova
crítica”)
e
botaram-na
na
rua,
tornando-a
viva,
para
os
vivos,
novamente.
Ginsberg
e
seus
comparsas
ganharam
proeminência
na
segunda
metade
dos
anos
1950,
com
obras
que
representavam
uma
reação
ao
formalismo
então
dominante
nas
letras.
Eram
tempos
de
conformismo,
prosperidade
econômica,
caça
aos
comunistas,
racismo
e
pobreza
espiritual,
representados
pelo
consumismo
desenfreado
do
American
Way
of
Life.
Também
interessante
e
informativo
o
ensaio
de
R. Garcia
Lopes
sobre
a presença e obra do poeta Michael
McClure,
no
centro
da
'Renascença
Cultural'
em
San
Francisco,
em
meados
dos
anos
1950,
atuando
sobre
letras
e
comportamentos,
“Uma
das
principais
figuras
do
movimento
Beat
— fenômeno
literário
e
contracultural
que
agitou
o
cenário
norte-americano
nos
anos
50
e
60
mas
que
continua
em
alta
por
lá
— o
poeta,
dramaturgo
e
ensaísta
Michael
McClure,
cuja
obra
permanece
inédita
no
Brasil,
é
tido
por
críticos
importantes
como
o
mais
respeitável
porta-voz
de
sua
geração.
Seja
através
de
peças
polêmicas
como
The
Beard,
ou
em
performances
e
poemas
que
celebravam
a
natureza
e
novas
formas
de
percepção,
a
liberdade
sexual
e
a
expansão
da
consciência,
seja
atacando
a
farsa
do
"sonho
americano"
e
as
convenções
da
poesia
"poeticamente
correta"
da
época,
ele
foi
uma
espécie
de
catalizador
e
agitador
cultural
do
ambiente
da
chamada
Renascença
Cultural
de
San
Francisco,
servindo
de
ponte
entre
músicos,
poetas
e
pintores.
Como
disse
o
ator
Dennis
Hopper,
"sem
a
presença
de
McClure,
o
rugir
dos
anos
60
teria
sido
um
miado".
Recuperando
uma
tradição
libertária
da
poesia
norte-americana,
(Whitman,
Thoreau),
mas
atento
às
experimentações
e
incorporando
a
filosofia
e
a
cultura
pop
em
sua
poesia,
McClure
e
seus
parceiros
conseguiram
reacender
nos
jovens
da
época
o
interesse
pela
poesia
e
pela
ação,
influenciando
comportamentos
e
preparando
o
terreno
para
os
turbulentos
e
loucos
anos
60.
Segundo
a
lenda,
McClure
serviu
de
inspiração
para
seu
amigo
de
noitadas
Jim
Morrison,
que
via
no
poeta
mais
velho
um
modelo
para
a
sua
interferência
como
poeta
pop-xamânico,
tendo
McClure
apresentado
o
vocalista
do
Doors
à
obra
de
Blake
e
Artaud.
McClure
também
excursionou
com
Bob
Dylan,
montou
uma
banda
de
rock
com
um
"Hell
Angels"
e
deixou
sua
marca
na
música
pop
como
o
autor
de
um
dos
maiores
sucessos
de
Janis
Joplin,
"Mercedes
Benz".
“
Mais
info
/
links
crônica
de
Contardo
Calligaris
sobre
On
The
Road
sobre
a
tradução
/
divulgação
dos
Beatniks
no
Brasil
livro
“Alma
Beat”
trecho
do
livro
'Alma
Beat'
(Eduardo
Bueno
sobre
W
Whitman)
Voltando
às
origens,
os
autores
Beat
absorveram
os
mestres
do
século
anterior,
que
estavam
além
de
sua
época,
principalmente
Whitman
e
Thoreau.
Aliás,
a
influência
de
Henry
Thoreau
sobre
os
Beatniks,
segundo
Eduardo
Bueno,
em
ensaio
no
livro
“Alma
Beat”,
“Os
beats
amam
Thoreau,
e
Kerouac
– ao
abandonar
a
Columbia
University
– parece
ter
tomado
ao
pé
da
letra
uma
das
muitas
frases
antológicas
deste
ultra
rebelde:
“Quanto
mais
ar
e
luz
solar
em
nossos
pensamentos,
tanto
melhor.”
No
mais,
o
fascínio
da
estrada
e
da
vida
andarilha
não
é
novidade
na
época
dos
Beatniks,
segundo
Bueno,
pois
outros
literatos
se
inspiraram
em
suas
andanças
e
viagens,
em
terra
e
mar,
“Portanto
(e
isso
sem
citar
os
naturalistas,
caminhantes
e
escritores
John
Muir
e
John
Burroughs,
o
super
ídolo
beat
Jack
London,
o
desertor
de
navios
baleeiros
Herman
Melville,
o
jornalista
revolucionário
John
Reed,
o
implacável
assassino
de
animais
selvagens
Ernest
Hemingway
e
centenas
de
outras
estrelas
norte-americanas
com
um
pé
ou
uma
gota
de
sangue
na
estrada),
quando
os
beats
arrombaram
a
cena
literária
na
América,
a
estrada
estava
longe
de
ser
uma
novidade.
Antes
deles,
porém,
ela
nunca
fora
tão
importante
no
ato
da
criação
artística.
A
não
ser
talvez,
no
Japão
dos
séculos
XVI
e
XVII.”
Personagens
A
maioria
das
personagens
das obras praticamente autobiográficas de Kerouac são baseadas em
personalidades
que
viveram
no
mundo
cultural
e
compartilharam
livros
e
amizades,
ao
longo
das
décadas
de
1950
e
1960,
e
alguns
ainda
hoje
vivem
e
escrevem
(vejam
as
atuações
de
Ferlinghetti
e
McClure).
As
personagens
de
On
The
Road
também
aparecem
em
outras
obras
de
Kerouac,
que
integram sua 'Lenda
de Duluoz',
um
ciclo
de
narrativas
de
poesia
e
viagens,
tais
como
“The
Dharma
Bums”
(1958;
no
Brasil
:
'Os
Vagabundos
Iluminados',
trad.
Ana
Ban),
“The
Subterraneans”
(1958),
“Big
Sur”
(1962),
“Desolation
Angels
(1965;
'Anjos
da
Desolação',
trad.
Guilherme
da
Silva
Braga,
2010)”
e
“Visions
of
Cody”
(escrito
em
1951-52,
publicado
postumamente),
sempre
com
nomes
fictícios,
pseudônimos
que
lembram
de
algum
modo
as
pessoas
reais,
os amigos e as amigas, na
maioria
poetas,
literatos
e
artistas.
Tal
estratégia
contornava
uma
dos
questionamentos
dos
editores,
que
se
recusavam
a
usar
nomes
de
personalidades
reais
nas
obras.
Assim
Kerouac
é
Sal
Paradise
em
On
the
Road
(OR),
Ray
Smith
em
Dharma
Bums
(DB),
Jack
Duluoz
em
Big
Sur
(BS),
Desolation
Angels
(DA)
e
Visions
of
Cody
(VC),
e
Leo
Percepied
em
The
Subterraneans
(TS).
Do
mesmo
modo,
Cassady
é
Dean
Moriarty
em
OR,
Leroy
em
TS,
Cody
Pomeray
em
DB
e
BS;
Ginsberg
é
Carlo
Max
(OR),
Alvah
Goldbook
(DB),
Irwin
Garden
(BS,
DA,
VC),
e
Adam
Moorad
(ST).
Gary
Snyder
não
aparece
em
On
the
Road,
mas
é
amigo
do
protagonista
em
Dharma
Bums
, e
é
chamado Jarry
Wagner
em
BS
e
DA.
W.
Burroughs
aparece
em
OR
como
o
excêntrico
Old
Bull
Lee,
mas
é
Frank
Carmody
(em
TS)
e
Bull
Hubbard
(em
DA)
.
Gregory
Corso
aparece
em
DA
como
Raphael
Urso,
e
Yuri
Gligeric
em
TS.
O
poeta
e
editor
L.
Ferlinghetti
é
renomeado
Larry
O'Hara
(em
TS)
e
Lorenzo
Monsanto
(em
BS).
M.
McClure
é
nomeado
Ike
O'Shay
em
DB,
e
Pat
McLear
em
BS,
o
Patrick
McLear
de
DA.
Em
DB
temos
Philip
Whalen
como
Warren
Coughlin,
Phillip
Lamantia
como
Francis
Da
Pavia
(em
DA
é
David
D'Angeli),
Peter
Orlovsky
é
George
em
DB
e
Simon
Darlovsky
em
DA.
O
poeta
e
crítico
Kenneth
Rexroth
é
o
Rheinhold
Cacoethes
em
DB.
W.
C.
Williams
aparece
com
o
nome
de
Dr.
Williams
em
DA,
e
Norman
Mailer
tem
o
nome
de
Harvey
Marker
em
DA,
enquanto
Gore
Vidal
está
em
TS
sob
o
nome
Arial
Lavalina.
Esta
maneira
de
narrar
sobre
pessoas
reais
usando
pseudônimos,
nomes
fictícios
para
personagens
reais,
é
característica
do
roman
à
clef
(algo
como
'romance
com
chave')
onde
se
procura
mascarar
para
não
identificar,
não
ofender
os
amigos
e
inimigos.
É
um
recurso
já
usado
por
outra
obra
Beat,
considerado
o
primeiro
romance
ao
estilo
Beatnik,
de
John
Clellon
Holmes
(1926-1988),
“Go”
(1952),
onde
Jack
Kerouac
aparece
com
o
nome
de
Gene
Pasternak,
e
Cassady
como
Hart
Kennedy,
Burroughs
como
Will
Dennison,
Ginsberg
como
David
Stofsky,
e
o
próprio
Holmes
como
Paul
Hobbes.
E
Holmes,
por
sua
vez,
aparece
em
“On
the
Road”,
“The
Subterraneans”
e
“Visions
of
Cody”,
com
os
nomes
Ian
MacArthur,
Balliol
Macjones
e
Tom
Wilson,
respectivamente.
O
termo
'beat'
como
referência
aos
autores
andarilhos
e
alucinados,
que
desejavam
ser
'literatos',
passou
a
ser
divulgado
por
outros
jovens
autores
da
época,
tais
como
Herbert
Huncke
e
John
C.
Holmes,
que
usam
esta
palavra
ambígua,
que
podia
ser
referir
ao
ritmo
de
jazz,
ao
ser
meio
derrotado
na
vida,
ou
ao
desejo
de
beatitude,
assim
os
beats
pretenderiam
se
tornar
beatos.
Outros
apontam
uma
influência
Beat
no
nome
da
famosa
banda
britânica
The
Beatles
(seria
beat
+
beetles?),
mas
Paul
McCartney
lembra
que
beat
se
refere
apenas
a
batida
rítmica
da
bateria.
Linguagem
Esta
criação
de
palavra
é
uma
das
características
da
obra,
uma
vez
que
encontramos
fartos
exemplos
de
trocadilhos,
aliterações,
onomatopeias,
uso
e
abuso
de
fala
coloquial,
com
gírias
urbanas,
além
de
sotaques
regionais,
tudo
numa
tentativa
de
comunicar
o
experienciado,
de
desabafar
no
papel,
em
escrita
fluída,
espontânea,
o
que
foi
vivenciado,
como
num
diário
a
testemunhar
exaltações
e
frustrações.
Cada
personagem
tem
uma
visão
de
mundo
e
linguajar,
e
os
tradutores
precisaram
usara
as
gírias
e
coloquialismos
brasileiros
para
recriar
a
atmosfera
informal
e
até
marginal
das
falas.
Assim
temos soluções
em
nosso
contexto
brasileiro
para
as
falas
coloquiais
norte-americanas,
como
bem
mostra
alguns
exemplos
encontrados
pelo
tradutor,
“aí,
eu
caí
fora”
('then
I
went
away'),
“é
isso
aí,
homem,
assim
que
se
fala”
('that's
right,
man,
now
you're
talking'),
“sacando
tudo”
('digging
everything'),
“cagando
pra
tudo
isso
/
pouco
ligando”
('he
didn't
care
one
way
or
the
other'),
“tudo
o
que
queria
era
cair
fora”
('and
I
wanted
to
take
off'),
“chovia
a
cântaros”
('the
rain
came
down
in
buckets'),
“caranga
envenenada”
('scarf
flying'),
“não
puderam
me
estrepar
/
me
fuder”
('put
no
flies
on
my
ass'),
“o
negócio
é
não
esquentar
a
cabeça”
('the
thing
is
not
to
get
hung-up
'),
“minha
cuca
'tá
zumbindo”
('my
head
rings'),
“estava
cagando
para
tudo”
('he
didn't
give
a
damn
about
anything'),
“não
disse
que
seria
uma
curtição?”
('I
told
you
it
was
kicks'),
“vamos
curtir”
(let's
go
hit'),
“qual
é
o
rolo,
a
parada,
a
negociata”
('and
what's
the
pitch?'),
“à
put
que
os
pariu”
('to
go
to
hell'),
“porra!”
('ah,
hell!'),
“ora,
não
enche
o
saco”
('don't
bother
me,
man!')
dentre outros.
O
uso
e abuso de
expressões
coloquiais
e
gírias,
e
também
'palavrões',
sem
censuras,
é movido pela
necessidade
de
expressar
o
vivenciado,
de
despejar
no
papel
as
falas
e
gestos,
sem
modificar,
sem
embelezar,
sem
criar
literatura
de
beletrismo,
num
jorro
mais
espontâneo
que
o
autor
julga
mais
verídico
e
autêntico.
O
impulso
de
relatar
o
que
se
vivenciou
acaba
por
delegar
a
ficção
ao
mínimo,
como
se
o
autor
estivesse
gravando
em
microfone
as
falas
e
depois
transcrevesse
no
papel.
Por
esse
motivo,
o
autor
já
revelara
a
amigos
a
vontade
de
abandonar
a
ficção,
isto
é,
sua
obra
seria
vivencial,
pessoal,
mesmo
autobiográfica,
não
um
exercício
de
criação
de
personagens
e
situações
que
jamais
existiram.
Alguns
ensaístas,
entre
eles
C.
Willer,
lembram
a
influência
de
Céline
(Louis-Ferdinand
Céline,
1894-1961,
autor
francês)
com
sua
obra
“Voyage
au
bout
de
la
Nuit”,
“Viagem
ao
Fim
da
Noite”,
de
1932,
onde
a
fluência
da
narrativa
se
aproxima
da
fala,
da
linguagem
coloquial,
com
gírias
e
ofensas,
com
imagens
céleres
da
vida
urbana,
com
um
narrador-personagem,
espécie
de
anti-herói,
que
apresenta
com
ironia
suas
vivências
onde
predominam
o
desconforto,
a
desesperança
e
o
niilismo.
Willer,
em
seu
ensaio
“Jack
Kerouac
e
o
primeiro
On
The
Road”,
pontua
as
influências
sobre
o
jovem
autor
beat,
“Kerouac
viajou
para
realizar
o
que
escrevia
e
o
que
havia
lido:
viagens
intra
e
intertextuais.
Pegou
a
estrada
para
reverter
o
tempo
e
retornar
às
origens,
tentando
refazer,
entre
outros,
os
registros
da
impossível
recuperação
do
passado
de
Proust
(autor
de
cabeceira,
dele
e
de
Cassady)
e
de
outro
prosador-viajante,
Thomas
Wolfe;
a
poesia
de
longo
curso
de
Whitman,
poeta
itinerante;
a
prosa
de
Dostoiévski,
com
sua
religiosidade,
sua
mística
do
submundo
e,
principalmente,
sua
escrita
paroxística;
e
do
francês
Louis-Ferdinand
Céline,
o
autor
de
Voyage
au
bout
de
la
nuit
(algo
como
‘viagem
ao
fim
da
noite’
ou
‘ao
fundo
da
noite’),
que
vejo
como
a
matriz
ou
influência
mais
forte
em
On
the
Road,
principalmente
após
a
leitura
de
sua
primeira
versão;
isso,
pelo
modo
como
Céline
rompeu
com
o
beletrismo
francês
ao
fazer
prosa
oral
e
introduzir
a
língua
falada
em
sua
narrativa.”
Viagens
As
viagens
são
o
assunto
de
On
The
Road,
que
registra
as
vivências
nas
estradas
e
nas
cidades,
nos
hotéis
e
nas
casas
de
amigos
e
amigas
pelo
território
norte-americano
e
também
no
mexicano.
As
andanças
e
as
aventuras
entrelaçam
os
amigos
que
comungam
um
estilo
de
vida
mais
espontâneo,
mais
libertário,
mais
contra-caretice
possível,
numa
sociedade
que
idolatra
a
competição
e
a
guerra
ao
mesmo
tempo
em
que
prega
o
comodismo
e
o
consumo.
Com
o
dinheiro
do
'velho
seguro
de
veterano',
Kerouac
decide
se
arriscar
na
estrada,
para
encontrar
os
amigos
no
outro
lado
da
América,
lá
na
Costa
Oeste,
muito
menos
'careta'
que
a
Costa
Leste,
de
tradicionalismo
puritano
típico
da
Nova
Inglaterra.
A
busca
do
inesperado,
do
inusitado,
do
desconhecido,
eis
o
que
motiva
o
viajante,
“em
algum
lugar
ao
longo
da
estrada
eu
sabia
que
haveria
garotas,
visões
e
muito
mais;
na
estrada,
em
algum
lugar,
a
pérola
me
seria
ofertada.”
Tudo
começa
com
a
presença
elétrica
de
Neal
Cassady
que
é
chamado
de
Dean
Moriarty,
uma
figura
que
é
central
por
sua
maneira
de
encarar
o
mundo
e
propor
fugas
da
mesmice
cotidiana
que
o
apavora.
Ele
é
um
delinquente
juvenil
mas
ao
mesmo
tempo
um
místico.
É
um
drogado
mas
é
também
um
visionário
que
eletriza
os
amigos
e
seduz
as
amigas,
e
compartilha
adrenalina
e
beatitude (no melhor sentido
beat) . O
estopim é aqui aceso quando Cassady conhece
Allen Ginsberg,
ou
antes,
Moriarty
conhece
Carlo
Max,
“E
foi
nessa
noite
que
Dean
conheceu
Carlo
Marx.
Algo
verdadeiramente
extraordinário
aconteceu
quando
Dean
conheceu
Carlo
Marx.
Duas
cabeças
iluminadas
como
eram,
eles
se
ligaram
no
primeiro
olhar.
Um
par
luminoso
de
olhos
penetrantes
relampejou
ao
cruzar
com
dois
outros
olhos
penetrantes
e
luminosos
— o
santo
trapaceiro
de
cuca
brilhante,
e
o
angustiado
poeta
vagabundo
com
ideias
sombrias,
que
é
Carlo
Marx.
Daquele
momento
em
diante
quase
não
vimais
Dean,
e
fiquei
um
pouco
triste
também.
As
energias
deles
se
fundiram
com
uma
precisão
exata,
e
eu
era
somente
uma
cópia
malfeita,
incapaz
de
acompanhar
o
ritmo
deles.
Começou
então
o
louco
redemoinho
de
tudo
o
que
ainda
estava
por
vir;
este
redemoinho
acabaria
misturando
meus
amigos
e
o
pouco
que
restava
da
família
numa
gigantesca
nuvem
de
poeira
sobre
a
Noite
Americana.”
(P1,
cap.
1,
trad.
Eduardo
Bueno)
O
jovem
narrador,
numa época de perdas (a morte do pai, o fim do casamento) busca algo
além, nos
volteios
da
estrada,
em
plena
descoberta
do
mundo,
tece
seu
o
elogio
dos
loucos,
dos
espontâneos,
aqueles
que
'sacam'
a
existências
em
suas
potencialidades
e
vacuidades,
sem
hesitações
e
elucubrações,
que
vivem
para
o
agora
sem
se
apegarem
às
vãs
cobiças,
às
promessas
sedutoras
da
vida
consumista,
“Para
mim,
pessoas
mesmo
são
os
loucos,
os
que
estão
loucos
para
viver,
loucos
para
falar,
loucos
para
serem
salvos,
que
querem
tudo
ao
mesmo
tempo,
aqueles
que
nunca
bocejam
e
jamais
dizem
coisas
comuns
mas
queimam,
queimam,
queimam
como
fabulosos
fogos
de
artifício
explodindo
como
constelações
em
cujo
centro
fervilhante
– pop
– pode-se
ver
um
brilho
azul
e
intenso
até
que
todos
'aaaaaah!'
“ P1, cap. 1
“Because
the
only
people
for
me
are
the
mad
ones,
the
ones
who
are
mad
to
live,
mad
to
talk,
mad
to
be
saved,
desirous
of
everything
at
the
same
time,
the
ones
who
never
yawn
or
say
a
commonplace
thing,
but
burn,
burn,
burn
like
fabulous
yellow
roman
candles
exploding
like
spiders
across
the
stars
and
in
the
middle
you
see
the
blue
centrelight
pop
and
everybody
goes
'Awwwww'!
”
Na
época em que 'caiu na estrada', Kerouac / Sal estava escrevendo uma
novela, intitulada “The
Town and the City”
(escrita em 1947/48, publicada em 1950), onde Kerouac é Peter
Martin, Ginsberg é chamado Leon Levinsky, e Burroughs é Will
Dennison (o mesmo nome dado por J. C. Holmes em seu “Go”,
de 1952), mas o autor ainda não se encontrara na 'prosa espontânea'
como se revelaria na primeira redação de On
The Road,
“Chegou
então a primavera, época ideal para cair na estrada, e todos,
naquele bando
disperso, começaram a preparar-se para algum tipo de viagem. Eu
estava ocupadíssimo
com minha novela, mas quando ela já estava pela metade, depois de
uma
viagem ao sul com minha tia para visitar meu irmão Rocco, senti que
estava pronto
para tomar o rumo do oeste pela primeiríssima vez na vida.
Dean
já tinha caído fora. Carlo e eu fomos levá-lo à estação (...)”
P1, cap. 1
Desde
o início é importante notar o quanto é forte a influência na vida
de Sal a presença de Moriarty, como um 'irmão' a estimular e
inspirar como um companheiro de aventuras, como alguém a iluminar a
jornada, a combinar juventude e experiência, que poderia fornecer
conteúdo para boas histórias – reais, não ficcionais - que ainda
faltavam ao escritor em formação,
“Sim,
eu queria conhecer Dean mais intimamente, não apenas porque eu era
um escritor
e precisava de novas experiências, ou porque minha vida de
vagabundagem pelo campus tinha completado seu ciclo e já não
significava mais nada, mas porque,de
alguma forma, apesar de nossa profunda diferença de caráter, ele me
fazia lembrar um
irmão há muito esquecido; a simples visão de seu rosto ossudo e
sofrido, de seu pescoço
forte, musculoso e suado, evocava recordações da minha infância,
naqueles depósitos de lixo sombrios e nas margens e poças do rio
Passaic, em Paterson.” P1, cap. 1
Após
a Segunda
Guerra Mundial,
num momento de perdas e descobertas, o autor-narrador decide 'deixar
rolar' como um improviso de jazz
na cadência dos embalos noite à dentro, das experiências com
drogas e outros alucinógenos, quando na época a música que
empolgava os jovens era o jazz
acelerado no estilo bebop,
como se sentia nas performances de Charlie Parker e Miles Davis, que
logo despontaram como ídolos daquela geração,
“O
vento que vinha do lago Michigan, bop-jazz
no
Loop,
longas
caminhadas
ao
redor
de
South
Halsted
e
North
Clark
e,
na
madrugada
silenciosa,
uma
longa
jornada
pela
selva
de
pedra,
quando
uma
radiopatrulha
me
seguiu
como
suspeito.
Nessa
época,
1947,
o
bop
enlouquecia
a
América.
Os
rapazes
no
Loop
seguiam
soprando,mas
com
um
ar
melancólico,
porque
o
bop
atravessava
um
momento
indeciso
entre
o
período
ornitológico
de
Charlie
Parker
e
a
nova
era,
que
começou
com
Miles
Davis.
E,enquanto
eu
ouvia
aquele
som
noturno
que
o
bop
representava
para
todos
nós,
pensei
nos
meus
amigos
espalhados
de
um
canto
a
outro
da
nação,
e
em
como
todos
eles
viviam
frenéticos
e
velozes,
dentro
dos
limites
de
um
único
e
imenso
quintal.”
P1,
cap.
3
A
experiência
de
despersonalização
('já
não
sabia
quem
eu
era')
na vida em movimento, na
estrada,
no
percorrer
das
distâncias
que
nos
afastam
de
nossos
hábitos
de
cotidianos
repetitivos,
assim fora das situações padrões para levar a novas percepções,
que provocam o temor, assim como todas as experiências novas, todas
as ações-e-reações inusitadas,
“Acordei
com
o
sol
rubro
do
fim
de
tarde;
foi
um
dos
momentos
mais
impressionantes
de
minha
vida,
o
mais
bizarro,
pois
simplesmente
já
não
sabia
mais
quem
era
— estava
a
milhares
de
quilômetros
de
minha
casa,
temeroso
e
desgastado
pela
viagem,
num
quarto
de
hotel
barato
nunca
antes
avistado,
ouvindo
o
silvo
das
locomotivas
e
o
ranger
das
velhas
madeiras
do
hotel,
e
passos
anônimos
que
ressoavam
no
andar
de
cima,
e
todos
aqueles
sons
melancólicos,
e
por
quinze
misteriosos
segundos
realmente
já
não
sabia
quem
era.
Não
me
apavorei;
simplesmente
eu
me
sentia
como
se
fosse
outra
pessoa,
um
estranho
a
mim
mesmo,
e
toda
a
minha
existência
fora
apenas
uma
vida
mal-assombrada,
a
vida
vazia
de
um
fantasma.
Eu
estava
no
coração
da
América,
meio
caminho
andado
entre
o
leste
da
minha
mocidade
e
o
oeste
de
meus
sonhos
futuristas,
e
é
provável
que
tenha
sido
exatamente
por
isso
que
tudo
se
passou
assim,
naquele
entardecer
dourado
e
insólito.”
P1,
cap.
1
Em
novas situações, para quem busca descobertas, ainda mais um homem
jovem, é compreensível o desejo de se enturmar, de fazer amigos, de
conhecer visionários e seduzir o 'belo sexo', assim não seria
diferente com o narrador-personagem de On
The Road,
sempre em êxtase, sempre frenético por novidades,
“Naquela
tarde
em
Des
Moines,
para
onde
quer
que
olhasse,
via
inúmeros
bandos
de
garotas
lindíssimas
— elas
voltavam
para
suas
casas
depois
das
aulas
—,
agora
eu
não
tinha
tempo
para
pensamentos
desse
tipo,
mas
jurei
que
cairia
na
farra
assim
que
chegasse
a
Denver.
Denver!
Carlo
Marx
já
estava
lá,
Dean,também;
e,
claro,
Chad
King
e
Tim
Gray,
já
que
era
a
cidade
natal
deles;
e
também
Marylou,
e
eu
tinha
ouvido
falar
de
uma
turma
muito
louca
que
incluía
Ray
Rawlins
e
Babe
Rawlins,
sua
linda
irmã
loira;
e
as
irmãs
Bettencourt,
duas
garçonetes
que
Dean
conhecia;
e
até
Roland
Major,
um
antigo
colega
com
o
qual
eu
me
correspondia
nos
tempos
da
universidade,
andava
por
lá
também.
Transpirando
alegria
antecipada,aguardava
ansioso
pelo
meu
reencontro
com
eles.
Por
isso,
passei
direto
por
aquelas
lindas
gatinhas:
as
garotas
mais
gostosas
do
mundo
moram
em
Des
Moines.”
P1, cap. 3
Ao
longo da narrativa não faltam relatos e descrições como se
retratos da vida na estrada, do que acontece de possível e
impossível, como se arrisca e como se vive perigosamente, pedindo
carona, conhecendo cidadãos e cidadãs num país de dimensões
continentais, de uma costa a outra, passando pelo Meio-Oeste, por
cidades que vivem entre a pecuária e o jogo, entre a religiosidade e
o entretenimento, numa multiplicidade de rumos, desvios, atalhos,
vivida entre a empolgação e a embriaguez,
“Acordei
com uma tremenda dor de cabeça. Slim tinha se mandado — para
Montana, acho. Saí à rua. E ali, no ar azulado, vi ao longe, pela
primeira vez, os enormes
cumes nevados das montanhas Rochosas. Respirei profundamente. Tinha
de chegar
a Denver de uma vez por todas. Mas primeiro tomei meu desjejum,
bastante modesto:
torradas, café e um ovo. O Festival do Velho Oeste prosseguia; havia
um rodeio, e a baderna e a agitação estavam para começar outra
vez. Deixei tudo para trás. Queria
encontrar a rapaziada em Denver. Cruzei uma passarela sobre a estrada
de ferro, e cheguei a um monte de barracos onde duas estradas se
bifurcavam, sendo que ambas conduziam a Denver. Peguei a que ficava
mais próxima das montanhas,assim
poderia olhar para elas enquanto seguia meu rumo. Ganhei uma carona
instantânea
com um moço de Connecticut, que viajava num calhambeque, pintando;
era
filho de um editor do leste. Ele falava e falava; eu estava enjoado
do porre da véspera
e da altitude. Em determinado momento, quase tive de pôr a cabeça
para fora da
janela. Mas, quando ele me largou em Longmont, no Colorado, eu já
estava me sentindo bem melhor, e até começava a lhe contar a
respeito de minhas viagens. Ele me
desejou boa sorte.” P1, cap. 5
Como
um neófito da estrada, Kerouac está sempre dependendo dos guias que
apontam rumos, que já conhecem as voltas e desvios, que viajaram na
estrada e nas visões, sejam alucinadas ou poéticas, entre as
tentativas de amizades sinceras, onde a admiração de Sal Paradise
pelo amigo Dean Moriarty é visível e contagiante, da mesma forma
que admiramos Sherlock Holmes pelo retrato que encontramos na
narrativa do Dr. Watson, que vive as aventura ao lado de seu mestre
'biografado',
“Dean
e eu embarcamos juntos numa viagem incrível. Estamos tentando nos
comunicar
sobre absolutamente tudo o que passa pela nossa cabeça, com a mais
completa
sinceridade. Tivemos que tomar benzedrina. Sentamos sobre a cama,
comas pernas cruzadas, frente a frente. Finalmente, expliquei a Dean
que ele é capaz de fazer tudo o que quiser, tornar-se o prefeito de
Denver, casar com uma milionária ouse transformar no maior poeta
desde Rimbaud. Mas ele continua correndo pelas ruas para
curtir aquelas malucas corridas de autorama. Eu vou junto. Ele grita
e pula, excitado.
Você sabe, Sal, Dean continua ligado nessas coisas. — Marx meditou
sobre o assunto,
e disse do fundo da alma: — Hmmm. E qual é o programa? —
perguntei. A vida de Dean era repleta de programas.” P1,
cap. 7
É
interessante encontrar as personagens da vida real aqui numa
narrativa que às vezes parece tão insólita pela empolgação de
quem narra. Assim quando
conhecemos
Allen
Ginsberg,
aqui
Carlo
Marx,
em
sua
morada
em
Denver,
como o poeta que deixou seus versos 'uivarem' na leitura de
Howl / Uivo
na Six
Gallery, em
07 de outubro de 1955, no centro da cidade da famosa ponte Golden
Gate, o que
provocou a chamada Renascença
de San Francisco,
tal como também é narrada em “Vagabundos
Iluminados”
(The Dharma
Bums),
quando os novos poetas deixam transbordar a espontaneidade e a fala
ritmada como numa poética-existencial jam
session, em
protesto contra as repressões e falsa prosperidade a mundo
pós-guerra.
“O
apartamento
subterrâneo
de
Carlo
ficava
na
Grand
Street,
numa
velha
pensão
com
tijolos
à
vista,
próxima
a
uma
igreja.
Nós
nos
enfiamos
num
beco,
descemos
uns
degraus
de
pedra,
abrimos
uma
tosca
porta
de
madeira
e
penetramos
numa
espécie
de
porão,
até
chegarmos
a
uma
porta
de
madeira
compensada.
Parecia
o
quarto
de
um
santo
russo;
a
vela
acesa,
a
cama,
paredes
de
pedras
úmidas
e
uma
espécie
de
ícone
maluco
que
ele
próprio
havia
feito.
Recitou
seus
poemas
para
mim.
Um
se
intitulava
“A
depressão
de
Denver”.
Certa
manhã,
Carlo
acordou
e
escutou“pombos
vulgares”
grasnando
do
lado
de
fora
de
seu
cubículo,
viu
“tristes
rouxinóis”
encurvando
os
galhos,
que
lhe
fizeram
lembrar
a
mãe.
Um
manto
cinzento
encobriu
acidade.
As
montanhas,
as
magníficas
Rochosas,
que
se
podia
ver
de
qualquer
lugar,
a
oeste
da
cidade
eram
feitas
de
papier-maché.
O
universo
inteiro
estava
demente,
absurdo
e
extremamente
estranho.
Ele
descrevia
Dean
como
“o
menino
do
arco-íris”,
perturbado
e
atormentado
em
sua
agonizante
priapice.
Referia-se
a
ele
como
o“Eddie
Édipo”,
forçado
a
raspar
chicletes
das
vidraças.”
P1,
cap.
8
É
a
atmosfera
da
agitação,
da
descoberta
que
impulsiona
em
ritmo
animado
a
fala
narrativa,
que
deseja
abarcar
tudo,
sentir
tudo,
como
bem
desejava
Walt
Whitman
em
suas
odes,
suas
enumerações
e
descrições,
como
bem
reconheceu
o
Álvaro
de
Campos
(uma das
personas
de Fernando
Pessoa)
que
se
perde
e
se
encontra
em
volteios
de
sensações,
fluxos
e
refluxos
de
contradições,
que
se
expressam
em
versos
longos,
cheios
de
fôlego,
de
ânsias,
de
gritos
(que
podem
ser
uivos
ao estilo de Ginsberg),
para
dispor
baixo
todo
o
edifício
da
vida
padronizada
das
tradições
e
caretices
imperantes.
“Gargalhadas
retumbavam,
vindas
de
todos
os
lados.
Eu
me
perguntava
o
que
o
Espírito
das
Montanhas
estaria
pensando,
e
olhei
para
cima
e
vi
pinheiros
ao
luar,
fantasmas
de
velhos
mineiros,
e
fiquei
assombrado.
Em
todo
o
sombrio
lado
leste
da
cordilheira,
reinava
o
silêncio
e
o
sussurro
do
vento,
exceto
na
ravina
onde
berrávamos;
do
outro
lado
da
cordilheira,
viam-se
o
grande
talude
ocidental
e
o
imenso
platô
que
se
prolongava
até
Steamboat
Springs,
baixando
depois
em
direção
ao
deserto
do
leste
do
Colorado
e
para
o
deserto
de
Utah;
tudo
agora
envolto
pela
escuridão,
enquanto
gritávamos
e
enlouquecíamos
em
nosso
retiro
montanhoso,
americanos
loucos
e
bêbados
numa
terra
majestosa.
Estávamos
no
topo
da
América,
e
tudo
o
que
podíamos
fazer
era
gritar,
acho
eu
— através
da
noite,
em
direção
ao
leste,
sobre
as
planícies
onde
provavelmente,
em
algum
lugar,
um
velho
de
cabelos
brancos
estava
caminhando
com
o
Verbo
em
nossa
direção,
e
chegaria
a
qualquer
momento
e
nos
faria
calar.”
P1,
cap.
9
Para
vivenciar
tudo
e
experimentar
todas
as
sensações
é
preciso
romper
tabus,
o
que
incomoda
a
sociedade
que
se
baseia
em
direitos
e
deveres,
permissões
e
proibições.
Há
toda
uma
dificuldade
de
atingir
uma
sexualidade
plena
e
reconfortante
numa
civilização
de
tabus,
como
bem
apontou
Freud
(em
sua
obra
“Mal-Estar
na
Civilização”,
1930)
ou
Wilhelm
Reich
(em
seu
“A
Revolução
Sexual”,
1936)
ou
Herbert
Marcuse
(em
seu
“Eros
e
Civilização”,
1955),
“Garotas
e rapazes da América têm curtido momentos realmente tristes quando
estão juntos; a artificialidade os força a se submeterem
imediatamente ao sexo, sem os devidos diálogos preliminares. Nada de
galanteios – mas sim um profundo diálogo de almas, pela vida que é
sagrada e cada momento precioso. Ouvi os sons da locomotiva de Denver
a Rio Grande ecoar nas montanhas. Quis seguir ainda mais longe atrás
de minha estrada.” P1,
cap.
10
Temos
as
impressões
que
arrebatam
o
protagonista-narrador
quando
se
percebe
na
paisagem
e
na
euforia
de
San
Francisco,
onde
mil
diversões
se
prometem,
miríades
de
estímulos
golpeiam
o
jovem
ávido
de
conhecer
e
participar,
pronto
a
se
entregar
às
seduções
da
cidade
grande,
bem
menos
'careta'
que
aquelas
da
Nova
Inglaterra,
“Rodopiei
até
ficar
tonto,
pensei
que
cairia
direto
no
precipício,
como
num
sonho.
Ah,
onde
está
a
garota
dos
meus
sonhos?
Pensei
nisso
olhando
para
todos
os
lados,
como
vivia
olhando
naquele
pequeno
mundo
lá
de
baixo.
E,
à
minha
frente,
derramava-se
a
rústica
vastidão
côncava
e
complexa
do
meu
continente
americano;
em
algum
lugar,
muitos
quilômetros
além,
a
louca
e
deprimida
Nova
York
erguia
aos
céus
sua
nuvem
poeirenta
e
seus
vapores
acinzentados.
Há
algo
cinzento
e
sagrado
no
leste,
enquanto
a
Califórnia
é
clara
como
roupa
no
varal,
e
tem
a
mente
vazia
— pelo
menos,
era
assim
que
eu
pensava
naquela
época.”
P1,
cap.
11
O
narrador-viajante logo percebe que ter o pé na estrada é preciso
aceitar as aventuras e desventuras, as alegrias e os riscos ao viver
em movimento numa sociedade padronizada, onde cada um tem seu lugar
determinado, num sistema de divisão de trabalho, hierarquizado a
ponto de cada um apresentar um dado status social, onde a renda
determina a 'qualidade' do cidadão. Estar à margem deste sistema,
desafiar as ordens classificatórias é se arriscar a subsistência e
sobrevivência,
“Naquela
noite em Harrisburg, tive de dormir num banco da estação
ferroviária; ao amanhecer, o chefe da estação me enxotou. Não é
verdade que se começa a vida sob as asas do pai, feito uma criança
singela que acredita em tudo? Então, chega o dia
em que o cara se descobre um desgraçado, um infeliz, fraco, obscuro
e nu, e coma
aparência de um fantasma fatigado e fatídico, avançando trêmulo
pelos pesadelos da
vida. Arrastei-me para fora da estação, desfigurado. Eu estava fora
de mim. Daquela
manhã, tudo o que eu podia perceber era sua própria palidez, como
a palidez de um túmulo. Eu estava morto de fome, (...)” P1, cap.
14
Este
é o retorno para a casa, o cotidiano, depois de percorrer doze mil
quilômetros até a Costa Leste, perceber-se em Nova York, onde Sal
Paradise / Kerouac encontra o sossego do lar materno, onde a paz
quase budista é um reconforto para a escrita do que se vivenciou.
continua...
set/12
Leonardo
de Magalhaens
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