Sobre a novela “Tonio Kroeger” (1903)
de Thomas Mann (1875-1955)
O jovem artista entre a visão e a maldição
Vimos nos romances anteriores, nas características do romance epistolar (Briefroman) , ou do romance de formação (Bildungsroman), narrativas que abordam jovens em processo de educação e socialização, e agora vamos abordar romances que tratam da vida artística, no estilo chamado romance de artista (Künstlerroman), as atribulações do gênio artístico em depuração.
A novela “Tonio Kroeger” se inicia tal qual o romance “Meninos da Rua Paulo” de F. Mólnar, um fim de aulam uma saída de colégio, como se os alunos fossem 'libertados' (ao menos eles se sentem assim...)
“A escola acabara. Por sobre o pátio acimentado e para fora dos portões jorravam os bandos de libertados, dividiam-se e afastavam-se rumo à direita e à esquerda.” (trad. LdeM)(“Die Schule war aus. Über den gepflasterten Hof und heraus aus der Gatterpforte strömten die Scharen der Befreiten, teilten sich und enteilten nach rechts und links.” p. 205)
citações extraídas de : MANN, Thomas, Die Erzählungen. Band 1. Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1967. pp. 205-256
O jovem Tonio Kroeger, de 14 anos, espera ansioso o amigo Hans – jovem esportista, de popularidade. Mas tanto Tonio quanto Hans são de famílias respeitadas – pois os rapazes até recebem cumprimentos enquanto andam pelas ruas,
“Constantemente os amigos deviam, devido aos muitos conhecidos, tirarem os chapéus, e sim, por muitas pessoas os rapazes de quatorze anos eram cumprimentados primeiro.”(“Beständig mußten die Freunde, der vielen Bekannten wegen, die Mützen herunternehmen, ja, von manchen Leuten wurden die Vierzehnjährigen zuerst gegrüßt…” p. 205)
A amizade não é tão perfeita assim. Tonio não se sente valorizado o suficiente pelo amigo Hans – a quem ele admira.
“O caso era que Tonio amava Hans Hansen e tinha muito sofrido por ele. Quem ama mais é o submisso e deve sofrer, - esta simples e dura lição tinha sua alma de quatorze anos já recebido da vida.” (“Die Sache war die, daß Tonio Hans Hansen liebte und schon vieles um ihn gelitten hatte. Wer am meisten liebt, ist der Unterlegene und muß leiden, – diese schlichte und harte Lehre hatte seine vierzehnjährige Seele bereits vom Leben entgegengenommen; “ p. 207)
Sabemos que Tonio é filho de um cônsul, e precisa manter o respeito – não pode sequer cultivar um caderno de poemas! Imagine: um filho de burguês a escrever poesia? Imoral, certamente! Em “Tonio Kroeger” encontramos algo de autobiográfico – pois o autor Thomas Mann (e seu irmão Heinrich, também escritor) é filho de burgueses, de um alemão e uma brasileira. Ele enfrenta preconceitos e barreiras de classe para se dedicar a arte escrita. Também procura encontrar uma identidade entre duas etnias – a germânica e a latina.
A mãe de Tonio, a latina Consuelo, é descrita como 'morena e fogosa' (“dunkle und feurige”), 'bonita de cabelos negros' (“schönen, schwarzhaartigen Mutter”) e exerce uma influência espontânea, contrária ao do pai, mais voltado às brumosidades nórdicas.
O jovem Tonio é um ser meio introspectivo que vive a pensar sobre si mesmo,
“Muitas vezes ele pensava mais ou menos: é bem suficiente que eu seja como eu sou, e não poder nem querer me modificar, negligente, teimoso e a procurar coisas, nas quais ninguém pensa.” (“Manchmal dachte er ungefähr: Es ist gerade genug, daß ich bin, wie ich bin, und mich nicht ändern will und kann, fahrlässig, widerspenstig und auf Dinge bedacht, an die [8] sonst niemand denkt.” p. 208)
e sente-se deslocado do mundo, sem rumos tal um cigano, ou em conflito contínuo,
“Não raramente ele pensava também: Por que eu sou assim diferente e em conflito com tudo, em desacordo com os professores e estranho entre os outros jovens? Veja-os, os bons alunos e os de sólida mediocridade. Eles não acham os professores esquisitos, eles não fazem versos e pensam sobre coisas, nas quais se pode pensar e nas quais se pode expressar em alto e bom som. Quão ordeiros e de acordo com tudo e todos devem se sentir! Deve ser bom... Mas e sobre mim, e como tudo isso vai terminar?”
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“Nicht selten dachte er auch: Warum bin ich doch so sonderlich und in Widerstreit mit allem, zerfallen mit den Lehrern und fremd unter den anderen Jungen? Siehe sie an, die guten Schüler und die von solider Mittelmäßigkeit. Sie finden die Lehrer nicht komisch, sie machen keine Verse und denken nur Dinge, die man eben denkt und die man laut aussprechen kann. Wie ordentlich und einverstanden mit allem und jedermann sie sich fühlen müssen! Das muß gut sein… Was aber ist mit mir, und wie wird dies alles ablaufen?” p. 208
Enquanto muitos vivem sem reflexão, comportam-se e pensam em conformidade, alguns indagam sobre a vida, sobre a sociedade. São os pensadores, os filósofos, os artistas. Inconformados, eles, elas criam mundos alternativos na mente e depois atuam sobre o mundo – o pensamento utópico a agir sobre o mundo do comércio e da técnica.
Enquanto Tonio pensa sobre a vida, seu amigo Hans vive e aproveita a posição social. Hans é belo e tem sucesso, enquanto Tonio se sente deslocado, mestiço, quase um cigano na vida burguesa, ordeira e lucrativa. Ele admira o amigo de sucesso, e intimamente o inveja,
“Quem assim olhos azuis tivesse, ele pensava, e assim viveria em ordem e feliz comunhão com todo o mundo igual a você! Assim você está ocupado de um modo bem decente e respeitado por todos.” (“Wer so blaue Augen hätte, dachte er, und so in Ordnung und glücklicher Gemeinschaft mit aller Welt lebte wie du! Stets bist du auf eine wohlanständige und allgemein respektierte Weise beschäftigt.” p. 209)
Certamente que Tonio não deseja ser popular tal qual o amigo Hans – mas ser admirado pelo popular Hans,
“Ele não fazia a tentativa de se tornar igual a Hans Hansen, e talvez para ele não era muito sério com este desejo. Mas ele [Tonio] desejava, até dolorosamente, assim como ele era, tornar-se amado por ele [Hans], eele procurava conquistar seu amor ao seu modo, de um modo lento e íntimo, devotado, sofredor e melancólico, mas por uma melancolia, que podia arder mais profunda e consumidora que todas as paixões bruscas, que se poderia esperar de sua aparência estrangeira.”
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“Er machte nicht den Versuch, zu werden wie Hans Hansen, und vielleicht war es ihm nicht einmal sehr ernst mit diesem Wunsche. Aber er begehrte schmerzlich, so wie er war, von ihm geliebt zu werden, und er warb um seine Liebe auf seine Art, eine langsame und innige, hingebungsvolle, leidende und wehmütige Art, aber von einer Wehmut, die tiefer und zehrender brennen kann als alle jähe Leidenschaftlichkeit, die man von seinem fremden Äußeren hätte erwarten können.” p. 210
O nome de Tonio, logo de início, é diferente – já causa diferenciação – não é um Wilhelm, nem Heinrich, nem Erwin, é um 'nome estrangeiro'. Tonio julga que o colega se envergonha de dedicar amizade a alguém com semelhante nome, “Mas por que Hans o chamava Tonio, quando estavam sozinhos, e quando ele, quando chegava um terceiro, começava a se envergonhar?” (“Aber warum nannte Hans ihn Tonio, solange sie allein waren, wenn er, kam ein dritter hinzu, anfing, sich seiner zu schämen? " p. 211)
A jovem loira Inge (Ingeborg Holm) é a primeira experiência de amor – ou da ideia de amor – pra o jovem Tonio. É mais uma paixão, no sentido de sofrimento, aquele mesmo sofrimento (Leidenschaft) do jovem Werther, que acompanhamos pesarosamente em ensaio anterior.
“A experiência ensinou-lhe que isto era o amor. Mas apesar de ele saber que o amor devia-lhe trazer muito sofrimento, aflição e humilhação, que além disso destruiria a paz e transbordaria o coração com melodias, sem que encontrasse sossego para formar alguma coisa e em serenidade forjar algo completo, porém ele aceitava-o com alegria, entregava-se completa e cultivava-o com as forças de seu ânimo, então ele sabia que o amor fazia rico e vivaz, e ele desejava ser rico e vivaz do que forjar em serenidade algo completo...”
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“Die Erfahrung lehrte ihn, daß dies die Liebe sei. Aber obgleich er genau wußte, daß die Liebe ihm viel Schmerz, Drangsal und Demütigung bringen müsse, daß sie überdies den Frieden zerstöre und das Herz mit Melodien überfülle, ohne daß man Ruhe fand, eine Sache rund zu formen und in Gelassenheit etwas Ganzes daraus zu schmieden, so nahm er sie doch mit Freuden auf, überließ sich ihr ganz und pflegte sie mit den Kräften seines Gemütes, denn er wußte, daß sie reich und lebendig mache, und er sehnte sich, reich und lebendig zu sein, statt in Gelassenheit etwas Ganzes zu schmieden…” p. 213
Mais sobre o jovem Werther
http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2012/02/sobre-os-sofrimentos-do-jovem-werther.html
A percepção do desejo vem golpear Tonio nas aulas de dança – lá onde desfilam a beleza de Inge , a figura do elegante Sr. Knaak, o professor francês, em volteios distantes do jovem, que observa sem participar efetivamente. Afinal, a figura de Inge, assim alegre, lírica, se envolve de idealizações de Tonio.
“Eu te amo, amo, doce Inge, dizia ele intimamente, e ele deixava nestas palavras toda a sua dor quando ela estava tão aplicada e jovial na dança e não prestava atenção a ele.” (“Ich liebe dich, liebe, süße Inge, sagte er innerlich, und er legte in diese Worte seinen ganzen Schmerz darüber, daß sie so eifrig und lustig bei der Sache war und sein nicht achtete.” pp. 215-16)
O jovem Tonio se sente deslocado meio aos dançarinos, aos jovens que ora se divertem. Tonio quer ser aceito e amado como ele é,
“Chegaria o dia quando ele seria famoso, quando seria tudo impresso o que ele escrevera, e então se veria se ele não causaria impressão em Inge Holm... Não causaria impressão, não, isto era certo. […]
O coração de Tonio Kroeger contraía-se dolorosamente com tal pensamento. A sentir como forças maravilhosas atuantes e melancólicas se movem dentro de ti e também saber que aqueles, a quem sentes atraído, lhes contrastar em jovial inacessibilidade, isto era doloroso.”
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“Es kam der Tag, wo er berühmt war, wo alles gedruckt wurde, was er schrieb, und dann würde man sehen, ob es nicht Eindruck auf Inge Holm machen würde… Es würde keinen Eindruck machen, nein, das war es ja. […]
Tonio Krögers Herz zog sich schmerzlich zusammen bei diesem Gedanken. Zu fühlen, wie wunderbare spielende und schwermütige Kräfte sich in dir regen, und dabei zu wissen, daß diejenigen, zu denen du dich hinübersehnst, ihnen in heiterer Unzugänglichkeit gegenüberstehen, das tut sehr weh.” p. 217)
Contudo, Tonio gosta mais de amar do que ser amado, nas mesmas crises de 'amar e não ser correspondido', como vimos na tragédia do jovem Werther,
“Assim a ventura, dizia-se ele, é não tornar-se amado; esta é uma satisfação, misturada com desgosto, para a vaidade. A ventura é, amar e talvez colher pequenas, falsas aproximações ao tema amado. E ele escrevia estes pensamentos intimamente, imaginava-o plenamente e sentia-o até a base.” (“Denn das Glück, sagte er sich, ist nicht, geliebt zu werden; das ist eine mit Ekel gemischte Genugtuung für die Eitelkeit. Das Glück ist, zu lieben und vielleicht kleine, trügerische Annäherungen an den geliebten Gegenstand zu erhaschen. Und er schrieb diesen Gedanken innerlich auf, dachte ihn völlig aus und empfand ihn bis auf den Grund.” pp. 217-18)
Sentindo-se limitado em sua cidade, junto a sua família decadente (e o tema da decadência familiar está em outro livro do autor Thomas Mann, “Os Buddenbrook”, 1901), o jovem Tonio Kroeger resolve viajar – como fazem os jovens alemães, - basta lembramos do clássico Wilhelm Meister (de Goethe) em suas aprendizagens e suas peregrinações – mesmo que ele não fosse um 'cigano numa carroça verde' (“Zigeuner im grünen Wagen”), mas um artista a buscar locais mais amenos, seguindo para o sul, onde observa as pessoas e seus costumes, suas linguagens,
“Ela [sua jovem paixão] aguçava seu olhar e deixava-o compenetrar as grandes palavras, que enchem os peitos dos homens, ela desvelavam-lhe as almas dos homens e a sua própria, fazia-o ver claramente e revelava-lhe o íntimo do mundo e toda finalidade, o que está por trás das palavras e atos. O que, porém, ele via era isso: comédia e miséria – comédia e miséria.”
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“Sie schärfte seinen Blick und ließ ihn die großen Wörter durchschauen, die der Menschen Busen blähen, sie erschloß ihm der Menschen Seelen und seine eigene, machte ihn hellsehend und zeigte ihm das Innere der Welt und alles Letzte, was hinter den Worten und Taten ist. Was er aber sah, war dies: Komik und Elend – Komik und Elend. p. 219
O sinal na testa (“das Mal an seiner Stirn”) – uma espécie de 'sinal de Caim' – como uma forma de distinção do excêntrico, do 'gauche', do ser original, do auto-exilado dos demais – confinados ao rebanho – também presente na obra “Demian” de Hermann Hesse, onde o protagonista Emil conhece Demian, colega muito diferente, com um olhar especial, ideias singulares, e passa a adentrar mais num mundo de introspecção e auto-aprendizado.
“Chegou a solidão, com o sofrer e o orgulho do conhecer, porque a ele não tolerava ficar no círculo dos inocentes com o senso alegre e obscuro e o sinal na testa lhes perturbava.” (“Da kam, mit der Qual und dem Hochmut der Erkenntnis, die Einsamkeit, weil es ihn im Kreise der Harmlosen mit dem fröhlich dunklen Sinn nicht litt und das Mal an seiner Stirn sie verstörte.” p. 219)
Na ânsia de liberdade, Tonio passa a uma vida de aventuras, excentricidades e libertinagens, vivendo entre a busca espiritual e o desejo sexual (assim o Emil Sinclair de “Demian”, o Törless de “Jovem Törless” e Stephen Dedalus de “Artista quando jovem”,
“Assim acontecia então que ele, desamparado entre bruscos extremos, entre férrea espiritualidade e devoradora luxúria lançado pra lá e pra cá, seguia uma vida esgotante sob pesos de consciência, uma vida excepcional, excessiva e desordenada, que ele, Tonio Kroeger, no fundo detestava. Que loucura! pensava ele às vezes. Como era isto possível que eu me envolvesse em todas estas aventuras excêntrica? Eu não sou nenhum cigano numa carroça verde, deixando a casa... “
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“So kam es nur dahin, daß er, haltlos zwischen krassen Extremen, zwischen eisiger Geistigkeit und verzehrender Sinnenglut hin und her geworfen, unter Gewissensnöten ein erschöpfendes Leben führte, ein ausbündiges, ausschweifendes und außerordentliches Leben, das er, Tonio Kröger, im Grunde verabscheute. Welch Irrgang! dachte er zuweilen. Wie war es nur möglich, daß ich in alle diese exzentrischen Abenteuer geriet? Ich bin doch kein Zigeuner im grünen Wagen, von Hause aus…” p. 220
Que “aventuras excêntricas” são estas, não sabemos. O Narrador é demasiadamente reticente, não se alonga muito neste capítulo, o importante é saber que Tonio sofreu um tipo de metamorfose, uma saída do casulo, para a 'vida artística' – o tema de romance do tipo Künstlerroman,
“Mas à medida que sua saúde foi debilitando, aguçava-se sua qualidade artística, ficou seletivo, primoroso, preciosista, refinado, excitado contra o banal e ao máximo sensível em questão de tato e gosto.” (“Aber in dem Maße, wie seine Gesundheit geschwächt ward, verschärfte sich seine Künstlerschaft, ward wählerisch, erlesen, kostbar, fein, reizbar gegen das Banale und aufs höchste empfindlich in Fragen des Taktes und Geschmacks.” p. 220)
A obra de Tonio passa a ser fruto de um sofrimento, e quanto maior a luxúria e/ ou a resignação, mais densa e elaborada a obra – o artista sofre e é aplaudido.
O tema do artista que sofre e somente assim cria / escreve a sua obra está também em obras de H. Hesse e Hemingway, além de Fitzgerald e Kerouac, onde o criador paga um preço (na carne e na alma) pelos aplausos e pela fama. Mas o verdadeiro artista não escreve para os outros, para alcançar fama, mas para tolerar a própria solidão, cria para viver (ou sobreviver),
“Ele trabalhava silente, recluso, invisível e cheio de desprezo pelos pequenos, aos quais o talento era um gosto social, que, se eram tão somente pobres ou ricos, selvagens e abatidos acompanhados ou com gravatas personalizadas mostravam luxo, em primeira linha eram considerados a viver felizes, amáveis, e artísticos, no mais não sabendo que boas obras apenas surgiam sob pressão de uma vida grava, que quem vivia não trabalhava, e que devia ser morto para ser um completo criador.”
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“Er arbeitete stumm, abgeschlossen, unsichtbar und voller Verachtung für jene Kleinen, denen das Talent ein geselliger Schmuck war, die, ob sie nun arm oder reich waren, wild und abgerissen einhergingen oder mit persönlichen Krawatten Luxus trieben, in erster Linie glücklich, liebenswürdig und künstlerisch zu leben bedacht waren, unwissend darüber, daß gute Werke nur unter dem Druck eines schlimmen Lebens entstehen, daß, wer lebt, nicht arbeitet, und daß man gestorben sein muß, um ganz ein Schaffender zu sein. “ pp. 220-221
Em “boas obras apenas surgiam sob pressão de uma vida grave” podemos notar algum eco das palavras de Nietzsche. E de fato é assim, tanto que o autor T. Mann em obra posterior – “Doktor Faustus” (escrito durante a Segunda Guerra, e publicado em 1947) - desenvolverá o tema do artista que sofre e assim é capaz de criar, sendo mais um ser maldito, tal o compositor Adrian Leverkühn, que paga o preço com a própria alma – assim a referência ao Dr. Fausto imortalizado por Goethe.
Finalmente surge uma personagem no mesmo nível do protagonista. É a jovem artista plástica russa Lisavieta Ivánovna, que mora em Munique. Dez anos se passaram. Tonio Kroeger deve ter quase trinta anos. Continuam suas buscas pela Obra, pela vida artística, pela honestidade consigo mesmo – seus diálogos com a artista russa tornam-se uma série de monólogos sobre o viver artístico, em cenas que lembram as conversas dos artistas em “O Fauno de Mármore” (de N. Hawthorne), e as inquietações de Stephen Dedalus sobre o que seja Arte. Mas parece que para os artistas o poeta Tonio é ainda um burguês.
sobre “O Fauno de Mármore” em
http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2010/10/sobre-o-fauno-de-marmore-de-n-hawthorne.html
Tonio pensa que a obra de arte deve ser original, excêntrica, e não a aparência do artista ( o contrário do que pensava e fazia o surrealista Salvador Dali, dono de uma arte e de sua figura extra-ordinária),
“Ora, deixe meus trajes em paz, Lisaveta Ivanovna! Gostaria que eu andasse por aí numa poída jaqueta de veludo ou num colete de seda rubra? Se é enquanto artista inteiramente sempre aventureiro o suficiente. Exteriormente deve-se vestir-se bem, diabos!, e comportar-se como uma pessoa decente...” (“Ach, lassen Sie mich mit meinen Gewändern in Ruh', Lisaweta Iwanowna! Wünschten Sie, daß ich in einer zerrissenen Sammetjacke oder einer rotseidenen Weste umherliefe? Man ist als Künstler innerlich immer Abenteurer genug. Äußerlich soll man sich gut anziehen, zum Teufel, und sich benehmen wie ein anständiger Mensch…” p. 223)
Ou seja, Tonio continua a admirar as 'pessoas decentes – assim como admirava o belo burguês Hans Hansen – e não anda vestido igual aos excêntricos artistas (muitas vezes só têm o visual, pouco apresentando de arte consistente). Não basta ter sensibilidade ou sentimento para ser artista, é preciso construir um estilo, trabalhar com talento um material, e deste extrair a Obra. Um processo onde o criador 'é um fingidor' (segundo uma paródia de 'o poeta é um fingidor' de Fernando Pessoa),
“E porque é um incompetente aquele que acredita que o criador deva sentir. Todo genuíno e sincero artista ri da ingenuidade desta charlatanice.- talvez melancólico, mas ele ri. Então aquilo, o que se diz, deve nunca ser o principal, mas antes apenas o de fato indiferente material, a partir do qual a forma estética é composta em atuante e serena superioridade.”
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“Und weil der ein Stümper ist, der glaubt, der Schaffende dürfe empfinden. Jeder echte und aufrichtige Künstler lächelt über die Naivität dieses Pfuscher-Irrtums, – melancholisch vielleicht, aber er lächelt. Denn das, was man sagt, darf ja niemals die Hauptsache sein, sondern nur das an und für sich gleichgültige Material, aus dem das ästhetische Gebilde in spielender und gelassener Überlegenheit zusammenzusetzen ist.” p. 223
É uma posição classicista – i.e., não romântica – na qual o artista não é um sentimental, mas um criador a manusear um material, uma visão meio parnasiana (para o formalista Olavo Bilac o poeta é um monge recluso a burilar versos longe da emoção vulgar das ruas) de autor sublime. Para Tonio, a Arte está para além das sentimentalidades dos autores – afinal, Tonio é um artista que desconfia dos artistas.
“O talento para o estilo, forma e expressão já dispõe esta fria e seletiva relação com a humanidade, sim, antes um certo humano empobrecimento e desolação. Então o sentimento sadio e forte, que continua, tem gosto nenhum. Já era para o artista, tão logo ele se torne humano e comece a sentir.” ( “Die Begabung für Stil, Form und Ausdruck setzt bereits dies kühle und wählerische Verhältnis zum Menschlichen, ja, eine gewisse menschliche Verarmung und Verödung voraus. Denn das gesunde und starke Gefühl, dabei bleibt es, hat keinen Geschmack. Es ist aus mit dem Künstler, sobald er Mensch wird und zu empfinden beginnt.” p. 224)
Esta imagem do artista enquanto frio e distante é a mesma que encontramos, aprofundada e dramatizada, no citado 'Doktor Faustus', onde o protagonista Leverkühn, sendo uma mistura de Fausto e de Nietzsche (pensador alemão de estilo e ideias iconoclastas), um compositor que vive obcecado pela arte a ponto de tornar-se misantropo e desumano.
“Eu lhe digo que eu frequentemente estou morto de cansado de representar o humano sem participar do humano... O artista é,a final, um homem? Então que se pergunte a 'mulher'! A mim parece que nós artistas partilhamos todos um pouco do destino daqueles meninos cantores do coro católico... Cantamos bem comoventes. Contudo...” (“Ich sage Ihnen, daß ich es oft sterbensmüde bin, das Menschliche darzustellen, ohne am Menschlichen teilzuhaben… Ist der Künstler überhaupt ein Mann? Man frage 'das Weib' danach! Mir scheint, wir Künstler teilen alle ein wenig das Schicksal jener präparierten päpstlichen Sänger… Wir singen ganz rührend schön. Jedoch –“ p. 224)
O artista é assim um 'apartado' da humanidade, onde a arte não é 'profissão', mas, antes, um tipo de maldição. Principalmente a Literatura,
“A literatura é, afinal, nenhuma profissão, mas antes uma maldição, - então saiba. Quando ela começa a tornar-se sensível, esta maldição? Cedo, terrivelmente cedo. Numa época quando se poderia viver em paz e concórdia com deus e o mundo, então começa-se a sentir-se marcado, num enigmático contraste com os outros, a sentir os comuns, ordinários, o abismo da ironia, descrença, oposição, saber, sentimento, que separa dos humanos, abre-se mais e mais fundo, em solidão, e daí em diante não há mais entendimento.”
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“Die Literatur ist überhaupt kein Beruf, sondern ein Fluch, – damit Sie's wissen. Wann beginnt er fühlbar zu werden, dieser Fluch? Früh, schrecklich früh. Zu einer Zeit, da man billig noch in Frieden und Eintracht mit Gott und der Welt leben sollte. Sie fangen an, sich gezeichnet, sich in einem rätselhaften Gegensatz zu den anderen, den Gewöhnlichen, den Ordentlichen zu fühlen, der Abgrund von Ironie, Unglaube, Opposition, Erkenntnis, Gefühl, der Sie von den Menschen trennt, klafft tiefer und tiefer, Sie sind einsam, und fortan gibt es keine Verständigung mehr.” pp. 224-25
e o artista fala diferente, é o diferente, por um excesso de auto-conhecimento, sentimento do eu (Ichgefühl) e potencial-qualidade artística (Küstlerschaft),
“Mal precisas fixar o olhar e dizer uma palavra, e todos logo sabem que não és humana, mas antes algo qualquer de estranho, estrangeiro, diferente...” (“Sie werden kaum die Augen aufzuschlagen und ein Wort zu sprechen brauchen, und jedermann wird wissen, daß Sie kein Mensch sind, sondern irgend etwas Fremdes, Befremdendes, Anderes…” p. 225)
então é de se perguntar, então o que é ser artista,
“Mas o que é o artista? Diante de nenhuma pergunta a comodidade e preguiça de saber da humanidade se mostrou mais obstinadas do que diante desta.” (“Aber was ist der Künstler? Vor keiner Frage hat die Bequemlichkeit und Erkenntnisträgheit der Menschheit sich zäher erwiesen als vor dieser. p. 225)
O longo monólogo de Tonio – diante da amiga pintora – parece mais uma defesa diante do tribunal da sociedade burguesa, uma tentativa de justificação diante das acusações contra a excentricidade da persona artística – é o que a artista russa percebe, ela que o vê mais como um burguês do que um artista.
“Nenhum problema, nenhum no mundo, é mais aflitivo que o do dom artístico e seu efeito humano.” (“Kein Problem, keines in der Welt, ist quälender als das vom Künstlertum und seiner menschlichen Wirkung. p. 226)
A artista Lisavieta lembra o efeito catártico da obra literária, o fato de a Literatura ser testemunha da vida humana, e ser crítica e conselheira,
“O efeito purificador, curador da literatura, a destruição das paixões através dos saber e do verbo, a literatura enquanto caminho para o entender, para o perdoar e para o amor, o libertário poder da fala, o espírito literário enquanto a manifestação mais nobre do espírito humano, afinal, o literato enquanto pessoa perfeita, enquanto santo, -”
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“Die reinigende, heiligende Wirkung der Literatur, die Zerstörung der Leidenschaften durch die Erkenntnis und das Wort, die Literatur als Weg zum Verstehen, zum Vergeben und zur Liebe, die erlösende Macht der Sprache, der literarische Geist als die edelste Erscheinung des Menschengeistes überhaupt, der Literat als vollkommener Mensch, als Heiliger, –“ p. 277
Tonio não se julga perfeito nem santo – talvez alguns escritores aspirassem a isso – assim os russos Dostoiévski, Tolstói, o francês Gide – mas reconhece que é um homem aniquilado pela 'clarividência psicológica' (“psychologishce Hellsicht”), mas que deve superar , não se deixar abater (a mesma posição que encontramos no jovem Hans Castorp de “A Montanha Mágica” (1924), vinte anos depois, quando tem consciência de sua doença pulmonar, “Em consideração à bondade e a o amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos” (p. 662. trad. de Herbert Caro)
“Não se deixar abater pela tristeza do mundo; observar, perceber, adaptar-se, também a mais aflitivo, e ser de resto a coisa melhor, logo em pleno-sentimento [intuição] da decente superioridade sobre a detestável invenção do ser, - sim, com certeza!” (“Sich von der Traurigkeit der Welt nicht übermannen lassen; beobachten, merken, einfügen, auch das Quälendste, und übrigens guter Dinge sein, schon im Vollgefühl der sittlichen Überlegenheit über die abscheuliche Erfindung des Seins, – ja, freilich!” p. 227)
Tonio cita outro atormentado pelo saber, o jovem príncipe Hamlet – que tanto emocionou Goethe, a ponto de situar uma montagem da peça shakesperiana no “Aprendizagem de Wilhelm Meister” - o saber que entorpece, daí o “nojo do saber” (Erkenntnisekel) do literato,
“A condição, na qual basta ao homem, adentrar uma coisa para já se sentir nauseado até a morte (e completamente a ficar não reconciliável), - é o caso de Hamlet, o dinamarquês, este literato típico. Ele sabia o que era isto: ser convocado ao Saber, sem ser nascido para isto. (…)” (“Der Zustand, in dem es dem Menschen genügt, eine Sache zu durchschauen, um sich bereits zum Sterben angewidert (und durchaus nicht versöhnlich gestimmt) zu fühlen, – der Fall Hamlets, des Dänen, dieses typischen Literaten. Er wußte, was das ist: zum Wissen berufen werden, ohne dazu geboren zu sein.” p. 227)
“Todo saber é velho e monótono. (…) Ah, a literatura cansa, Lisavieta!” (“Alle Erkenntnis ist alt und langweilig. (…) Ach ja, die Literatur macht müde, Lisaweta!” p. 228)
Tonio está nauseado – igual ao Antonine Roquetin, de “A Náusea” (1938) de J-P Sartre, “Desconfiar da literatura. É preciso escrever ao correr da pena; sem escolher as palavras” -ao sentir-se desconfortável com a palavra, o material da linguagem falada e escrita, sente que a literatura quer tudo complicar, rotular tudo. O literato seria um mero analista e catalogador de cena e de emoções humanas. O leitor vê o sentimento re-interpretado através da linguagem literária e se sente aliviado, ao sofrer uma espécie de catarse diante do drama alheio. (Aristóteles prefigurou a “Estética da Recepção”, certamente)
(E lembramos que acontece o mesmo com este livro, esta obra literária: o artista quando jovem nela pode encontrar seus sentimentos expressados, e assim se re-encontrar!)
É de se pensar, aproveitar as insônias produtivamente, e esclarecer: a literatura é representação? Ou vive a agir como um veículo de transferência? A escrita é libertação? Ou é pecado?
“Mas veja, peca apesar de toda a libertação através da literatura persiste a seguir livremente; pois todo agir é pecado ao olhos do espírito....
Estou no alvo, onde queria chegar, Lisavieta. Ouça-me. Eu amo a vida, - esta é uma confissão. Aceite e guarde-a, - não fiz a ninguém. Têm dito, têm escrito e imprimido que eu odeio ou temo ou desprezo ou detesto a vida. Gostei de ouvir, tinha me lisonjeado; mas nem assim não é menos falso. Eu amo a vida... (…) Não aceite como literatura o que eu digo aí!”
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“Aber siehe da, es sündigt trotz aller Erlösung durch die Literatur unentwegt darauf los; denn alles Handeln ist Sünde in den Augen des Geistes…
Ich bin am Ziel, Lisaweta. Hören Sie mich an. Ich liebe das Leben – dies ist ein Geständnis. Nehmen Sie es und bewahren Sie es, – ich habe es noch keinem gemacht. Man hat gesagt, man hat es sogar geschrieben und drucken lassen, daß ich das Leben hasse oder fürchte oder verachte oder verabscheue. Ich habe dies gern gehört, es hat mir geschmeichelt; aber darum ist es nicht weniger falsch. Ich liebe das Leben… Sie lächeln, Lisaweta, und ich weiß, worüber. Aber ich beschwöre Sie, halten Sie es nicht für Literatur, was ich da sage!” pp. 228-29
Tonio que amigos comuns, não artistas, não literatos. Ele não confia em literatos, pois é um. Ele se sente deslocado entre os artistas – assim como é desprezado entre os burgueses. Ele vê os leitores como seres de rebanho, ele vê os bons cidadãos como servos da conformidade. E a literatura? Pode libertar? Pode purificar por meio de catarses? Pode ser espelho da vida?
“É contrassenso, amar a vida e, no entanto, ser empenhado com todas as forças, a arrastá-la para o seu lado, a conquistá-la para as finezas e melancolias, a toda doentia nobreza da literatura.” (“Es ist widersinnig, das Leben zu lieben und dennoch mit allen Künsten bestrebt zu sein, es auf seine Seite zu ziehen, es für die Finessen und Melancholien, den ganzen kranken Adel der Literatur zu gewinnen.” p. 229)
Poesia contra a vida? Literaturas gauche na vida que usam a poesia para difamar a vida! Oposto do poeta Walt Whitman – que cantava a si mesmo e a vida em ebulição! Interessante o episódio no qual um oficial militar, um tenente, escreve versos – e pede para lê-los em público! Os burgueses olham consternados e condescendentes – pobre do oficial ! Que necessidade tem o oficial, ou algum professor de seminário, de escrever versos – e lê-los em reuniões em 'boa sociedade' ?
(Lembramos do jovem soldado Franz Kappus, a solicitar conselhos ao poeta Rainer Maria Rilke, que em resposta escreveu as famosas 'Cartas a um jovem poeta' (Brief an einen jungen Dichter, 1903-08) onde mostra que a Poesia exige entrega, não pode ser um hobby, um passatempo entre manobras e batalhas. E que coisa mais anti-lírica do que a guerra?)
No final do diálogo – ou monólogo – Tonio tem consciência de tanta prolixidade hamletiana (hamletischen Redseligkeit) e ouve o 'veredicto' da artista russa,
“A solução é que, vossa senhoria, aí sentado, é simplesmente um burguês.” e “Um burguẽs em caminho errado, Tonio Kroeger – um burguês erante.” (“Die Lösung ist die, daß Sie, wie Sie da sitzen, ganz einfach ein Bürger sind.” , “Sie sind ein Bürger auf Irrwegen, Tonio Kröger, – ein verirrter Bürger.” p. 231)
Depois desta sentença, deste sincero veredicto, Tonio resolve viajar – não para o sul, mas para as paragens nórdicas, rumo à Dinamarca, terra do melancólico Hamlet, e não dos sensuais italianos, pois, Tonio troca a Itália pela Escandinávia, ele que 'flutua' entre os temperamentos latino e nórdico. Afinal, Tonio é filho de um nórdico e de uma latina.
Durante a viagem, Tonio passa em sua cidade natal, para rever o mundo que deixou décadas antes. Ele encontra a cidade e volta a encarar a infância. O familiar retorna como limitador e estreito. Tonio não mostra ostentação, é modesto, e logo é avaliado socialmente – os recepcionistas do hotel o classificam na 'escala social: nobre? Burguês? Ou plebeu? - “A ele hierárquica e civilmente acomodar” - afinal, o ser é avaliado pelo visual, pela aparência, pela exterioridade.
O visitante procura na cidade de então a cidade de outrora, aquela da infância e juventude. Encontra uma cidade ao mesmo tempo familiar e estranha. A casa dos Kroeger é agora a Biblioteca Pública.
“Biblioteca Pública? Pensou Tonio Kroeger, então ele achou que nem Pública nem a literatura tinha algo a procurar aqui.” (“Volksbibliothek? dachte Tonio Kröger, denn er fand, daß hier weder das Volk noch die Literatur etwas zu suchen hatten.” p. 236)
A sensação de sentir-se estanho na cidade onde nasceu! E encontrar a velha casa da família transformada em local público. Somente agora temos conhecimento da vida doméstica da família Kroeger – vida que foi ocultada nos primeiros capítulos. Agora é uma vida no passado, tudo lembranças na mente do protagonista.
Ao voltar ao hotel, e pedir o enceramento da conta, Tonio é surpreendido com uma desconfiança das autoridades. Tonio é confundido com um criminoso, mas o acusado não se identifica, não revela ser 'filho' da cidade, filho do Consul Kroeger. Tonio é um escritor, e basta. Não se deixa depender do nome de família. No mais, Tonio não costuma levar documentos, sequer um passaporte.
As aventuras de Tonio : quase preso em sua cidade natal confundido com um falsário em fuga! E ele aceita o julgamento moral da sociedade que o julga.
“Ele estivera um pouco desanimado, que quisessem lhe prender como charlatão em sua cidade natal, apesar de ele ter achado isto, de certa forma, em ordem.” (“Er war ein wenig niedergeschlagen gewesen, daß man ihn daheim als Hochstapler hatte verhaften wollen, ja, – obgleich er es gewissermaßen in der Ordnung gefunden hatte.” p. 241 )
Na Dinamarca, nas brumas nórdicas, num hotel à beira-mar, depois de dias de recolhimento e passeio, descanso e meditação, algo enfim acontece. Tonio Kroeger revê o amigo e a amada dos tempos de outrora. O mundo é mesmo pequeno. O protagonista pode rever Hans Hansen e Ingeborg Holm, agora um belo casal, e ele não o reconhecem. Nem ele se dá a reconhecer.
Novamente, Tonio Kroeger é levado a pensar sobre o passado, o deslocar-se junto aos outros, o desejo de ser famoso para 'impressionar' a bela Inge. Pois Tonio sofre com saudade, ainda deslocado, ainda incapaz de compartilhar a vida comum – Tonio observa o baile, assim como antes assistia as aulas de balé, onde Inge sequer o perceba.
“Tonio Kroeger via-os, ambos, pelos quais tinha sofrido de amor outrora. - Hans e Ingeborg.” (“Tonio Kröger sah sie an, die beiden, um die er vorzeiten Liebe gelitten hatte, – Hans und Ingeborg.” p. 251)
e
“e de repente a saudade abalou o seu peito com uma tal dor, que ele voltou-se, sem querer, para a escuridão, para que ninguém visse o tremor em seu rosto.” (“und plötzlich erschütterte das Heimweh seine Brust mit einem solchen Schmerz, daß er unwillkürlich weiter ins Dunkel zurückwich, damit niemand das Zucken seines Gesichtes sähe.” p. 251)
Deveria Tonio voltar no tempo e conquistar Inge e cultivar a amizade com Hans? Seria possível ser outro?
“Começar ainda uma vez? Mas de nada ajudaria. Tornaria novamente a ser, - tudo novamente viria como havia vindo, então alguns seguem com necessidade no erro porque ele não há, afinal, um caminho certo.” (“Noch einmal anfangen? Aber es hülfe nichts. Es würde wieder so werden, – alles würde wieder so kommen, wie es gekommen ist. Denn etliche gehen mit Notwendigkeit in die Irre, weil es einen rechten Weg für sie überhaupt nicht gibt.” p. 251)
Tonio observa a amada e o amigo de outrora – sem se aproximar, sem se deixar reconhecer – ele está num mundo separado, não pode se comunicar, muito menos compartilhar da sociabilidade ao redor.
“Ele imaginava o que poderia dizer; mas ele não achou coragem de dizê-lo. Também aconteceria como sempre: eles não o entenderiam, estranhariam o que ouviam, o que ele pudesse dizer. Assim a língua deles não era a língua dele.” (“Er dachte sich aus, was er sagen könnte; aber er fand nicht den Mut, es zu sagen. Auch war es ja wie immer: sie würden ihn nicht verstehen, würden befremdet auf das horchen, was er zu sagen vermöchte. Denn ihre Sprache war nicht seine Sprache. p. 252)
Há um abismo de comunicação entre o artista e os que se divertem, os que vivem a festividade. Tonio observa a cena e revive o passado, ele observa emocionado, enquanto os demais se divertem no baile. Agora a fama de Tonio kroeger de nada vale – não pode impressionar o casal. Tonio preferiria se livrar da maldição do saber (Fluch der Erkenntnis) e da aflição criadora (schöpferischen Qual) e ser igual na alegre conformidade (selige Gewöhnlichkeit).
“Ele estava ébrio pela festa, da qual não participara, e cansado de ciúmes. Como antes, bem como tinha sido antes! Com o rosto ardendo ele ficara num lugar escuro, em aflição por vós, os louros, vivazes, felizes, e assim sozinho se afastara.” (“Er war berauscht von dem Feste, an dem er nicht teilgehabt, und müde von Eifersucht. Wie früher, ganz wie früher war es gewesen! Mit erhitztem Gesicht hatte er an dunkler Stelle gestanden, in Schmerzen um euch, ihr Blonden, Lebendigen, Glücklichen, und war dann einsam hinweggegangen.” p. 254)
Tonio confessa – em carta para Lisavieta – que flutua entre o temperamento nórdico do pai (contemplador, minucioso, correto, tendendo à melancolia) e o temperamento latino, exótico da mãe (sensual, ingênuo, passional, impulsivo), que é ainda um burguês, um filho de burguês, quis a arte, viveu a boêmia, mas ainda com saudades da vida ordeira dos burgueses,
“um burguês, que se perdeu na Arte, um boêmio com saudade da boa educação, um artista com consciência pesada.” (“ein Bürger, der sich in die Kunst verirrte, ein Bohemien mit Heimweh nach der guten Kinderstube, ein Künstler mit schlechtem Gewissen.” p. 256)
e
“Eu estou entre dois mundos, em nenhum estou em casa e, por isso, tenho um pouco de dificuldade. Vós, os artistas, me chamam de burguês, e os burgueses são tentados a me prenderem... eu não sei qual de ambos me deixa mais doente.” (“Ich stehe zwischen zwei Welten, bin in keiner daheim und habe es infolgedessen ein wenig schwer. Ihr Künstler nennt mich einen Bürger, und die Bürger sind versucht, mich zu verhaften… ich weiß nicht, was von beiden mich bitterer kränkt.” p. 256 )
e também,
“Eu admiro os orgulhosos e frios, que se aventuram nas trilhas dos grandes, da demoníaca beleza e desprezam o 'homem', - mas eu não os invejo. Pois se algo é capaz de fazer de um literato um poeta é este meu amor burguês pelo humano, vivaz e costumeiro. Todo o calor, todo o bem, todo o humor veio dele, e quase a mim parece que seja ele aquele próprio amor, do qual está escrito que alguém poderia falar com uma língua humana e angelical e sem ele, porém, seja um bronze soante e um guizo que retine.”
.
“Ich bewundere die Stolzen und Kalten, die auf den Pfaden der großen, der dämonischen Schönheit abenteuern und den ›Menschen‹ verachten, – aber ich beneide sie nicht. Denn wenn irgend etwas imstande ist, aus einem Literaten einen Dichter zu machen, so ist es diese meine Bürgerliebe zum Menschlichen, Lebendigen und Gewöhnlichen. Alle Wärme, alle Güte, aller Humor kommt aus ihr, und fast will mir scheinen, als sei sie jene Liebe selbst, von der geschrieben steht, daß einer mit Menschen- und Engelszungen reden könne und ohne sie doch nur ein tönendes Erz und eine klingende Schelle sei.” pp. 255-56
O romance (ou novela, ou conto extenso) se encerra com esta carta de Tonio para a amiga russa, onde ele continua aquele longo monólogo do capítulo (ou seção) 4, com uma nota positiva, não de niilismo ou misantropia, “este amor é bom e frutífero. Nele há ânsia e melancólica inveja e um pouco de desprezo e uma toda pura ventura.” (“sie [Liebe] ist gut und fruchtbar. Sehnsucht ist darin und schwermütiger Neid und ein klein wenig Verachtung und eine ganze keusche Seligkeit.” p. 256)
Em sua carta, Tonio explicita auto-consciência, auto-ironia, um achamento de si-mesmo, um estilo formado, uma vontade de superação. Ama a arte e só tem esta a oferecer à humanidade (a mesma da qual ele confessa desconfiar).
Veremos no próximo ensaio a saga de outro jovem artista em formação. Conheceremos Stephen Dedalus - o alter ego do escritor irlandês James Joyce [1882-1941] - em busca de um estilo e de um lugar ao sol. Se percebemos ser difícil se encontrar no mundo, enquanto jovem, imaginemos então na condição de jovem e artista. Perceber que o mundo é uma espécie de circo e que seremos apenas mais um dos que passam pelo picadeiro, na condição de malabaristas, de equilibristas, de ilusionistas ou de palhaços.
fev/mar /12
Leonardo de Magalhaens
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mais info
“Tonio Kröger” no Project Gutenberg
http://www.gutenberg.org/files/23313/23313-h/23313-h.htm
movie
http://www.imdb.com/title/tt0058670/
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