sábado, 7 de agosto de 2010

Les Misérables / Os Miseráveis - de Victor Hugo - Parte 5




Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor Hugo (1802-1885)
As Obras Clássicas (ensaio 3)
O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna
Parte V – Jean Valjean

As grandes barricadas de junho de 1832 são ainda tão-somente o 'prelúdio' das barricadas de 1848. a resistência popular contra as 1forças governamentais'. O tumulto da massa contra as elites. É assim quando as barricadas estendem seus tentáculos sobre 'paz social' burguesa.

“Dezesseis anos se contam na educação subterrânea da revolta, e junho de 1848 sabia-se mais longa que junho de 1832. assim a barricada da rue de la Chanvrerie não era mais que um esboço e que um embrião, comparada às duas barricadas colossais que nós vamos descrever; mas, para a época, ela era medonha.” (“Seize ans comptent dans la souterraine éducation de lémeute, et juin 1848 em savait plus long que juin 1832. aussi la barricade de la rue de la Chanvrerie n'était-elle qu'une ébauche et qu'un embryon, comparée aux deux barricades colosses que nous venons d'esquisser; mais, pour l'époque, elle était redoutble.” II, p. 1253)

Eis o heroísmo – e auto-sacrifício – dos jovens republicanos: Enjolras, Combeferre, Courfeyrac, Bossute, Grantaire, Marius... Mas será necessário que todos os restantes 'se deixem matar'? Que ao menos se livrem os 'pais de família' ... Mas ali não há egoístas nem covardes – recusavam-se a 'abandonar seus postos'.

Enquanto decidem quem deve ficar e quem deve abandonar a resistência, surge um 'oficial' da Guarda Nacional – é o Sr. Fauchelevent, segundo reconhece o jovem Marius. Assim, Valjean consegue 'unir-se ' a barricada. Lá está o prisioneiro Javert, que reconhece o seu velho 'forçado' foragido, Jean Valjean. Os velhos antagonistas se encontram neste ápice dos livros IV e V: as barricadas.

O ataque então começa – por coincidência, pouco antes do retorno do menino Gavroche – quando os revolucionários enfrentam os canhões militares. (Marius pensa: q quem Gavroche entregou a carta endereçada a Cosette? Como se explica a presença do Sr. Fauchelevent?) Os insurgentes observam os jovens oficiais – que morrem para manter o poder dos reis e da nobreza. Ou seja, o poder joga jovens contra jovens, povo contra povo.

Enquanto Valjean ajuda os jovens republicanos lá na barricada, Cosette desperta lá na mansão. O sempre indiscreto Narrador leva o/a Leitor/a ao quarto da jovem. Como bons voyeurs, que todos somos, não hesitamos em acompanhá-lo. “Pode-se, à rigor, introduzir o leitor num quarto nupcial, não num aposento virginal. O verso o ousaria com esforço, a prosa não o deveria.” (“On peut à la rigueur introduire le lecteur dans une chambre nuptiale, non dans une chambre virginale. Les vers l'oserait à peine, la prose ne le doit pas.” X, p. 1288)

Há toda uma descrição detalhista e romântica do quarto, sem esquecer do 'estado de espírito', a sensibilidade, da senhorita. (O Narrador mostra a mulher voltada para os próprios sentimentos, sem nada saber do mundo exterior. Do mundo além da mansão somente os homens se ocupam – em revoltas, motins, guerras...)

Enquanto isso, para economizar munição, os insurgentes não respondem aos ataques da artilharia. Então o Narrador se entrega a uma digressão sobre as atuações da 'guarde nationale' – numa tentativa de mostrar o 'outro lado da colina': quem são aqueles dos batalhões, guarnições, companhias que metralham os insurgentes? As diferenças (e semelhanças!) entre militares e insurgentes, entre repressão e revolta.

A reconstrução textual, da 'batalha' entre exército e revoltas, mescla elementos de cenário com retratos de sentimentos e 'posições ideológicas'.

Na manhã do dia 06 de junho, ainda a resistência dos revolucionários, mas “a esperança dura pouco, o clarão se eclipsa rápido” (“L' espoir dura peu; la lueur s'éclipsa vite.” Livro I, XIII, p. 1299) Os insurgentes sofrem sem munição, sem víveres sem água. Morrem de tiro, de fome ou de sede. Enquanto uns se enraivecem, outros se resignam, um fica impassível: Enjolras. A barricada sofre os golpes de quatro canhões (!) instalados no perímetro.

Quando as munições são escassas, um vulto é percebido fora da barricada – a catar cartuchos dos guardas mortos! É o pequeno Gavroche que se arrisca! Será este o grand finale reservado ao moleque de rua ? O Narrador resolve que a vida de penúria merece ser redimida por uma morte heróica. Entre dramático e charmoso, o menino é baleado.

Presente em toda parte, o Narrador mostra os meninos de rua (“enfants abandonnés”) que se abrigavam na morada de Gavroche, lá no 'Elefante' da praça da Bastilha.

É Marius quem carrega o corpo de Gavroche. Marius, enquanto isso, é ferido. Na pausa, os feridos são medicados, os fuzis recarregados. O Narrador prolonga a narrativa em digressões, descrições, deslocamentos, flashbacks, explicações – enquanto a narrativa 'moderna' se concentra em si-mesma: auto-referente e auto-explicativa. São os editores – e os tradutores – aqueles obrigados a encherem os textos de notas explicativas...

“Há o apocalipse na guerra civil, todas as brumas do desconhecido se mesclam a esses brilhos ferozes, as revoluções são esfinges, e qualquer um que tenha atravessado uma barricada crê ter atravessado um sonho.” (“Il y a de l'apocalypse dans la guerre civile, toutes les brumes de l'inconnu se mèlent à ces flamboiements farouches, les révolutions sont sphinx, et quiconque a traversé une barricade croit avoir traversé un songe.” XVIII, p. 1310)

Registram-se os últimos momentos da barricada da rue de la Chanvrerie. O impassível Enjolras distribui as 'últimas ordens de combate'. Mas impassível que Enjolras só mesmo o inspector Javert. Que sabe ser 'condenado à morte' – e entregue à vigilância de ... Valjean! Javert limita-se a um “É justo.” O agente imagina que Valjean se 'deliciará' com a vingança – mas o que o ex-forçado faz? - Liberta o policial. E revela o próprio endereço! Aos insurgentes, Valjean simula ter eliminado o espião. Segue-se a agonia da barricada.

Em nome do Progresso, a História segue. Os governos caem. Os jovens republicanos morrem. O que é, aliás, o Progresso? O suceder de gerações? O despertar dos povos? A vontade de viver – mesmo que não tenha sentido? “O que é então o progresso? Nós acabamos de dizer. A vida permanente dos povos. Ou acontece que às vezes a vida momentânea dos indivíduos faça resistência à vida eternal da espécie humana.” (“Qu'est-ce donc que le Progrès? Nous venons de le dire. La vie permanente des peuples. / Or, il arive quelquefois que la vie momentanée des individus fait résistance à la vie éternelle du genre humaine” XX, p. 1320)

O ideal seria a 'solução pacífica' – mas o parto do progresso é doloroso – por mais que tenha 'boas intenções'. Em longa digressão, mostra-se o protagonismo francês (ou pós-iluminista) no mundo moderno. (1)

Não falta epopeia na descrição épica – até os “muros de Troia” (da 'Ilíada' de Homero) são evocados (exagero tipicamente romântico que perdoamos em Goethe e Byron, e vamos perdoar em Victor Hugo)

Em suma, os heróis tombam no campo de batalha, e Marius é carregado no instante derradeiro. Prisioneiro de quem? Do sempre heróico Valjean – que desce aos esgotos.

Livro II – os esgotos parisienses

A fuga de Valjean, para as entranhas do esgoto, leva o Narrador a uma longa digressão, a um estudo sociológico – e escatológico – sobre os esgotos da capital francesa. Aqui também algo de irônico e até cínico.

Enquanto “observador social” o escritor declara que a “história passa pelo esgoto” (“l'histoire passe par l'égout”) ou que “a história dos homens se reflete na história dos sanitários” (“l'histoire des hommes se reflète dans l'histoire des cloaques”). Assim, este “observador social” - um proto-sociólogo – vem se emparelhar com um Balzac a documentar em caráter literário – Commédie Humaine – a França do século 19.

O esgoto: digressões escatológicas sobre tipos de estrumes e a produção agrícola! (A lembrar certos trechos sátiros do clássico de Swift, “Viagens de Gulliver”.) Sob a bela e luminosa Paris, uma outra Paris, uma Paris dos esgotos...

O esgoto enquanto abrigo para marginais e revoltosos. E lembramos de uma famosa vítima dos esgotos de Paris: o líder revolucionário Marat (Jean-Paul Marat, 1743-1793), que sofria de doença de pele, devido a constantemente se esconder nos esgotos quando fugia dos soldados monarquistas. Marat vivia dentro de uma banheira – onde, aliás, foi assassinado por uma jovem, Charlotte Corday, adversária política.

Uma das características do Narrador do Autor Victor Hugo, em Os Miseráveis, é o 'enciclopedismo', a obsessão por explicar tudo, contextualizar a Narrativa. Assim, se há uma cena num convento (onde Valjean se refugia com a menina Cosette), há todo um capítulo (ou livro) a esclarecer a história do monastério e a vida monástica. Aqui, no ápice da 'batalha' das barricadas, Valjean se refugia nos esgotos, ao salvar o jovem Marius, ferido em combate. Então há todo um livro a resgatar a história do esgoto de Paris. As origens, a extensão, as ramificações, o labirinto de dejetos sob a metrópole francesa. Só depois voltará a narrativa propriamente dita.

O estilo 'enciclopédico' é usado pelos lusitanos Alexandre Herculano e Almeida Garrett, além do norte-americano Edgar A Poe e do francês Jules Verne. (Outro recurso é utilizar o diálogo, onde as personagens, ao conversarem, 'contextualizam' os fatos narrados – sem uso constante da voz narrativa. Tal método está presente em obra de Dostoiévski, Hemingway e Simone de Beauvoir, por exemplo. Já mesclado ao diálogo, temos os exemplos em obras de Jean-Paul Sartre, Conrad e Umberto Eco, onde o enciclopedismo é 'diluído'.

Sob a vida de 'progresso', há o despejo de dejetos. Há uma “maravilhosa formação histórica chamada Paris” e logo abaixo um labirinto de tuneis, catacumbas, canalizações dando escoamento aos restos fisiológicos de burgueses e miseráveis.

É nesse labirinto – Livro III – que se encontra Valjean. Tenta se localizar, encontrar uma direção, uma saída. A carregar o ferido Marius – que nem geme mais – em passos incertos, a sentir-se cego, assim o herói prossegue. A tropeçar, a afundar em lama, o herói enfrenta o labirinto fétido, sob as ruas em batalha, tal um Ulisses numa odisseia no Mundo dos Mortos, os Infernos. (Para entender estes capítulos é necessário, no mínimo, um mapa da Paris da primeira metade do século 19...) Com uma noção minima de direção, e muito 'sangue-frio', Valjean enfrenta os desafios no mundo das trevas. “As sombras que o envolviam entravam em seu espírito. Ele marchava num enigma.” (“L'ombre qui l'enveloppait entrait dans son esprit. Il marchait dans une énigme.” I, p. 1368) Como escapar dessa fossa tentacular, antes de Marius sangrar até a morte?

Até nos esgotos, os policiais (exploradores de esgotos, com armas e lanternas) a procura de subversivos. Valjean percebe um brilho de lanterna e, prontamente, se oculta no escuro, enquanto a patrulha se desvia para outra ala do labirinto. Valjean, num moneto de pausa e descanso, revira os bolsos de Marius, e encontra o bilhete com o nome do jovem, além do nome do avô e o endereço. Com a claridade a descer de alguma sarjeta, ele pode ler. Depois continua a marcha no labirinto.

A genialidade do Autor se derrama na prolixidade do Narrador ao descrever as dificuldades em cena tão dantesca. É mesmo de causar claustrofobia e desespero. O horror de morrer meio a imundície – enterrado vivo no sepulcro profundo da cloaca parisiense.

Afundado na água, na lama, no fedor, Valjean prossegue, preocupado com a fraqueza e palidez de Marius. Ao final do túnel, uma grade. Hermeticamente fechada. Será o fim? Não há saída... Os penamentos de Valjean não se ligam ao momento - “não pensa em si-mesmo, nem em Marius. Ele pensava em Cosette.” (VII)

Mas ainda não é fim. Temos ainda 150 páginas pela frente, logo um 'deus ex-machina' deve surgir. Mas não será um deus ou anjo ou super-herói a salvar o herói, mas ninguém menos que um bandido, aqui, o velhaco Thénardier! O bandido pensa que o grandalhão assaltou e matou o jovem, e quer metade da 'grana' para então abrir a grade. “Esta providência aparecia horrível, e o bom anjo sai da terra na forma de Thénardier.” (VIII)

O bandido loquaz negocia com o 'assassino' emudecido. Thénardier revista os bolsos a procura de moedas e leva tudo (inclusive um pedaço da roupa de Marius, sem que Valjean perceba) A grade do esgoto é aberta e depois fechada. Sem rangidos – os bandidos cuidam bem dos portais para o 'subterrâneo'...

Ao sair do 'submundo', Valjean respira o ar benéfico e ajuda o desmaiado Marius. Mas outro vulto se aproxima. Valjean o percebe. Novamente entra em cena o inspector Javert, que seguia os bandidos. Javert não reconhece o enlameado ex-forçado, e ex-prefeito provinciano. Mas Valjean não hesita em 'se apresentar', e se entregar ao policial. Apenas, deseja antes, entregar o jovem feridos aos cuidados dos familiares. É assim que o jovem 'pródigo' volta ao lar – um corpo ensanguentado, enlameado, agonizante, sobrevivente das barricadas.

Livros III e IV

Depois de deixarem o jovem desmaiado lá na mansão do avô, o inspector Javert e o protagonista Valjean, seguem para a casa da rue l'Homme Armé. Javert diz esperar à entrada. Mas quando Valjean sobe e olha à janela, ninguém mais está à porta.

Enquanto o avô transtornado observa o que julga ser o cadáver do neto, que “se fez matar nas barricadas”, o inspector Javert vive o profundo dilema entre o dever , a rigidez da lei e a gratidão para com Valjean, a quem o inspector não despreza. Na verdade, Javert reconhece os méritos de Valjean!

A luta entre o dever e a gratidão – após trocar favores com um 'criminoso'.

“Entregar Jean Valjean, era mal; deixar Jean Valjean livre, era mal. No primeiro caso, o homem da lei caía abaixo do homem do crime; no segundo, um forçado subia acima da lei e a calcava aos pés. Nos dois casos, desonra para ele Javert.” (“Livrer Jean Valjean, c'était mal; laisser Jean Valjean libre, c'était mal. Dans le premier cas, l'homme de l'autorité tombait plus bas que l'homme du bagne; dans le second, un forçat montait plus haut que la loi et mettait le pied dessus. Dans les deux cas, déshonneur pour lui Javert.” IV, p. 1415)

Em tal dilema, o inspector perde sua fleuma, perde a si-mesmo, não é mais 'irreprovável', agora que falhou, seu último gesto é atirar-se ao rio Sena.

A narrativa do Livro IV com belas passagens de 'sondagem psicológica', com o dilema de Javert, a reconhecer que ele falhou, e não poderá viver com o próprio fracasso, tem algo de 'existencialismo', o melhor estilo de um Dostoiévski, de um Sartre, de um Camus. O Narrador usa a narrativa densa para 'dissecar' as profundezas psíquicas da personagem – tal percebemos na inglesa Virginia Woolf e na brasileira Clarice Lispector.

Livro V

Marius entre a vida e a morte. Os cuidados do avô junto ao leito do neto. Quando o neto se restabelece, é o avô que se extasia. Os delírios de Marius têm apenas um foco: Cosette. O primeiro desejo do jovem é casar-se. Agora, até o velho aceita.

O avô menciona as visitas do 'senhor idoso' que vem em busca de notícia, a mando da jovem Cosette. O casamento em comum acordo: eis a reconciliação. Há o reencontro de Marius e Cosette (ao estilo romântico) e conhecemos o valor do dinheiro nos 'casamentos burgueses'. Diz Valjean (ou Sr. Fauchelevent): “a Srta Euphrasie Fauchevelent tem 600 mil francos” Melhor argumento que esse não há para o velho Gillenormand!

É que Valjean foi ao bosque junto a Montfermeil buscar o 'tesouro' enterrado. Pois o dinheiro fala: a fortuna da Srta acaba por 'conquistar' a simpatia da família tradicional burguesa, os Gillernormands. O Narrador reforça constantemente – o que cria um 'efeito irônico' – os valores monetários envolvidos no 'matrimônio'. O elemento financeiro se mescla ao elemento afetivo – o idílio amoroso tem o seu lado mesquinho, mercenário. “um dos interessados tinha os olhos vedados por amor, os outros pelos 600 mil francos”. (2)

Cosette é declarada 'órfã de pai e mãe', enquanto o Sr. Fauchelevent é seu tutor (não é o seu 'pai' como ela imaginava...)

Pois bem , eis o final feliz. Cosette rica e casada com um jovem burguês, agora advogado. Pois se engana o leitor, a leitora. Falta algo: a identidade de Valjean. O passado golpeia de volta. Marius não tem certeza se o “Sr. Fauchelevent” foi o seu 'salvador' na fuga da barricada da rue de la Chanvrerie. Nem Valjean esclarece o episódio...

Assim, Marius, o advogado, que sobreviveu à pobreza, à miséria, ele desconhece a 'verdadeira cena' do 'salvamento' de seu pai Pontmercy, quando Thénardier foi roubá-lo no campo de batalha em Waterloo. Marius quer, portanto, encontrar dois homens: o tal Thénardier e o desconhecido que o carregou das barricadas até a mansão do avô. Marius tenta entender como foi levadas das barricadas até a beira do rio Sena – pelo esgoto?! - mas por quem? Seria um outro insurgente? Um agente policial? Um bandido? O homem não voltou em busca de recompensa... terá morrido? Ou preso?

Livro VI a VIII

Estamos em fevereiro de 1833, momento do casamento de Marius e Cosette. Na ausência do Sr. Fauchelevent (ferido na mão direita, num pequeno acidente), o Sr. Gillenormand assume como 'subrogé tuteur' de Cosette.

Valjean, então, sofre uma 'sondagem psíquica' por parte do narrador – em muito semelhante àquela de Javert. Diante de um dilema, o ex-forçado se vê obrigado a revelar-se ao jovem casal. Diante de Marius, o abatido Valjean diz, “Senhor, tenho algo a dizer-te. Sou um antigo forçado”. E revela não ter ferimento algum na mão direita (tudo não passou de um truque para não precisar ir ao casamento e precisar assinar documentos...)

“Eis o que quero dizer-te, que eu já estive nas galés”. E revela-se 'foragido da justiça'. É assustador para Marius: ele, burguês, casado com a filha de um bandido! Mas o Sr. Fauchelevent, ou melhor, Valjean, jura não ser parente de Cosette. E explica o que nós, os leitores, sabemos. A fortuna de Cosette é a devolução de um empréstimo, diz Valjean. Sempre guiado pela honestidade.

Quando tudo parecia resolvido: um drama nas 100 páginas finais! Nada de conciliação e vida em família! Uma incômoda verdade do passado é aqui exumada. Valjean desabafa, “não estou em família, não tenho família”, mas é acima de tudo um “homem honesto”, não pode sustentar uma mentira, uma farsa.

Para a justiça, Valjean está morto, e é assim que ele quer e deve continuar. Pois bem, Marius permite as visitas de Valjean a Sra Pontmercy, mas o próprio visitante se percebe não exatamente 'bem-vindo'. E Cosette não deve conhecer o 'segredo'... É a sinceridade de Valjean que atrai a confiança de Marius, ou Sr. Pontmercy. Mas, Marius acha que Valjean foi a barricada apenas para ter a oportunidade de vingar-se de Javert.

Livro IX

Investigações de Marius. Valjrean afasta-se de Cosette. Surge um carta de um tal Thénard, sobre 'segredos' de família. A visita do tal Thénard (que só pode ser mesmo o velhaco Thénardier). Tudo o que o trapaceiro diz, Marius já sabe. É o momento de desmascarar o velhaco. Mas é este que 'sabe mais', “Valjean não matou o Sr. Madeleine – era Madeleine. E não matou o inspector Javert – o policial se matou.”, diz o despeitado Thénardier. E revela que encontrou um homem a carregar um cadáver na saída do esgoto – mas, é claro, o 'cadáver' era o desmaiado Marius! Este percebe que está diante do 'elo' final para esclarecer tudo!

Pronto, eis a imagem do 'salvador': Valjean foi até a barricada, livrou Javert e carregou Marius pelos esgotos!

E Thénardier é insultado e simplesmente expulso da narrativa. Agora que outro vilão foi expulso – pois o outro (Javert) se expulsou – os elementos desarmônicos são vencidos, e a 'harmonia' pode ser restaurada.

Mas o Narrador não é tão otimista. Quando Marius e Cosette correm para visitar Valjean – que agora sabem ser o salvador do jovem 'barão' – encontram o velho no leito de morte.

Aqui também se encerra este ensaio – que não pretende tecer comentários sobre as emoções finais deste colossal Romance francês denso e enciclopédico chamado “Os Miseráveis”, obra hercúlea do Autor Victor Hugo, ao ousar registrar sua época para a posteridade. (3)

Jul/10
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por Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/
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Notas

(1)“O romantismo político manifesta-se muitas vezes com tendências sociais contraditórias, sendo, portanto, impossível determinar-se qual a ligação direta do socialismo da época com todas as direções que o Romantismo tomou em termos políticos. Podemos até diferenciar entre o romantismo político alemão, nitidamente conservador, e o italiano, em sua maioria liberal, o inglês apresentando as duas tendências em vários de seus representantes, como poderíamos exemplificar em Byron e Coleridge.

Na França, várias foram as fases do romantismo político, não se encontrando nenhuma linha uniforme que permita fazer uma caracterização precisa. Se, de um lado, o saudosismo sentimental para com a antiga França impera nos primeiros românticos, já em Chateaubriand e Lamartine se visualiza uma concepção inteiramente monárquica. Na Revolução de 1830 contra a monarquia dos Bourbons, os revolucionários parecem ao mesmo tempo querer derrubar o romantismo difundido nos meios intelectuais franceses. Mais tarde, com Victor Hugo, que se identifica com as ideias de progresso, fraternidade e democracia do povo, deparemos com uma nova tendência do romantismo político.” (FALBEL, Nachman, in: GUINSBURG, J. “O Romantismo”, SP, Ed. Perspectiva, 2002. 4a ed. p. 36)


(2)Exemplos semelhantes temos no romance “Eugene Grandet”, de Balzac, ou em “Orgulho e Preconceito” (Pride and Prejudice) da inglesa Jane Austen, ou, no Brasil, “Senhora”, de José de Alencar.

(3)Interessante a apreciação do crítico norte-americano Harold Bloom, em seu Gênios (trad. J. R. O'Shea, 2003), na p. 471, “Victor Hugo talvez tenha sido o último dos autores universais, na linha de Cervantes, Shakespeare e Dickens. Não encontro similar no século XX, e duvido que surja algum no século XXI. Les Misérables, para nós um musical, foi lido por toda pessoa alfabetizada, quando lançado na França (1862). aos 71 anos, pergunto-me o que não será transformado em musical. Ainda veremos um Hamlet: o Musical , ou ainda melhor, Rei Lear: um Espetáculo Musical? Na verdade, Victor Hugo adoraria o musical feito a partir da sua obra de vez que pretendia tocar o número mais elevado possível de seres humanos (especialmente as mulheres).” e na p. 479, “O gênio de Victor Hugo, conforme Les Misérables demonstra tão bem, é estranhamente, tão gentil quanto tempestuoso. Tal afirmação parece improvável, mas Victor Hugo foi sempre improvável.”
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