segunda-feira, 10 de setembro de 2012

sobre "Folhas de Relva" (P1) de W. Whitman



sobreFolhas de Relva(Leaves of Grass, 1955 / ed.)
do poeta norte-americano Walt Whitman
(1819-1892)


Folhas poéticas enquanto vozes da pluralidade


parte 1

A importância do poeta Walt Whitman para a poesia moderna não pode ser aqui mesurado nem discutida, uma vez que abordaremos alguns aspectos da sua poética, com ênfase na visão de mundo e na relação autor-leitor. O fato do poeta apresentar-se como um bardo, um profeta, um declamador de odes em versos brancos, figurando como um proclamador da Democracia, que teria berço esplêndido na América (do Norte), é deveras comentado e explicado por inúmeras críticas desde os primeiros leitores e críticos, tais como R. W. Emerson (1803-1882), pensador e poeta conterrâneo e contemporâneo.

A voz de Whitman é ouvida nas quatro cantos da Terra, pois ele cantava suas Canções (Songs) para todos os humanos, não apenas os norte-americanos, para quem ele se afigurou o 'poeta nacional' - assim como os brasileiros identificam um Castro Alves (1847-1871)quando ressaltou as belezas e os males da nação recém-formada. A pluralidade das identificações na voz que se dirige entusiástica aos leitores é reconhecida pelo próprio poeta (Eu me contradigo? Pois sim, eu me contradigo. Eu sou imenso, contenho multidões, Do I contradict myself? / Very well then I contradict myself, / (I am large, I contain multitudes.)” Song of Myself, 51 ) que procura cativar, seduzir e iluminar seus ouvintes-leitores para um fortalecimento da individualidade sem a sombra do egoísmo.

De braços abertos para todos os EUs em pluralidade, o profeta messiânico se expressa em êxtase, em odes sentimentais e evocativas, em versos sem métrica e sem rimas, mas melodicamente rearranjados de acordo com os pulsos da fala e da entonação, como intros e coros de um hino, com repetições, descrições, enumerações, chamamentos, rememorações. É um Eu que está para se celebrar, mas também para celebrar cada um de nós, os milhares, os milhões de EUs presentes e futuros. Sem esta pluralidade a celebração do Eu seria um exercício de egocentrismo e egoísmo.

Assim no poemaSaindo de Paumanok(Starting from Paumanok), o início das andanças, no solo norte-americano, como um andarilho norte-americano cheio de orgulho (E contarei o heroísmo de um ponto de vista americano.”, “And I will report all heroism from an American point of view.”)


Não farei poemas com referência às partes;
Mas farei folhas, poemas, poemetos, canções, ditos, pensamentos com referência ao conjunto:
E não cantarei com referência ao dia, mas com referência a todos os dias;”


Whitman ouve a América cantando, o povo americano se regozijando, se erguendo numa nação de trabalhadores, desbravadores, latifundiários, garimpeiros, senhores de escravos, marinheiros, em suma, multidões de braços e mentes que se destinava a progredir e dominar enquanto nação, com os desafios de manter a prosperidade, abolir a escravidão e consolidar a democracia. Esta o otimismo de Whitman com a América em ascensão. Não sabemos como ele se sentiria no século 20, possivelmente tal qual um Allen Ginsberg, poeta beatnik, com decepção diante de uma América que se tornou tecnocrata, militarista e imperialista.

Eu ouço a América cantando, variadas canções eu ouço,
Aquelas dos mecânicoscada um cantando a sua, como devia ser,
jovial e firme,
O carpinteiro cantando a sua, enquanto ele mede sua tábua ou viga,
...
O dia que pertence ao diaÀ noite, a festa dos colegas, robustos,
amistosos,
Cantando, com bocas abertas, suas firmes e melodiosas canções.

I hear America singing, the varied carols I hear;
Those of mechanicseach one singing his, as it should be, blithe and strong;
The carpenter singing his, as he measures his plank or beam,
...

The day what belongs to the dayAt night, the party of young fellows, robust, friendly,
Singing,
with open mouths, their strong melodious songs.


O qual podemos comparar com o poemaAmérica, escrito um século depois, pelo beatnik A . Ginsberg, cheio de amargor, desiludido,

América eu te dei tudo e agora sou nada.
América dois dólares e vinte e sete centavos Janeiro 17, 1956.
Não aguento minha própria mente.
América quando nós acabaremos com a guerra humana?
se foder com a tua bomba atômica
Não estou legal, não me incomoda.
Eu não escreverei meu poema até ficar melhor
América quando serás então angelical ?

America I've given you all and now I'm nothing.
America
two dollars and twenty-seven cents January 17, 1956.
I
can't stand my own mind.
America
when will we end the human war?
Go
fuck yourself with your atom bomb
I
don't feel good don't bother me.
I
won't write my poem till I'm in my right mind.
America
when will you be angelic?


As diferenças entre Whitman e Ginsberg em relação à nação norte-americana não são apenas temporais e sentimentais, pois, enquanto poetas sensíveis, os autores puderam detectar mudanças e desvios no projeto de uma nação livre que cooperaria para outras nações livres. A percepção dos Estados Unidos enquanto país competitivo, guerreiro e imperialista, como foram, em séculos anteriores, a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha, cria um diferencial : não mais uma celebração, um incômodo, um mal-estar. Não que os poetas se mostrem antipatriotas, anti-americanos, mas temem a águia agressiva na qual se transmutou a nação que nasceu das promessas de democracia e liberdade.

Mas não apenas de América falam os poemas de Whitman, mas também da identidade, do superar a si mesmo, do convívio com a Natureza, num discurso onde a ecologia está presente, onde o homem não é inimigo do homem, nem destruidor de ecossistemas. É uma visão diversa do 'homem lobo do homem' ou da 'decadência', como encontramos em Thomas Hobbes, o pensador, e em Charles Baudelaire, o poeta, mas antes uma confiança na bondade humana, como o 'homem natural' , de J.-J. Rousseau, que viveria em estado de natureza, antes de ser socializado (ou antes: ser corrompido pela sociedade).

Esta posição de Whitman, quase antropológica, de situar a bondade e o bom-viver no centro da individualidade, que jamais deve ser egocentrismo, e muito menos depreciação do Outro, mostra-se mais que um projeto poético, mas antes um modo de vida. Um diálogo filosófico com outros autores do passado, assim como percebeu Fernando Pessoa, poeta português que leu e se banqueteou com os versos do Bardo ianque. Vejamos sua entusiásticaSaudação a Walt Whitman, assinada pelo heterônimo Álvaro de Campos,

Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande
democrata epidérmico, contágio a tudo em corpo e alma,
Carnaval
de todas as ações, bacanal de todos os propósitos,
Irmão
gêmeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques
Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas, 
Homero
do insaisissable de flutuante carnal,
Shakespeare
da sensação que começa a andar a vapor, 
Milton-Shelley
do horizonte da Eletricidade futura! incubo de todos os gestos
Espasmo
pra dentro de todos os objetos-força,
Souteneur de todo o Universo,
Rameira
de todos os sistemas solares...


A percepção quanto a um mundomais particularmente, uma Américaque não é exatamente como Whitman profetizou e desejou, que é, antes, um mundo alienado e descrente, uma Nova York sem poesia, está no poema do espanhol Federico García Lorca,Oda a Walt Whitman, onde as palavras do Bardo parecem ter se perdido no vento,

Mas ninguém se detinha,
ninguém
queria ser nuvem,
ninguém
buscava os fetos
nem
a roda amarela do tamboril.

Quando
a lua saía,
as
roldanas rodaram para derrubar o céu;
um
limite de agulhas cercara a memória
e
os ataúdes levarão os que não trabalham.

assim como está no inusitado do poeta a fazer compras num supermercado, em companhia do admirador Ginsberg, emA Supermarket in California, encarnado na personagem que procura o êxtase além do consumo,

Eu o vi, Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário,
remexendo
nas carnes do refrigerador e observando
os
garotos da mercearia.

Ouvi-o
fazendo perguntas a cada um: Quem matou as costeletas
de
porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo?


Tais citações mostram o quanto os poetas posteriores leram e entenderam o otimista Whitman, e o quando percebem a distância entre o desejado e o vivenciado. O que de positivo e eufórico na poética de Whitman é encontrado depressivo e amargurado nos versos de Ginsberg e Lorca, que viveram meio a repressão, sobrevivendo e morrendo em busca de uma momento de libertação, na poesia, na arte, nos alucinógenos.

Whitman, em sua voz de pluralidade, desconfiava dos imperativos que a sociedade ordenava, em termos de vida ordinária, ou adequação, ou conformidade com os padrões. Ele amava a América, mas no sentido de vastidão e liberdade, assim como os autores beatniks cem anos depois, ao aderirem à vida na estrada (o que muito inspirou o movimento hippie na mesma época). O Bardo da Democracia hesitava em abraçar ideologias, religiões, metafísicas, pois compartilhava elementos de várias, ora exaltando a liberdade, ora a pluralidade, ora a igualdade de oportunidades (i.e, a a justiça social), ora a figura pagã das deidades naturais, ora os mensageiros Buda ou Cristo, cada um com seus sacrifícios e exortações.

E agora, cavalheiros,
eu digo algo para permanecer nas mentes e memórias de vocês,
como princípio e fim de toda metafísica.

(Assim, aos estudantes, o professor,
ao término seu curso lotado.)

Tendo estudado os novos e os antigos, os sistemas gregos e germânicos,
Tendo estudado e atento a Kant e Fiche e Hegel,
Situado o discurso de Platão, e Sócrates maior que Platão,
E outros maiores que Sócrates buscados e referidos, inclusive o
divino Cristo,
Eu vejo hoje reminiscências daqueles sistemas gregos e germânicos,
Vejo todas as filosofias, templos e dogmas cristãos observo,
E mesmo abaixo de Sócrates eu vejo claramente,
e abaixo do divino Cristo, eu vejo
o puro amor do homem por seu camarada, a atração do amigo pelo amigo,
de uma mulher pelo marido, de filhos pelos pais,
de uma cidade por outra, de uma terra por outra.

(A Base de Toda Metafísica, The Base of All Metaphysics)


É evidente em Song of Myself, quando o Eu é aberto a coletividade, não sendo mera concha egocêntrica, voltada para si, a esquecer as miríades de outros 'Eus',

Estes são realmente os pensamentos de todos os homens em todas as eras e países,
eles não são originais em mim,
Se eles não são seus tanto quando meus, eles são nada, ou próximos de nada.

Onde todos podem compartilhar sentimentos e afeições, seres humanos entre si e no âmbito da Natureza, onde nada é desprezado. Temos aqui a figura do Homem natural versus a cultura erudita, os livros, as filosofias, o que encontramos também na figura poética de Alberto Caeiro (heterônimo do português Fernando Pessoa),

Que eu caminho até minha varanda, onde paro para considerar se realmente será,
Uma flor na minha janela me satisfaz mais do que a metafísica dos livros.”
(That I walk up my stoop, I pause to consider if it really be,
A morning-glory at my window satisfies me more than the metaphysics of books.
Song of Myself)

no mundo natural, lá o poeta se sente a vontade com os animais, os seres sem ambições e mesquinharias, que ensinam lições ao andarilho,

Acho que poderia me voltar e viver com os animais, eles são tão calmos e auto-contidos;
Eu fico aqui e observo-os por muito e muito tempo.

Eles não se esforçam nem resmungam sobre suas condições;
Eles não sofrem insônias no escuro a lamentar por seus pecados;
Eles não me aborrecem a discutirem seus deveres quanto a Deus;
Nenhum está insatisfeito – nenhum está demente com a mania de possuir coisas;
Nenhum se ajoelha diante de outro, nem de sua espécie que viveu milhares de anos;
Nenhum é respeitável ou industrioso sobre a terra.”

Explica-se o olhar sobre o mínimo, sobre o ínfimo, sobre o que é desprezado comumente em relação com o que é considerado elevado, sublime, sagrado. Da mesma forma que Blake (tudo o que vive é sagrado), o poeta Whitman considera a santidade de tudo.

Acredito que uma folha de relva não é menos que a jornada das estrelas,
E a formiga é igualmente perfeita, e um grão de areia, e o ovo da carriça,
E a rã é uma obra-prima para o altíssimo,
E a amora-preta rasteira adornaria os salões do Céu.

I believe a leaf of grass is no less than the journey-work of the stars,
And the pismire is equally perfect, and a grain of sand, and the egg of the wren,
And the tree-toad is a chef-d’œuvre for the highest,
And the running blackberry would adorn the parlors of heaven,

(Song of Myself)


Em seu culto do bom-viver, da harmonia com a natureza, no desejo romântico de voltar ao lar, Whitman não prega doutrinas pagãs, apenas relembra os simbolismos, que tanto agradaram aos poetas arcadistas (século 18), que almejavam uma vida pastoril, bucólica. O poeta não protestante, não pagão, por outro lado, não é um descrente, um niilista, mas antes um ser aberto a todas as perspectivas e crenças,

Eu não vos desprezo, padres, todo tempo, no mundo todo,
Minha fé é maior que crenças e a última das crenças,
Englobando culto antigo e moderno e todos entre o antigo e o moderno,
Acreditando que eu devo voltar sobre a terra após cinco mil anos,
Esperando respostas de oráculos, honrando os deuses, saudando ao sol,”

I do not despise you priests, all time, the world over,
My faith is the greatest of faiths and the least of faiths,
Enclosing worship ancient and modern and all between ancient and modern,
Believing I shall come again upon the earth after five thousand years,
Waiting responses from oracles, honoring the gods, saluting the sun,

(Song of Myself)

e

Eu digo à humanidade, Não seja curiosa sobre Deus,
Pois eu, que sou curioso sobre tudo, não sou curioso sobre Deus,
(Nenhum arranjo de palavras pode dizer o quanto estou em paz sobre Deus
e sobre a morte.)”

And I say to mankind, Be not curious about God,
For I who am curious about each am not curious about God,
(No array of terms can say how much I am at peace about God and about death.)

(Song of Myself)


Sem preocupar-se com doutrinações, mas apenas declamações, exclamações, enumerações, Whitman procura apresentar a pluralidade das pessoas, do mundo, das paisagens, das profissões, dos pontos de vista, das doutrinas e ideologias, dos cultos e seitas, dos desejos e tabus. Em comunicação com todos os leitoressejam eles quem forem- o poeta quer expressar com amabilidade, compreensão mútua, até cumplicidade. Quem é que se aproxima? Quem ousa adentrar o mundo de visões e sentimentos do poeta?

Alguns poemas evidenciam esta necessidade de esclarecer as expectativas em relação ao outro, para quem nenhum das partesnem o autor , nem o leitor - se sintam decepcionadas,

É você a nova pessoa que vem a mim?
Para começar, eis um conselhoeu sou certamente bem diferente
do que você pensa.
Você pensa encontrar em mim o seu ideal?
Pensa ser tão fácil eu me tornar seu amado?
Pensa que minha amizade é fonte de satisfação genuína?
Pensa que eu seja fiel e digno de confiança?
Você não mais nada além desta fachadado meu jeito
suave e tolerante?
Acha que vem avançando num chão realmente firme rumo
a um homem realmente heroico?
Nunca pensou, ó sonhador, que tudo poderia ser maya, ilusão?
 
(Are you the new person drawn toward me ?)

e

Quem quer que você seja, segurando-me agora nas mãos,
Sem uma coisa, tudo será inútil,
Vou avisar antes que você continue,
Não sou o que você supõe, sou bem diferente.

Quem é ele que se tornaria meu seguidor?
Quem se alistaria a ser candidato de meus afetos?

...

Mas ao conhecer atentamente estas páginas, você conhecerá o perigo,
Pois estas páginas, e a mim, você não pode compreender.
Primeiro, elas iludir você, mais adiante,
e eu vou iludir você, com certeza,
Mesmo quando você pensar que me apanhou, veja bem!
Veja que eu escapei de você.

(Whoever you are, holding me now in hand)


O poeta se dirige aos leitores, os nascidos e os das próximas gerações, deixa palavras para os poetas do futuro, que devem receber a mensagem e enviar adiante. O poeta não está desatento a quem quer que esteja passando por perto,

Estranho que vai passando! Você não sabe o quanto tenho te
olhado,
Você deve ser aquele que eu procurava, ou aquele que eu
procurava, (e veio a mim tal um sonho)
Em algum lugar certamente vivi uma vida feliz ao seu lado.
Recordo tudo quando quase nos encostamos, fluídos, afetivos,
castos, maduros,
Você cresceu ao meu lado, e foi um menino ou uma menina,
Comemos e dormimos juntos, seu corpo não era apenas seu
Nem meu corpo apenas meu,
Entrega-me o prazer de seus olhos, face, carne, quando passamos,
você leva minha barba, meu peito, minhas mãos,
A você nada direi, eu fico a pensar em ti quando estou sentado
sozinho ou acordado noite a dentro,
Estou a esperar, não duvido que te encontrarei novamente,
Estarei atento para não te perder.

('A Um Estranho' / To A Stranger)

pois devem receber um 'verso especial', sentir que o poeta escreveu justamente para aquele ou aquela que se entrega à leitura,

Vocês todos milhões de nomes não-escritos, todosvocês sombrio
legado de todas as guerras,
Um verso especial para vocêsum clarão de dever
muito tempo negligenciado -
sua mística lista estranhamente ajuntada aqui,
Cada nome invocado por mim destas trevas e das cinzas da morte,
De agora em diante para ser, profundo, profundo em meu coração
recordando, por muitos anos futuros,
Sua mística lista inteira de nomes desconhecidos,
seja do norte ou do sul,
Embalsamada com amor nesta canção crepuscular.

('Uma Canção Crepuscular' / A Twilight Song)


continua...


(*)aqui todas as citações de poemas traduzidas por LdeM


ago/12


Leonardo de Magalhaens



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