segunda-feira, 16 de abril de 2012

sobre 'Retrato do Artista quando Jovem' - de James Joyce




Sobre o romance “Retrato do Artista quando Jovem

(A Portrait of the Artist as a Young Man, 1914)

do escritor irlandês James Joyce (1882-1941)



As dores de formação do jovem artista



O “Retrato do Artista quando Jovem” (nos capítulos 1 a 3) e “Catcher in the rye” têm em comum com “Meninos da Rua Paulo” e “O Ateneu”, e também “Jovem Törless”, a descrição dos ambientes escolares, as turmas de estudantes, as amizades e hostilidades, com o foco nos protagonistas.


Artista quando Jovem” (capítulos 4 e 5) compartilha com “Tonio Kroeger” a característica de um Künstlerroman – ao abordar a formação do jovem artista. Acompanhamos o artista dentro do mundo, o artista em conflito com o mundo. Vemos como sua autoconsciência pode levar a um egocentrismo. Desde cedo o jovem enfrenta os grupos de jovens – eis o indivíduo contra o coletivo. Antes, um gênio entre os medíocres?


A ideia de singularidade, de excentricidade, de indivíduo contra o mundo que o cerca, encontra-se presente nos livros sobre as expectativas e frustrações juvenis, e mostra-se mais trabalhada em romances do estilo psicologista, ou existencialista, tais como “Notas do Subsolo” (Dostoiévski), “A Náusea” (Sartre) ou “Fome” (Hamsun) - temas de próximos ensaios (aqui em Meu Cânone Ocidental).


O autor James Joyce saiu da Irlanda, mas a Irlanda não saiu dele. As provas são as belas obras “Retrato do Artista quando Jovem” e “Ulisses”, que foram escritas no Continente (isto é, a Europa) mas localizadas espacial e sentimentalmente na Irlanda, nas ruas de Dublin, nas praias, nas torres Martelo que lembravam a colonização inglesa.


Numa época de nacionalismo irlandês contra a dominação inglesa, o autor volta-se para o interior das personagens, sondar a vida psíquica do protagonista pareceria meio deslocado, mas foi isso mesmo que James Joyce fez. O mundo exterior ali está – mas filtrado pela sensibilidade juvenil do protagonista Stephen Dedalus, alter ego do autor.


Um mundo de família, de tradições arraigadas, de religiosidade quase fanática, num país que vive em conflitos religiosos (católicos e protestantes mantem suas querelas ), qual a posição do protagonista? Melhor: qual a localização de Stephen Dedalus no mundo? Quem é ele em relação à família? Em relação à escola? Em relação a onipresença de Deus? São as primeiras indagações do menino que se torna jovem. Um despertar de pensamento metafísico?


Ele abriu o livro de geografia para estudar a lição; mas ele não conseguia aprender os nomes de lugares na América. Ainda eram todos lugares diferentes com nomes diferentes. Estavam todos em diferentes países e os países estavam em continentes e os continentes estavam no mundo e o mundo no universo.


Ele passou a página do livro de geografia e leu o que ele tinha escrito lá: ele mesmo, seu nome e onde ele estava.


Stephen Dedalus / Classe básica / Colégio do Bosque de Clongowes /

Sallins / Condado de Kildare / Irlanda / Europa / Mundo / Universo


[…] Então ele leu a página de alto a baixo até voltar ao próprio nome. Eis o que ele era: e ele leu a página até embaixo novamente. O que havia depois do universo?

Nada. Mas haveria algo ao redor do universo a mostrar onde ele acabava antes do nada começar?


Não poderia ser uma parede; mas poderia ser uma linha fina, bem fina, lá ao redor de tudo. E era muito grande pensar a respeito de tudo e todo lugar. Apenas Deus podia fazer isso. Ele tentou pensar que grande pensamento deveria ser; mas ele podia apenas pensar sobre Deus. Deus era o nome de Deus, assim como o nome dele era Stephen. Dieu era Deus em francês, e era também o nome de Deus; e quando alguém Rezava para Deus e dizia Dieu então Deus sabia logo que era uma pessoa francesa que estava rezando. Mas, apesar de haver diferentes nomes para Deus em todas as diferentes línguas no mundo e Deus entendia o que todas as pessoas que rezavam diziam nas suas diferentes linguagens, ainda assim Deus permanecia sempre o mesmo Deus e o nome real de Deus era Deus.


E isto o deixou muito cansado ao pensar deste modo. Fez com a cabeça parecesse enorme. Ele voltou a página e olhou fatigado ao campo verde ao redor no meio dos nuvens castanhas.” (trad. LdeM)


He opened the geography to study the lesson; but he could not learn the names of places in America. Still they were all different places that had different names. They were all in different countries and the countries were in continents and the continents were in the world and the world was in the universe.

He turned to the flyleaf of the geography and read what he had written there: himself, his name and where he was.


Stephen Dedalus

Class of Elements

Clongowes Wood College

Sallins
County Kildare

Ireland
Europe
The World

The Universe


[...] Then he read the flyleaf from the bottom to the top till he came to his own name. That was he: and he read down the page again. What was after the universe?

Nothing. But was there anything round the universe to show where it stopped before the nothing place began?


It could not be a wall; but there could be a thin thin line there all round everything. It was very big to think about everything and everywhere. Only God could do that. He tried to think what a big thought that must be; but he could only think of God. God was God's name just as his name was Stephen. DIEU was the French for God and that was God's name too; and when anyone prayed to God and said DIEU then God knew at once that it was a French person that was praying. But, though there were different names for God in all the different languages in the world and God understood what all the people who prayed said in their different languages, still God remained always the same God and God's real name was God.


It made him very tired to think that way. It made him feel his head very big. He turned over the flyleaf and looked wearily at the green round earth in the middle of the maroon clouds.



fonte das citações:


livro no Project Gutenberg

http://www.gutenberg.org/files/4217/4217-h/4217-h.htm



Acompanhamos as cenas da infância, da pré-adolescência do protagonista, que vai amadurecendo – enquanto isso a linguagem da narração também se transmuta, passa do simples, infantil ao complexo, na medida na qual o livro progride. A vida interior, a percepção íntima, tem uma singular relevância sobre o mundo exterior – aspecto que será essencial nas narrativas de Marcel Proust, Virginia Woolf e Clarice Lispector, como sabemos.


O jovem Stephen começa a experimentar a culpa, daí o medo, o terror diante das tantas punições pregadas pela religião (aqui trata-se do catolicismo rigoroso dos jesuítas). A divindade surge como um ser que observa, proibi e puni os impuros pecadores. O jovem sente saudades do lar, tem medo de morrer sozinho, longe da família. Ele recorre ao afeto de mãe, ele querer voltar ao lar. Um lar idealizado pela distância. O mesmo fenômeno que percebemos nas desventuras do jovem Törless (da novela de R. Musil)


link para ensaio sobre “Jovem Törless”

http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2012/03/sobre-o-jovem-torless-de-r-musil.html



Deslocado meio aos colegas, alunos muitas vezes rudes e violentos, o jovem teme morrer no internato, no rigor religioso dos jesuítas, ele imagina a própria morte, a tristeza de ser velado meio aos estranhos. É um jovem que toma consciência da própria finitude.


Outra consciência surge: a de classe. Ao conviver com colegas provenientes de várias classes, Stephen percebe que algumas famílias são mais prósperas do que outras, tem interesses diversos – sejam econômicos ou políticos – que sua família não está incluída entre as mais ricas. Stephen se compara com os colegas, e assim percebe a própria condição.


Por que ele não queria dizer? O pai dele, que tinha cavalos de corrida, devia ser um magistrado assim como o pai de Saurin e o pai de Roche Nojento. Ele pensava sobre o seu próprio pai, de como ele cantava canções enquanto sua mãe tocava e de como ele sempre dava um xelim quando ele pedia seis pences e sentia muito pois ele não era um magistrado igual aos pais dos outros garotos.”


Why did he not tell it? His father, who kept the racehorses, must be a magistrate too like Saurin's father and Nasty Roche's father. He thought of his own father, of how he sang songs while his mother played and of how he always gave him a shilling when he asked for sixpence and he felt sorry for him that he was not a magistrate like the other boys' fathers.



As condições econômicas da família de Stephen são apresentadas ao longo da narrativa –e continua na 'sequência', o romance denso “Ulisses” - para apresentarem um recorte dentro da pirâmide social, ou a pobreza enquanto outra limitação para o protagonista (assim encontramos tal limitação nos protagonistas de “Crime e Castigo” e “Fome”, obras lidas nos próximos artigos) já às voltas com sua introspecção, deslocamento, solidão, percepção religiosa.


Os conflitos de religião, de política, envolvendo padres e nacionalistas, estão sempre presentes na vida de Stephen, desde as primeiras cenas domésticas. Protestantes nacionalistas se aliam com maiorias católicas para garantirem os acordos com os dominadores ingleses. Facções de nacionalistas preferem a luta armada, planejam atentados. Assim a luta de Charles Parnell, de Michael Collins, de Éamon de Valera, dos Fenianos, do Exército Republicano Irlandês (o IRA). Encontramos eventos mencionados durante a narrativa, em discussões em ceias familiares, em falas de adultos ao redor do jovem protagonista, mas sem um foco, tão somente pano-de-fundo.


As cenas de família se alternam – muitas vezes – com cenas de família, na oscilação do jovem entre os papeis de 'filho' e 'aluno', sempre na dependência dos pais ou dos professores, devendo sempre obediência no processo que chamamos de 'educação', mas revela-se 'domesticação'. Punições físicas que humilham os alunos, eis uma violência que não faltava.


Foi errado; foi injusto e cruel; e, enquanto ele se sentava no refeitório, ele sofria, tempo após tempo, na lembrança, a mesma humilhação até que ele começasse a se perguntar se não devia haver realmente algo em sua face que fazia com que ele parecesse um enganador e ele gostaria de ter um espelho para ver. Mas não podia ser; e foi injusto e cruel e errado.” (“It was wrong; it was unfair and cruel; and, as he sat in the refectory, he suffered time after time in memory the same humiliation until he began to wonder whether it might not really be that there was something in his face which made him look like a schemer and he wished he had a little mirror to see. But there could not be; and it was unjust and cruel and unfair.” )



A onipresença da religião, na família, no colégio dos jesuítas, acaba por criar uma sobreexcitação religiosa no jovem Stephen, que sente a opressão do poder divino, do olhar divino, da vigilância sobre os 'pecados'. Em arrepios ele passa a noite a espera da punição divina. Ainda que venha a sofrer apenas com a palmatória de um tutor sádico, na sala de aula. Humilhação que ele supera ao se explicar com o diretor e conseguir a compreensão deste.


Neste episódio já podemos compreender a severidade e até sadismo do colégio religioso, sempre pronto para reprimir os impulsos – ditos 'pecaminosos' – dos jovens. Uma cultura de repressão que cria neuroses. Nenhum novidade. Aqui temos o testemunho – no início do século 20, daquilo que incomodava pensadores como Sigmund Freud, Wilhelm Reich e Erich Fromm.



No Capítulo 2 voltam as cenas familiares, os parentes, as menções aos fatos políticos da conturbada Irlanda do início do século 20, tudo se junta as vivências do resto da infância, quando despertam as interrogações e interesses dos adolescentes. Os passeios, os vultos das cidades grandes, os primeiros desassossegos. O narrador adentra os movimentos íntimos do protagonista (num olhar de sondagem interior que encontramos na obra de Virginia Woolf e Clarice Lispector),


Ele saiu uma vez ou duas com sua mãe para visitar os parentes: e apesar de eles passarem por joviais fileiras de lojas iluminadas e enfeitadas para o Natal, seu modo de amargurado silêncio não o deixava. As causas de sua amargura eram muitas, remotas e próximas. Ele estava irritado consigo mesmo por ser jovem e presa de inquietos impulsos fúteis, irritado também com a mudança da sorte que estava remoldando o mundo ao redor dele numa visão de vileza e insinceridade. No entanto a sua ira nada deixava à visão. Ele relatava com paciência o que ele via, destacando-se disto e provando seu gosto mortificando em segredo.”

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He went once or twice with his mother to visit their relatives: and though they passed a jovial array of shops lit up and adorned for Christmas his mood of embittered silence did not leave him. The causes of his embitterment were many, remote and near. He was angry with himself for being young and the prey of restless foolish impulses, angry also with the change of fortune which was reshaping the world about him into a vision of squalor and insincerity. Yet his anger lent nothing to the vision. He chronicled with patience what he saw, detaching himself from it and tasting its mortifying flavour in secret.”



Na mesma época o jovem Stephen conhece o primeiro amor, a imagem da amada garota que não sai da cabeça, o impulso de adoração masculina diante da donzela eleita. As cenas mais prosaicas se tornam as mais líricas. Um encontro na rua, um aceno, um adeus, uma viagem no bonde (tram),


Seu coração dançava com os movimentos dela tal qual uma boia na maré. Ele ouvia o que os olhos dela lhe diziam lá de sob o capuz e sabia que em algum obscuro passado, se na vida ou num sonho, ele tinha ouvido esta estória antes. Ele via os ímpetos da vaidade dela, com seu vestido fino e faixa e longas meias pretas, e sabia que ele tinha se rendido a elas umas mil vezes. Contudo uma voz íntima falava acima do ruído do coração dançante, a perguntar-lhe se ele levaria a dádiva dela a qual ele teria apenas de estender a mão.”


His heart danced upon her movements like a cork upon a tide. He heard what her eyes said to him from beneath their cowl and knew that in some dim past, whether in life or revery, he had heard their tale before. He saw her urge her vanities, her fine dress and sash and long black stockings, and knew that he had yielded to them a thousand times. Yet a voice within him spoke above the noise of his dancing heart, asking him would he take her gift to which he had only to stretch out his hand.”



Também as leituras se revelam aos olhos do jovem, que precisa defender seus gostos estéticos diante dos outros jovens, outros grupos, que demonstram força, mas não exatamente inteligente, quando se esforçam para agradar professores e cânones. Stephen é um aluno aplicado, é um 'bom moço', mas não segue as regras dos cânones. Tem seus autores prediletos, tem suas próprias ideias sobre a arte. Claro, tudo como uma 'angústia de influência' (ver H. Bloom) por culpa de tantas leituras,


Ele tinha emergido de um encanto de delírio de dois anos para encontrar-se no meio de um novo cenário, cada evento e figura do que o afetava intimamente, desanimava-o ou iludia e, se iludindo ou desanimando, enchia-o sempre com desassossego e pensamentos amargos. Todo o ócio que a vida escolar deixava para ele foi passada na companhia de escritores subversivos cujas ironias e violência de discurso deixaram um fermento em seu cérebro antes de passarem para os seus próprios escritos imaturos.”

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He had emerged from a two years' spell of revery to find himself in the midst of a new scene, every event and figure of which affected him intimately, disheartened him or allured and, whether alluring or disheartening, filled him always with unrest and bitter thoughts. All the leisure which his school life left him was passed in the company of subversive writers whose jibes and violence of speech set up a ferment in his brain before they passed out of it into his crude writings.”



Lendo os autores considerados 'subversivos', ou 'imorais' (dentre eles os bardos românticos Lord Byron e Shelley), o jovem Stephen começa a desafiar os cânones - e ser olhado como exótico, independente, arrogante - em desacordo com os colegas, em conflitos, em humilhações, numa gradação que atinge o ápice no final da narrativa, quando ele enfim busca o exílio, indo para o continente (o mesmo fez o autor James Joyce, como sabemos).


A questão de honra, aqui levantada era, como todas as questões semelhantes, trivial para ele. Enquanto sua mente tinha perseguido estes intangíveis fantasmas e voltando-se na irresolução de tal perseguição ele tinha ouvido sobre ele as constantes vozes de seu pai e de seus professores, incitando-o a ser um cavalheiro acima de todas as coisas e incitando-o a ser um bom católico acima de todas as coisas. Estas vozes chegavam agora como sons vazios aos seus ouvidos.”

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The question of honour here raised was, like all such questions, trivial to him. While his mind had been pursuing its intangible phantoms and turning in irresolution from such pursuit he had heard about him the constant voices of his father and of his masters, urging him to be a gentleman above all things and urging him to be a good catholic above all things. These voices had now come to be hollow-sounding in his ears.”



No entanto, o jovem Stephen tenta ser um bom aluno, um filho obediente, deseja ordem em sua vida provinciana, de estudante aplicado, para assim domar seus instintos – de luxúria? De subversão? De arrogância artística? - para ser aceito e respeitado. Mas em vão! O jovem não pode se adaptar, 'fazer tudo certo', seguir o senso comum, agradar a todos, sem sentir-se deslocado – com os outros e consigo mesmo.


Quão tolo tinha sido seu propósito! Ele tentara construir um dique de ordem e elegância contra a sórdida maré da vida fora dele e represar, através de regras de conduta e interesse ativo e novas relações filiais, a poderosa recorrência de marés dentro dele. Inútil. Tanto de fora quanto de dentro as águas tinham fluido sobre as barreiras: suas marés começaram uma vez mais a empurrar furiosamente sobre a mole rachada.


Ele via claramente seu tão fútil isolamento. Ele não tinha dado nem um passo para mais perto das vidas das quais ele procurara se aproximar nem transpôs a inquieta vergonha e rancor que o tinha separado de sua mãe e irmão e irmã. Ele sentia que ele era dificilmente do mesmo sangue deles mas permanecendo para eles mais como num místico parentesco de adoção, filho adotado e irmão adotado.”

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How foolish his aim had been! He had tried to build a break-water of order and elegance against the sordid tide of life without him and to dam up, by rules of conduct and active interest and new filial relations, the powerful recurrence of the tides within him. Useless. From without as from within the waters had flowed over his barriers: their tides began once more to jostle fiercely above the crumbled mole.


He saw clearly too his own futile isolation. He had not gone one step nearer the lives he had sought to approach nor bridged the restless shame and rancour that had divided him from mother and brother and sister. He felt that he was hardly of the one blood with them but stood to them rather in the mystical kinship of fosterage, fosterchild and fosterbrother.”



Imerso na vida religiosa, o protagonista passa por um momento de doutrinação, medo, confissão, penitência, considerações dobre a vocação – para a ordem dos jesuítas? Para o panteão da Arte? O capítulo 3 e metade do capítulo 4 tematizam este hesitar entre a vida religiosa e a vida artística, onde a tentação, o medo e a percepção de artista.


Stephen desvia-se dos apelos sensuais das mulheres nas ruas, desvia-se dos desejos que estão dentro, não fora, busca se distanciar apenas para se punir mais. Pois ele vai 'pecar' e depois se martirizar. Pois para o subversivo o pecar é uma forma de vitalidade. Mas ele vai temer as chamas do inferno e buscar perdão.


O jovem artista se oferece para cargos de exemplo, de devoção, onde busca disciplina, pois sabe o quanto está à deriva consigo mesmo e no meio dos outros. Ele está numa espécie de rede de um círculo vicioso. Peca para pedir perdão, e pecar novamente. A religião cria pecados apenas para oferecer absolvições inúteis.


Não vamos nos deter no longo capítulo onde um sacerdote jesuíta descreve as agruras e torturas do Inferno cristão, do Inferno que causa terror para encher os templos. Adora-se a Deus mais por medo do que por amor à divindade. Nenhuma novidade neste raciocínio. Basta ver o quanto as pessoas buscam a vida religiosa após décadas de vida luxuriosa.


O importante é que vemos a oscilação de Stephen, o quanto ele se aproxima da vida religiosa meio aos jesuítas, a ponto de ser convidado a ingressar na severa Ordem de Inácio. Mas o jovem artista não se imagina seguindo tudo um ritual apenas por medo do fogo do Inferno. Por mais que ele chore de arrependimento, ele sabe que vai pecar novamente. Se é que existe pecado, afinal ele segue sua vitalidade, ele aborrece as repressões, ele pode até confessar, mas é um infiel, devoto apenas da própria arte.



Em todo este capítulo, presenciamos a luta de Stephen no embate entre o corpo e o espírito – para usar a imagem cristã – onde os instintos do corpo são considerados como motivadores dos pecados. O mundo ideal cristão é o da repressão dos sentidos, do amordaçamento das sensações. Não se pode sentir, não se pode entregar ao poder sexual, mas manter abstinências, fazer jejuns, mortificar a carne. Mas para Stephen será impossível abafar as pulsões de sua sensibilidade juvenil.


Stephen é seduzido pelo poder da vida sacerdotal, o poder que os religiosos saem ter sobre os pobres leigos pecadores. É a dominação religiosa que fascina o jovem, mas ele não quer pagar o preço. Ele desdenha a classe sacerdotal, o fazer parte de uma classe de 'santarrões', desdenha os 'conhecimentos secretos' que dão poder aos iniciados na seita. Ele será apenas um neófito que prefere seguir seus impulsos estéticos. O jovem desiste de ser o Reverendo Stephen Dedalus, S. J.


Assim Stephen volta-se para o seio familiar, para a pobreza dos irmãos, para a vida limitada na ilha chamada irlanda, para o nacionalismo que divide os cidadãos, para o olhar sobre a sedutora Europa, ali ao lado, mas distante. Meditando, ao longo da praia, observando o cotidiano prosaico a sus frente, mas em indagações líricas sobre o hoje e o futuro, sua vida jovem enquanto promessa de conquistas – mas também possibilidades de derrotas.


Momentos de epifanias – de deslumbramentos intuitivos – quando tudo se desenrola diante dos seus olhos e nos redemoinhos de sua percepção, tudo isso é o Eu juvenil de Stephen, que a narração tenta captar, como será característico nas prosas poéticas de Virginia Woolf e Clarice Lispector.


Epifanias que exigem uma prosa praticamente poética para permitir o desabafo de percepções em sinestesias, em imagens de um poema simbolista. Podemos rastrear aqui influência no título do primeiro livro de uma das grandes escritoras do século 20, a sensacional Clarice Lispector, “Perto do Coração Selvagem” (1943), cuja epígrafe foi extraída do trecho abaixo ,


Onde estava sua infância agora? Onde estava a alma que suspendera de volta do destino dela, para remoer sozinha sobre a vergonha de suas feridas e em sua morada de impureza e subterfúgio para reinar em roídas mortalhas e coroas-de-flores que murchavam ao simples toque? Ou onde ele estava?


Ele estava sozinho. Ele estava desatento, feliz e próximo do selvagem coração da vida. Ele estava só e jovem e voluntarioso e de coração selvagem, sozinho no meio dum deserto de ar selvagem e águas salobras e a colheita marítima de conchas e emaranhado e em luz solar veladas cinzentas e vestidas de luz, vestidas de alegria as figuras de crianças e de moças e vozes infantis e femininas no ar.”

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Where was his boyhood now? Where was the soul that had hung back from her destiny, to brood alone upon the shame of her wounds and in her house of squalor and subterfuge to queen it in faded cerements and in wreaths that withered at the touch? Or where was he?


He was alone. He was unheeded, happy and near to the wild heart of life. He was alone and young and wilful and wildhearted, alone amid a waste of wild air and brackish waters and the sea-harvest of shells and tangle and veiled grey sunlight and gayclad lightclad figures of children and girls and voices childish and girlish in the air.”



No capítulo final, finalmente observamos o desabrochar do artista. Tudo antes foi um preâmbulo, um prólogo para o artista quando jovem. Stephen é um jovem apaixonado pela arte, pelas sensações, pelo belo sexo. De volta ao mundo familiar, após ter abandonado o colégio jesuíta, o jovem espera o ingresso no mundo acadêmico, para estudar Humanidades na universidade, e conviver com outra mentes ávidas.


Filosofia, História, religião, tudo é reevocado, relido e digerido em longas discussões. Se ele, o artista quando jovem, conhece os pensadores religiosos será apenas para aplicar a escolástica numa teoria própria sobre o fazer artístico. Saberá se localizar, saberá definir coisas que são nebulosas para outros. O contato com outros jovens dá ao artista uma percepção de sua identidade e visão estética, entre eruditos, pedantes, nacionalistas, bons moços, rebeldes sem causa.


Stephen precisa conviver entre vários colegas, com estilos , com discursos, com tendências políticas e ideológicas diversas. Para garantir sua individualidade, seu eu integral – ou se esforçar para esta proeza – ele ou vai se isolar, ou vai dialogar com todos. Em sua posição de individualismo, Stephen ouve de um colega envolvido em causas políticas, em debates sempre fervorosos, prontos a decidirem o futuro da sociedade,


-Dedalus, você é um cara antissocial, envolvido em você mesmo. Eu não. Sou um democrata e vou trabalhar e agir em prol da liberdade social e da igualdade entre as classes e sexos nos Estados Unidos da Europa do futuro.

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Dedalus, you're an antisocial being, wrapped up in yourself. I'm not. I'm a democrat and I'll work and act for social liberty and equality among all classes and sexes in the United States of the Europe of the future.



O diálogo com o deão, um religioso inglês, permite a Stephen a percepção dos limites da linguagem. Podem as palavras representarem o mundo? Pode ele empregar plenamente o idioma inglês? Ou será sempre uma língua invasora? Mesmo para ele que não fala o gaélico – antiga língua celta – sufocada pela hegemonia dos anglo-saxões. Uma possibilidade é que ele se apodere desta fala estrangeira e a molde aos seus interesses estéticos (assim será quando James Joyce, o autor, fazer um verdadeiro atentado com a língua inglesa nas futuras obras “Ulisses” e “Finnegans Wake”).


-Estou certo de que não puderia acender uma lareira.

-Você é um artista, não é, Sr. Dedalus? Disse o deão, olhando para cima e piscando seus olhos pálidos. O objetivo do artista é a criação da beleza. O que seja a beleza é outra questão.”


“—I am sure I could not light a fire.

You are an artist, are you not, Mr Dedalus? said the dean, glancing up and blinking his pale eyes. The object of the artist is the creation of the beautiful. What the beautiful is is another question.”



O estudante e o deão discutem sobre Arte, em metafísicas meio escolásticas, mas o jovem não entende as palavras mais prosaicas proferidas pelo inglês, o que seria 'funnel' (funil) para um , o quer seria 'tundish' (gargalo) para o outro? Percebem que usam nomes diversos para o mesmo objeto? Entendem-se em plena repetição de Babel?


A linguagem que falamos é dele antes de ser minha. Quão diferentes as palavras lar, Cristo, Cerveja, Mestre soam nos seus lábios e nos meus! Eu não posso falar ou escrever estas palavras sem um desassossego de ânimo. Sua linguagem, tão familiar e tão estrangeira, será sempre para mim uma fala adquirida. Eu não fiz nem aceitei estas palavras. Minha voz as mantêm entre estanques. Minha alma atormenta-se na sombra de sua linguagem.”

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“—The language in which we are speaking is his before it is mine. How different are the words HOME, CHRIST, ALE, MASTER, on his lips and on mine! I cannot speak or write these words without unrest of spirit. His language, so familiar and so foreign, will always be for me an acquired speech. I have not made or accepted its words. My voice holds them at bay. My soul frets in the shadow of his language.”


Desconfiado dos nacionalismos, dos fanatismos, das ideologias ditas humanistas e humanitárias ao redor, partilhadas pelos colegas em maior ou menor grau, Stephen desenvolve um forte individualismo, que o faz ser rotulado de pouco altruísta, egocêntrico, até reacionário. Para os colegas nacionalistas, o jovem artista é um não-patriota, e é justamente quando o artista irlandês (que logo se auto-exilaria na Europa) declara o que pensa da Irlanda, tradicionalista católica, diante de um estudante feniano (fianna, nacionalista irlandês),


Stephen, seguindo seu próprio pensar, ficou silencioso por um momento.

-A alma nasceu, ele disse vagamente, primeiro naqueles momentos de que te disse. Foi um lento e obscuro nascer, mais misterioso que o nascer do corpo. Quando a alma de um homem nasce neste país existem redes que pairam sobre ela para a arrastarem de volta do voo. Você fala comigo sobre nacionalidade, idioma, religião, eu tento voar para além destas redes.

Davin remexeu as cinzas de seu cachimbo.

-É profundo demais pra mim, Stevie, ele disse. Mas o pais de um homem vem primeiro, a Irlanda primeiro, Stevie. Você pode ser um poeta ou um místico, depois.

-Você sabe o que a Irlanda realmente é? Perguntou Stephen com fria violência. A Irlanda é uma porca velha que devora sua prole.”

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Stephen, following his own thought, was silent for an instant.

The soul is born, he said vaguely, first in those moments I told you of. It has a slow and dark birth, more mysterious than the birth of the body. When the soul of a man is born in this country there are nets flung at it to hold it back from flight. You talk to me of nationality, language, religion. I shall try to fly by those nets.

Davin knocked the ashes from his pipe.

Too deep for me, Stevie, he said. But a man's country comes first. Ireland first, Stevie. You can be a poet or a mystic after.

Do you know what Ireland is? asked Stephen with cold violence. Ireland is the old sow that eats her farrow.”



Realmente, muitos poetas irlandês tentaram transcender a condição de irlandeses e alcançarem o mundo (e primeiramente a Europa), mas poucos conseguiram, com as exceções do próprio Joyce, do poeta Yeats, do dramaturgo B. Shaw, e do pupilo de J Joyce, o dramaturgo-romancista S. Beckett (autor da peça bizarra 'Esperando Godot'). Tanto Yeats quanto Beckett foram laureados com o Nobel de Literatura.



Após o desabafo antinacionalista, o protagonista se entrega as teorizações sobre arte e estéticas, que iniciara pouco antes com o deão dos estudos – junto a lareira – sobre o que seria a preensão estética, o papel do artista, como criar piedade e terror através da obra artística, como funcionam os mecanismos da 'emoção trágica', da busca da beleza.


Para Stephen Dedalus, a Arte não apenas excita os ânimos, mas faz o ser se 'deter' e meditar, não deve apenas causar desejo ou repulsa, mas prender a atenção ao ponto de pararmos para apreciar. A obra de arte, aquela que o protagonista defende, deve ter coesão, coerência interna, simetria.


Derivando de um certo pensamento escolástico, e meio platônico, Stephen defende um parentesco entre a beleza e a verdade (enquanto outros defendem que a arte é ficção, é imaginação, é um tipo de 'mentira' que faz enxergar a verdade...), mas depois mostra que várias percepções estéticas são possíveis - cada povo tem suas percepções sobre o que é julgado belo ou feio, assim como cada época tem seus critérios de julgamento estético. A ideia platônica de que existe o Belo e o Feio, como formas fixas, eternas, é abalada pelo relativismo (e o desconstrutivismo de meados do século 20). o que desperta a sensibilidade de uma pessoa pode passar inteiramente indiferente para outra.


Stephen demostra um farto conhecimento de clássicos gregos – Platão, Aristóteles – e de escolásticos – principalmente Tomás de Aquino – sobre os critérios de Beleza, de Arte, de percepção estética.


Eu traduzo assim: Três coisas são necessárias para a Beleza, a Inteireza, a harmonia e a Radiância. Estas correspondem às fases da apreensão?” (“I translate it so: THREE THINGS ARE NEEDED FOR BEAUTY, WHOLENESS, HARMONY, AND RADIANCE. Do these correspond to the phases of apprehension?” )



A Beleza é vista toda de uma vez, sua apreensão é imediata e total, de modo unitário; segundo ponto, as suas partes, podem ser múltiplas, variadas, mas se harmonizam, se correspondem, contem certa simetria de formas; em terceiro, ilumina a percepção, causa o êxtase do prazer estético, o encantamento.


A Arte – e Stephen fala mais sobre isto – tem suas formas, seus gêneros. E os três principais são aqueles que conhecemos por Lírico, Épico e Dramático.


E as próprias indagações de Stephen estão entre o lírico e o prosaico, o sério e o cômico, o sacro e profano, sobre o que seria obra de arte e o que não-é-arte.


Mas a parte mais prática de toda esta teorização pode ser acompanhada quando o encontramos – como bons voyeurs que somos – Stephen a compor um poema inspirado em seus sentimentos pela sua donzela amada – nada como uma boa musa para inspirar o poeta! Os versos são criados e percebemos toda a formulação estética que condensa as redes de significações - e inspirações, influências, referências - que movem a criação poética.


O estilo textual aqui, do autor J. Joyce aproxima-se muito daquele da autora Virginia Woolf – assim como percebemos no episódio 13 de “Ulisses” com a prosa lírica que acompanha a donzela Nausícaa corporificada numa mocinha na praia de Dublin. É um lirismo que depois se perde num estilo-estilos de paródias e pastiches e ironias, como abemos.


Link para o episodio 13 de Ulisses na Wikisource

http://en.wikisource.org/wiki/Ulysses_%28novel%29/Chapter_13


A imagem da 'musa' inspiradora é melhor compreendida com a reevocação de um trecho lá do capítulo 2, quando Stephen segue no bonde (tram) com a mocinha que passará a visitar seus sonhos ora eróticos ora de amor platônico.


Estamos no preâmbulo do auto-exílio de Stephen, em sua partida pelo continente europeu, para deixar os ares provincianos da ilha irlandesa, sob jugo inglês. O jovem artista aspira conhecer Paris, perambular por Roma, vero Mar Mediterrâneo, ou seja, fazer a tour pela Europa que encantava tanto os poetas românticos britânicos no início do século 19 e os escritores da chamada 'lost generation' norte-americana no início do século 20.


Os sentimentos de melancolia do protagonistas são apresentados com bemas narrações líricas cheias de sensações pictóricas, como se antes de viajar ele já sentisse uma saudade da pátria, num aceno de despedida. Stephen revê, à distância, e depois até troca palavras, com a sua 'musa', e a imagem dela é carregada de um lirismo adolescente.


Adentrando a intimidade de Stephen sabemos que o jovem artista duvida da fé católica, perde a fé no cristianismo – que fora tão rígido com ele no colégio jesuíta –, num duvidar que tanto amargura a mãe que creditava no espírito piedoso do filho. Stephen não deseja viver como um hipócrita, por isso não representa o 'bom católico' diante dos parentes. Ele nem se sente merecedor de piedade, ou afeto. Ele não se julga merecedor do amor da mocinha, a sua 'musa'.


Desde a obra de Dostoievski percebemos que o narrador não mais pretende 'esgotar' a personagem, explicá-la totalmente, sendo mais fácil a personagem falar de si mesma diretamente ao leitor – através de cartas, anotações, fala para outra personagem. O diário de Stephen, nas páginas finais do romance, mostra que o narrador entrega a narrativa ao protagonista (a voz em 1ª pessoa). Stephen se despede da Irlanda, se evade da narrativa. O leitor folheia o diário e se despede do protagonista.


Recebemos o discurso do jovem Stephen, a fala sem intermediários, sem um narrador onisciente. No romance “Ulisses” , principalmente no episódio 3 (ou Proteus) , é a própria 'fala' mental, ou 'monólogo interior', que derrama-se na página. Como se o leitor pudesse 'ler' mente, os labirintos mentais do protagonista. Então o narrador se ausenta.


Ou o narrador é o próprio protagonista. Assim é no próximo (e último) livro que vamos ler – e comentar – para esta série onde a Literatura tematiza os jovens e seus conflitos. O jovem Holden Caulfield narra seus dramas e suas encrencas para o leitor que se emociona e se escandaliza com sua fala juvenil, irônica, amarga, cheia de gírias e ditos niilistas. É dado ao jovem a voz na literatura, com o ousadia de J. D. Salinger em “The Catcher in the rye” (1951, no Brasil, “O Apanhador no Campo de Centeio”).




abr/12


Leonardo de Magalhaens


http://leoliteraturaescrita.blogspot.com





mais sobre Retrato do Artista quando Jovem


info


http://en.wikipedia.org/wiki/A_Portrait_of_the_Artist_as_a_Young_Man


http://www.sparknotes.com/lit/portraitartist/



livro no Project Gutenberg

http://www.gutenberg.org/files/4217/4217-h/4217-h.htm



filmes


A Portrait of the Artist as a Young Man (1977)


http://www.youtube.com/watch?v=lsrWOYhT1sI



LdeM


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