quarta-feira, 25 de agosto de 2010

sobre a obra do Marquês de Sade







Sobre a obra do Marquês de Sade (1740-1814)
pensador e autor licencioso francês

Quando a Literatura revela o irracional e o perverso

O autor maldito Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade, 1740-1814, autor licencioso do século 18) é uma das figuras mais controvertidas de qualquer Cânone. Seria ele um mero pornógrafo ou um autor a frente da própria época? Um louco desvairado ou um precursor da 'liberação sexual' que vivenciamos no século 20?

Suas obras “Justine”, “A filosofia na alcova” e “Os 120 dias de Sodoma” apresentam uma linguagem alegórica e realista, psicológica e debochada, demasiadamente humana e satírica, onde as paixões mais sórdidas e os pensamentos mais cínicos são explicitados, entre uma luxúria e outro, uma sacanagem e outra.

Sacanagem em todos os sentidos. O sexo é mais um dos tantos modos de dominação do Outro. Usar e abusar do Outro enquanto Coisa, enquanto Corpo. A racionalidade não mais é que um 'verniz' sobre o animal cheio de desejos, que se diz Humano e Racional. A insanidade é um bem-comum compartilhado por todos, sejam ricos sejam pobres, sejam nobres sejam plebeus.

O duelo Razão X Loucura, ou Moderação X Luxúria, é o leitmotiv da obra de Sade, a partir de então relacionado a todo tipo de Excessos, Exageros, Alegorias Sexuais, Pornografia, Sadomasoquismo, Surrealismo, em suma, todo o lado 'perverso' que a Racionalidade Instrumental procura dominar/ abafar.

Por este desvelar a 'nossa natureza sombria' (que a Sociedade doma, ao contrário de perverter, como dizia o filósofo Rousseau, defensor do 'bom selvagem') o Marquês de Sade seria merecedor de figurar no Cânone? De ser um precursor do psiquismo (a 'dissecação psíquica') de Freud, então criador da Psicanálise? Até onde podemos 'reabilitar' Sade sem caírmos na 'perversidade'?
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A Sexualidade perversa

Uma das questões levantadas pelos leitores de Marquês de Sade é se a Sexualidade é violência. Ou melhor, se a sexualidade é uma violência consentida. Consentida por uma das partes – a saber, a mulher.

Considerando-seque a fêmea passa a tolerar o desejo do macho e se submeter aos desejos deste. Isso ao escolher um dentre os machos disponíveis e entregando-se a ele, desde que este a proteja da potencial ameaça física dos outros. Ou seja, aceita a violência de um só, evitando assim a violência possível sob o capricho dos outros. A sexualidade feminina, assim, seria co-ordenada de fora- e a partir do desejo masculino- e fruto de um medo ancestral- o de ser violentada.

Uma vez que a carga de violência no ato sexual é permitida pela fêmea, tal fardo é transmutado em prazer, e até ternura, A mulher consente, tolera, com sutil condescendência, os impulsos lúbricos do homem, desde que este a proteja e conceda atenção. A mulher, assim, dispensa um ‘favor sexual’ ao homem, sendo permissiva até um limite de dignidade – que é flexível.

Até porque, para o Marquês, o ato sexual é uma relação de dominação. Sade traz para o plano sexual as relações de poder mestre-escravo, num momento de turbulência política, quando os nobres se percebiam ameaçados pelos burgueses, agora assumindo a dominância política, além da econômica.

Sendo o ato sexual, sutilmente até, um ato de dominação, a característica perversa é salientada. Perversa no sentido de não-convencional, não-aprovada, desviada de um objetivo reprodutivo. Sexo enquanto afirmação, busca de prazer, troca de fluidos. Em gradação até o sexo enquanto humilhação do outro. Pois no sadismo o prazer do Eu é mais importante que o prazer do Outro, e até além, o eu sente prazer justamente com o desprazer (dor) do Outro. O Eu domina e o Outro se submete. Um é o mestre, e o Outro é o escravo. (A mesma dialética estudada pelo filósofo alemão Hegel, em “A Fenomenologia do Espírito”, 1807)
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'Perverso' é então todo desvio de um padrão, podendo ser uma posição excêntrica de coito até uma modalidade de tortura física e psíquica. E Sade sabia que para cada mestre, um potencial torturador, havia vários servos, os potenciais torturados. Ou como se diz, os sádicos e masoquistas que se entendam.
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Alegorias da Dominação

Em suas alegorias, sutilmente desmascarando a hipocrisia, Sade causou polêmica, e a sociedade logo prontificou-se a rotulá-lo, visando sua anulação. Nada de retirar o véu sobre as convenções, diziam. O Marquês que vá se entender com os loucos. Mas todos entendiam que as alcovas de seus escritos estavam as representações de várias alcovas reais.

Assim como Ovídio é considerado o ‘imoral’, acima de depravados como Petrônio e Apuleio, por desafiar os padrões da época (que era realmente perversa e imoral) ao revelar o que se ocultava sob o verniz. Nunca denuncie o que todos desejam ocultar, eis um conselho de amigo. “O Asno de Ouro” seria queimado ao lado de “Dias de Sodoma”, tudo para resguardar a 'etiqueta social' e os 'bons costumes'.

Aquela concepção de jovens ingênuas e, ao mesmo tempo, lúbricas, traz a imagem da mulher-menina, da potencial senhora dentro de cada donzela seduzida. Um temor masculino de que a senhora ali adormecida desperte para dominar o dominador. E as figuras do sedutor se mostram as mesmas, ora um sacerdote (possuindo a pupila, ou uma freira juvenil), ora um nobre (seduzindo uma serva, ou a filha de um vassalo), ora um cavaleiro (possuindo donzelas em suas andanças). Todas as encarnações do desejo patriarcal de dominação, onde o homem manda e a mulher obedece.

A mocinha Justine é essa imagem da mulher dominada, sempre na ignorância, e sempre abusada, vitimada pelos desejos e perversões masculinas. A obra “Justine ou os Infortúnios da Virtude" (Justine ou Les Malheurs de la Virtu)”, publicada em 1791, tem algo daquele estilo panfletário, alegóricos, das obras de Rousseau e Voltaire – numa tradição satírica que remota a Rabelais e Swift. Onde as voltas e revoltas da linguagem – e do estilo - estão à serviço de algum 'pensamento', algum ensino moral. Assim o Cândido tem como título alternativo “O Otimismo”, enquanto apresenta justamente uma série de desgraças (naufrágios, terremotos, traições...).

Que sofrimentos atingem Justine? A própria condição de mulher é o portal para o sofrer – ser um corpo a servir às lascívias masculinas, sendo possuída como 'coisa', não entendida como 'pessoa'. Se o jovem Werther (aquele que também sucumbe de 'sofrimentos', na obra de Goethe, “Sofrimentos do Jovem Werther”, 1774) O leitor ouve a narração da jovem, que não poupa imagens de humilhação e denúncias de crueldades. O desejo masculino sendo movido – e excitado – pelo sofrer da mulher.

A jovem Justine é abusada por aqueles que deveriam zelar por sua educação e bem-estar. Assim muitas crianças abusadas por familiares e parentes que aparentemente são dignos de confiança – e usam justamente esta confiança para humilhar e abusar sexualmente das crianças. Assim os educadores, os padres, os diretores de orfanatos, as autoridades - que aparentemente são inofensivas – mostram que a perversidade está dentro – quando menos se espera a Razão é vencida pelo Desejo desvairado e eis o crime – o fim da Virtude.

Entre cada abuso, a Narradora-vítima descreve os tipos masculinos que abusam de sua juventude, assim como nas obras de Narrador (não-personagem) temos verdadeiras digressões filosóficas sobre a 'natureza humana' que a 'civilização' cristã e repressora não conseguiu destruir – no máximo abafar. Agora os desejos abafados ressurgem ainda mais exagerados e letais. Represado antes, agora pervertido. A sexualidade não é mais um 'encontro' com o Outro – mas a dominação do Outro. (Destaca-se “La Philosophie dans le boudoir” com toda uma estética não-ética, imoral, do Outro enquanto objeto do Desejo – o Outro a ser instrumentalizado para se conquistar o Prazer. E toda uma 'filosofia' para justificar o prazer que resulta da dominação...!)

A própria condição da mulher – imagem-mor da 'passividade' – é percebida pela jovem Justine ao observar o comportamento das demais jovens submetidas igualmente aos abusos. Elas reagem com um 'comportamento de ovelhas' como cúmplices diante do sofrer das outras. A 'miséria ama companhia' diz o ditado, e é verdade aqui. Eu sou abusada, mas não é apenas eu, devem pensar as ninfetas violentadas. E a coletividade das abusadas-vitimadas são conduzidas como ovelhas pelos pastores (sim, o que não faltam são sacerdotes abusadores!) rumo ao sacrilégio da Virtude. (Claro, o Sexo é sempre visto como Pecado...)

As jovens inclusive debatem os papéis sociais – derivados dos 'sexuais' – da mulher enquanto 'sexo frágil', inferior ao homem, e de como é possível serem 'companheiras' e fiéis esposas aos seus maridos. Aliás, o que pode fazer uma esposa para agradar ao marido? (Marido que muitas vezes a moça não escolhia – era tudo negociado pelas famílias, com acordos pré-nupciais, etc) Quais os deveres e direitos das mulheres? E dos maridos? Como 'disciplinar' uma união basicamente 'sexual'? (Visto que assim que o homem se entediasse com a esposa, poderia seduzir outras, as amantes, as concubinas, geralmente humildes, servas, pobres, e mantendo a hipocrisia de sempre.)
A Narradora-vítima re-vivencia o sofrimento ao narrar, e ainda mostra um aspecto de 'torpor' diante do carrasco – o estar dominado precisa ser 'aceito' para o 'jogo sexual'. Diante do sádico o melhor a fazer é ser masoquista. Ela roga por piedade, mas precisa se submeter. Assim, como a vítima que se percebe lubrificada quando do ataque do violador, a jovem descobre que o 'jogo sexual' é o medo do passivo a excitar o desejo de dominação do ativo. Quando mais a jovem grita por piedade – mais o agressor se excita, se animaliza!

Dizemos 'ativo' e 'passivo' para não ficarmos apenas no 'macho' e 'fêmea' quando o assunto é sexualidade. Assim, no caso da sodomia, temos o fato de um macho dominar sexualmente outro macho. O primeiro é dito 'ativo' e o segundo, 'passivo'. E O 'passivo' pode ser, ao mesmo tempo, 'ativo' em relação ao uma mulher. É justamente essa confusão de 'papéis sexuais' que tumultua as orgias sádicas – não há mais fronteiras, 'ninguém é de ninguém', tudo é válido. Atividade e passividade se tornam um grande 'jogo' de ganha-perde. A violência sofrida pelo Eu - quando se é passivo – pode ser repassada ao outro – quando o Eu se torna ativo.

O escândalo advém de se mostrar a realidade, e isso Sade causou mesmo. Apresentou a mulher como um brinquedo perigoso para uma sociedade hedonista que desabaria numa revolução sangrenta. (Qualquer comparação com a Roma de Ovídio e Apuleio é mera coincidência?)

Assim a perversão não é a de Sade (que apenas deu livre vazão as suas fantasias), mas de todo um sistema de dominação que vicejou e ainda não se desfez. Vivemos nutrindo sonhos eróticos e temendo realiza-los. A mulher quer ser independente, mas ainda se submete aos desejos masculinos. O homem ainda se sente inseguro quando a mulher quer realizar as fantasias dela. Os casais ainda jogam o mesmo jogo de dominação que o Marquês apresentou alegoricamente tão escandaloso.

O mesmo Marquês de Sade que não acreditava muito nos slogans da Revolução burguesa - “Liberté, Egalité, Fraternité” - e que desprezava qualquer reforma política – que não desfaria a 'natureza humana' egoísta e perversa. Aliás, 'perverso' nem seria o termo aqui – o que se considera 'pervertido', para o Marquês é a pura essência do ser humano.

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sobre o Marquês de Sade
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sade
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link para obras de Sade (en français)
http://www.sade-ecrivain.com/
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contextualização histórica de Sade
http://www.klepsidra.net/klepsidra8/sade.html
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a peça Marat / Sade do autor alemão Peter Weiss
http://il.youtube.com/watch?v=aur-t-RtOJM&feature=related
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sábado, 14 de agosto de 2010

sobre ' Germinal ' de Émile Zola




Sobre o romance GERMINAL (1885)
do escritor francês Émile Zola (1840-1902)


Germinal: a Arte politizada enquanto Arte crítica


A Arte é o olhar crítico - não só arte engajada, mas um mostrador dos descontentamentos do povo. Ser um artista engajado é um prejuízo para a arte? Sim, subordinar a expressão artística a uma dada ideologia, jogo político. Não o dizer sobre a ideologia e a política. Mas a arte é antes de tudo EXPRESSAR algo de alguma FORMA, em som, palavra, música, objeto, formato, gestos,

Dizem que o Comunismo sufocou Maiakóvski. O Estalinismo certamente. Pois não houve sequer socialismo na URSS, como vai haver 'comunismo'? O socialismo nem o comunismo ou o anarquismo são sistemas perfeitos. São sistemas idealmente igualitários. Melhores que o capitalismo. (O socialismo teoricamente viável, e o comunismo e o anarquismo demasiado utópicos, onde tanto Marx quanto Bakhunin são sonhadores)

Mesmo num mundo socialista a arte deve ser autônoma e crítica. 'Arte pela arte' não existe: existe arte feita por alguém para um público. Um público que será crítico e parâmetro. Um público que poderá ser despertado ou hostilizado. A simples escolha de uma temática já é política. Pode-se falar sobre borboletas, mas se falarmos de a extinção de borboletas por causa do desmatamento, surgem as perguntas: quem está derrubando as árvores? Quem vende e quem compra os troncos? Quem tem o direito de explora um meio ambiente?

Pois bem, um tema que poucos escritores abordavam com profundidade, em pleno século 19, com as raras exceções de Victor Hugo, Dickens, Dostoiévski, é a condição da classe trabalhadora. Os romances descreviam ambientes burgueses, festas de debutantes, heróis aristocratas, generais em cavalos brancos, e nada a dizer sobre a vida das copeiras, dos mordomos, dos escudeiros. E falar da classe proletária, era falar de exploração, lei da oferta e da procura, lei do salário, o conflito entre o trabalho e o capital, descrever a miséria. Ou seja, abrir mão do 'glamour', dos salões sociais, criar uma escrita um tanto quanto crítica e indigesta, como fazia Dostoiévski com seus "Crime e Castigo" e "Os Possessos", e depois Górki e Émile Zola.

Quando Émile Zola entendeu a pretensão de Balzac com suas obras em recortes verticais na sociedade francesa, com personagens de todas as classes sociais e regiões, e sentiu a complexidade das descrições de Stendhal, contudo mais 'enxutas' que as longas inserções e líricas passagens românticas de Victor-Hugo (nos clássicos "Les Miserables"/Os Miseráveis, e "Notre Dame du Paris"), ele elaborou uma nova linha de escrita, um estilo profundo, mas sem rebuscamentos, explicando mais sem ser didático, deixando as personagens interpretarem os conceitos, sem precisarem ficar expondo tudo em longos diálogos.



(O estilo de Zola : no século 20 temos um Truman Capote. Cru e curto. Frases laminares. Sem frescuras. Será que Capote era leitor de Zola?)

A fala popular foi utilizada, mostrando o cotidiano das classes menos educadas, que eram invisíveis aos burgueses de Paris, que viviam num mundo de luxo e gastança, indiferentes às vidas dos mineiros que extraiam o carvão e o gás que aqueciam e iluminavam as belas mansons dos boulevards!

Germinal faz parte da série de vinte romances Les Rougon-Macquart (escrita de 1871 a 1893), com o subtítulo "História natural e social de uma família no Segundo Império", no período até a derrota francesa para os prussianos-germânicos em 1870, onde as condições do meio e a fisiologia determinam as ações humanas, seus conflitos familiares e sociais.

Da série de romances destacam-se três, "L'Assomoir" (1877) onde são retratados os pais de Étienne Lantier, o protagonista de "Germinal", além da brutalidade de seu irmão Jacques, descrita em "A Besta Humana/La Bête humaine" (1890), onde as condições internas naturais se somam as condições externas do ambiente físico e social para determinarem as ações das personagens. ( "O homem é o que ele come", escreveu Feuerbach, num radical materialismo.)
Pouco espaço para abstrações e viagens existenciais (ou existencialistas) : as personagens estão em ação, pouco pensam. Reagem aos instintos, lutam pela sobrevivência. Não há lacunas para a metafísica dos intelectuais de torres de marfim. O retrato é cru e áspero. Deglutimos sem vinho o pão duro e escuro da existência.

Em Germinal há o povo faminto das minas e os burgueses indiferentes nas mansões. Assim um povo da superfície e um povo do subterrâneo. O povo de cima que explora o povo de baixo.(o que lembra algumas 'distopias', tais como "A Máquina do Tempo/The Time Machine", 1895, romance de H. G. Wells, onde há um povo evoluído, os Eloi, e um povo bárbaro, os Morlocks, e também o filme "Demolition Man", 1993, do diretor Marco Brambilla, com Stallone, Snipes e Sandra Bullock, onde no futuro a cidade de Los Angeles (San Angeles, em 2032) tem um povo de educados cidadãos numa maquilagem fascista, mantendo a distância, nos subsolos, uma turma de marginais, punks, desabrigados, todos os excluídos do submundo. Em ambas as distopias (e também em "Brave New World", um pouco diferente) existe a beleza porque existe a pobreza mantida oculta - alguém precisa fazer o trabalho sujo: os miseráveis sem opção. Ou trabalham, ou morrem de fome.

(Na utopia de Marx e Engels, é diferente. Não há uma divisão de trabalho. Exceção talvez para os médicos, um serviço altamente especializado. Todos os outros trabalhos podem ser coletivizados em rodízio. Um dia o cidadão é professor, no outro dia é policial, e noutro é gari. Sem problemas. Ele não será nem professor, nem policial, nem gari. Será um cidadão que executa em rodízio as funções de ensinar, vigiar e limpar. Não terá uma personalidade ligada a uma função. Será um ser humano capaz de executar várias funções para o bem coletivo.)


Para retratar (e não ficar explicando), Zola ressalta características nas personagens, que passam agir por seus condicionamentos, ou guiados por idealismos. Assim o velho mineiro Boa Morte (Bonnemort) é o resignado, o cético, acha que a exploração nunca acaba, "do jeito que sempre foi, sempre será". Enquanto o taverneiro (ex-operário) é um reformista, fazendo pressão para que os patrões concordem em melhorar as condições do povo, sem acreditar que o povo possa chegar ao poder. Mas o maquinista russo Suvarin é o anarquista, seguidor de Bukharin, profeta da luta contra os poderosos, "destruir tudo para mudar tudo", enquanto o retórico Pluchart é o representante da Internacional Socialista, tentando organizar a revolução (mas a Internacional se destrói internamente com as querelas entre socialistas e anarquistas.)


Meio a todos esses obcecados surge um Étienne Lantier, em busca de trabalho, sem pão e sem abrigo. Trabalha por necessidade e logo percebe a exploração descarada que suga a saúde e a dignidade dos mineiros. Passa a ser um revolucionário, que tenta entender Marx, e também Proudhon, Lassalle, de forma a conquistar a liderança dos explorados, no sentido de enfrentar os patrões. Estes são mostrados em suas mansões, em suas vidas frívolas, em infidelidades e caprichos, em caridades pseudo-religiosas, em concorrências, enquanto o povo não tem outra opção senão ser explorado.

Zola escreve fazendo um 'recorte na sociedade', de cima para baixo, de baixo para cima, as ações que determinam outras ações, a 'luta de classes' sem abstrações! Ricos, classe média, pobres, todos interligados num jogo onde poucos ganham, e muitos perdem. O mesmo que Balzac ousou, o mesmo que Flaubert provocou, causando incômodos em muitos 'fidalgos'. Aqui no Brasil tal Literatura também causou polêmica. São exemplos Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo (a fase "O Tempo e o Vento"), Cyro dos Anjos (com o famoso "Montanha"), onde os entrelaçamentos entre exploração e política, pobreza e hipocrisia, ficam claramente expostos. Chagas à mostra.

Os patrões igualmente são representantes dos 'estilos patronais'. Deneulin (da mina Jean-Bart) é o patrão 'paternal', que coloca a culpa sobre a concorrência, enquanto Hennebeau (da mina Voreaux, junto a Montsou) é o 'técnico', que diz nada decidir, também 'recebe ordens'. Enquanto Deneulin tenta 'emocionar' os empregados com a sombria ameaça de 'falência', outros patrões empregam a tática da 'cooptação': atrair o líder grevista, transformar o revoltado num 'pelego', na figura premonitória do 'sindicalista', como é caso do mineiro Chaval, miserável igual aos outros, mas devido a uma rivalidade com Étienne (pois ambos amam a mesma mocinha, a Catherine), não hesita em manobrar os mineiros segundo os desejos dos patrões.

Mas o ápice do romance é quando a greve se espalha na região mineradora. Os operários inflamados pela revolta se voltam contra os que insistem em trabalhar (os 'traidores') e percorrem as minas em atos de vandalismo, quando a violência da revolução escapa ao controle dos próprios revolucionários - subitamente Étienne percebe esta verdade. Pressionado pelo moderado Rasseneuer e pelo exaltado Suvarin, o líder Étienne precisa lutar contra as divisões dentro do próprio movimento operário. Principalmente contra os operários que seguem cegamente as ordens dos patrões (o exemplo é Quandieu, da mina Mirou), que fragilizam a luta em prol da coletividade.

A greve dura mais de 2 meses. As provisões dos mineiros se esgotam, o dinheiro no caixa coletivo acaba, a fome e a miséria se mostram vergonhosamente, os operários afundam no rancor. Enquanto Étienne luta para manter o movimento, luta consigo mesmo para garantir a liderança - acha que o povo não está preparado, que o povo é violento, é atrasado. Em conversas com Rasseneuer e Suvarin, o jovem Étienne vai percebendo que a edificação do socialismo só é possível com a educação dos empregados, no sentido de eles mesmo assumirem a produção, serem os patrões de si mesmos, os administradores do coletivo.

Étienne medita, ainda acreditando que "a resistência era possível, que o capital iria destruir a si próprio diante do heróico suicídio do trabalho", enquanto se esconde devido a forte repressão das forças militares, vendo nos soldados "os homens do povo lutando contra o povo", e em como atrair os soldados para a luta proletária, "Como seria fácil a revolução triunfar se o exército passasse para o lado do povo! Bastava que o operário e o camponês, nas casernas, se lembrassem da sua origem." Uma união de soldados, operários e camponeses que foi vitoriosa na Revolução Russa - com a força dos Sovietes - até ser sufocada pela contra-revolução burocrática estalinista.

Aí sim certamente, a Revolução devorou Maiakóvski, inevitavelmente. Escrever para as massas seria 'escrever igual às massas' ou procurar aumentar o nível cognitivo-simbólico do povo? Maiakóvski era difícil para o povo? Zola queria ser compreendido pelo povo? A Literatura enquanto espelho - o naturalismo enquanto 'retrato da crua realidade' - sempre sofreu com a incompreensão do próprio povo (enquanto os burgueses, os consumidores de livros, passam de um estilo a outro), uma vez que - como provam as novelas 'globais' das oito horas - o povo prefere a 'água com açúcar' da mesmice.

Sem educação dos cidadãos para a responsabilidade e para autonomia não haverá sequer o 'eleitor' das ditas democracias liberais, mas um mero 'aplicador de impressões digitais em cédulas eleitorais', um autômato guiado pela programação televisiva e pela propaganda oficial.

O interessante em Germinal é que Zola deixa um final onde ainda viceja, mesmo a brotar no rancor, uma pálida esperança: o povo está consciente da luta.


Jan/09



Por Leonardo de Magalhaens
Escritor, tradutor

http://leoleituraescrita.blogspot.com/

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sábado, 7 de agosto de 2010

Les Misérables / Os Miseráveis - de Victor Hugo - Parte 5




Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor Hugo (1802-1885)
As Obras Clássicas (ensaio 3)
O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna
Parte V – Jean Valjean

As grandes barricadas de junho de 1832 são ainda tão-somente o 'prelúdio' das barricadas de 1848. a resistência popular contra as 1forças governamentais'. O tumulto da massa contra as elites. É assim quando as barricadas estendem seus tentáculos sobre 'paz social' burguesa.

“Dezesseis anos se contam na educação subterrânea da revolta, e junho de 1848 sabia-se mais longa que junho de 1832. assim a barricada da rue de la Chanvrerie não era mais que um esboço e que um embrião, comparada às duas barricadas colossais que nós vamos descrever; mas, para a época, ela era medonha.” (“Seize ans comptent dans la souterraine éducation de lémeute, et juin 1848 em savait plus long que juin 1832. aussi la barricade de la rue de la Chanvrerie n'était-elle qu'une ébauche et qu'un embryon, comparée aux deux barricades colosses que nous venons d'esquisser; mais, pour l'époque, elle était redoutble.” II, p. 1253)

Eis o heroísmo – e auto-sacrifício – dos jovens republicanos: Enjolras, Combeferre, Courfeyrac, Bossute, Grantaire, Marius... Mas será necessário que todos os restantes 'se deixem matar'? Que ao menos se livrem os 'pais de família' ... Mas ali não há egoístas nem covardes – recusavam-se a 'abandonar seus postos'.

Enquanto decidem quem deve ficar e quem deve abandonar a resistência, surge um 'oficial' da Guarda Nacional – é o Sr. Fauchelevent, segundo reconhece o jovem Marius. Assim, Valjean consegue 'unir-se ' a barricada. Lá está o prisioneiro Javert, que reconhece o seu velho 'forçado' foragido, Jean Valjean. Os velhos antagonistas se encontram neste ápice dos livros IV e V: as barricadas.

O ataque então começa – por coincidência, pouco antes do retorno do menino Gavroche – quando os revolucionários enfrentam os canhões militares. (Marius pensa: q quem Gavroche entregou a carta endereçada a Cosette? Como se explica a presença do Sr. Fauchelevent?) Os insurgentes observam os jovens oficiais – que morrem para manter o poder dos reis e da nobreza. Ou seja, o poder joga jovens contra jovens, povo contra povo.

Enquanto Valjean ajuda os jovens republicanos lá na barricada, Cosette desperta lá na mansão. O sempre indiscreto Narrador leva o/a Leitor/a ao quarto da jovem. Como bons voyeurs, que todos somos, não hesitamos em acompanhá-lo. “Pode-se, à rigor, introduzir o leitor num quarto nupcial, não num aposento virginal. O verso o ousaria com esforço, a prosa não o deveria.” (“On peut à la rigueur introduire le lecteur dans une chambre nuptiale, non dans une chambre virginale. Les vers l'oserait à peine, la prose ne le doit pas.” X, p. 1288)

Há toda uma descrição detalhista e romântica do quarto, sem esquecer do 'estado de espírito', a sensibilidade, da senhorita. (O Narrador mostra a mulher voltada para os próprios sentimentos, sem nada saber do mundo exterior. Do mundo além da mansão somente os homens se ocupam – em revoltas, motins, guerras...)

Enquanto isso, para economizar munição, os insurgentes não respondem aos ataques da artilharia. Então o Narrador se entrega a uma digressão sobre as atuações da 'guarde nationale' – numa tentativa de mostrar o 'outro lado da colina': quem são aqueles dos batalhões, guarnições, companhias que metralham os insurgentes? As diferenças (e semelhanças!) entre militares e insurgentes, entre repressão e revolta.

A reconstrução textual, da 'batalha' entre exército e revoltas, mescla elementos de cenário com retratos de sentimentos e 'posições ideológicas'.

Na manhã do dia 06 de junho, ainda a resistência dos revolucionários, mas “a esperança dura pouco, o clarão se eclipsa rápido” (“L' espoir dura peu; la lueur s'éclipsa vite.” Livro I, XIII, p. 1299) Os insurgentes sofrem sem munição, sem víveres sem água. Morrem de tiro, de fome ou de sede. Enquanto uns se enraivecem, outros se resignam, um fica impassível: Enjolras. A barricada sofre os golpes de quatro canhões (!) instalados no perímetro.

Quando as munições são escassas, um vulto é percebido fora da barricada – a catar cartuchos dos guardas mortos! É o pequeno Gavroche que se arrisca! Será este o grand finale reservado ao moleque de rua ? O Narrador resolve que a vida de penúria merece ser redimida por uma morte heróica. Entre dramático e charmoso, o menino é baleado.

Presente em toda parte, o Narrador mostra os meninos de rua (“enfants abandonnés”) que se abrigavam na morada de Gavroche, lá no 'Elefante' da praça da Bastilha.

É Marius quem carrega o corpo de Gavroche. Marius, enquanto isso, é ferido. Na pausa, os feridos são medicados, os fuzis recarregados. O Narrador prolonga a narrativa em digressões, descrições, deslocamentos, flashbacks, explicações – enquanto a narrativa 'moderna' se concentra em si-mesma: auto-referente e auto-explicativa. São os editores – e os tradutores – aqueles obrigados a encherem os textos de notas explicativas...

“Há o apocalipse na guerra civil, todas as brumas do desconhecido se mesclam a esses brilhos ferozes, as revoluções são esfinges, e qualquer um que tenha atravessado uma barricada crê ter atravessado um sonho.” (“Il y a de l'apocalypse dans la guerre civile, toutes les brumes de l'inconnu se mèlent à ces flamboiements farouches, les révolutions sont sphinx, et quiconque a traversé une barricade croit avoir traversé un songe.” XVIII, p. 1310)

Registram-se os últimos momentos da barricada da rue de la Chanvrerie. O impassível Enjolras distribui as 'últimas ordens de combate'. Mas impassível que Enjolras só mesmo o inspector Javert. Que sabe ser 'condenado à morte' – e entregue à vigilância de ... Valjean! Javert limita-se a um “É justo.” O agente imagina que Valjean se 'deliciará' com a vingança – mas o que o ex-forçado faz? - Liberta o policial. E revela o próprio endereço! Aos insurgentes, Valjean simula ter eliminado o espião. Segue-se a agonia da barricada.

Em nome do Progresso, a História segue. Os governos caem. Os jovens republicanos morrem. O que é, aliás, o Progresso? O suceder de gerações? O despertar dos povos? A vontade de viver – mesmo que não tenha sentido? “O que é então o progresso? Nós acabamos de dizer. A vida permanente dos povos. Ou acontece que às vezes a vida momentânea dos indivíduos faça resistência à vida eternal da espécie humana.” (“Qu'est-ce donc que le Progrès? Nous venons de le dire. La vie permanente des peuples. / Or, il arive quelquefois que la vie momentanée des individus fait résistance à la vie éternelle du genre humaine” XX, p. 1320)

O ideal seria a 'solução pacífica' – mas o parto do progresso é doloroso – por mais que tenha 'boas intenções'. Em longa digressão, mostra-se o protagonismo francês (ou pós-iluminista) no mundo moderno. (1)

Não falta epopeia na descrição épica – até os “muros de Troia” (da 'Ilíada' de Homero) são evocados (exagero tipicamente romântico que perdoamos em Goethe e Byron, e vamos perdoar em Victor Hugo)

Em suma, os heróis tombam no campo de batalha, e Marius é carregado no instante derradeiro. Prisioneiro de quem? Do sempre heróico Valjean – que desce aos esgotos.

Livro II – os esgotos parisienses

A fuga de Valjean, para as entranhas do esgoto, leva o Narrador a uma longa digressão, a um estudo sociológico – e escatológico – sobre os esgotos da capital francesa. Aqui também algo de irônico e até cínico.

Enquanto “observador social” o escritor declara que a “história passa pelo esgoto” (“l'histoire passe par l'égout”) ou que “a história dos homens se reflete na história dos sanitários” (“l'histoire des hommes se reflète dans l'histoire des cloaques”). Assim, este “observador social” - um proto-sociólogo – vem se emparelhar com um Balzac a documentar em caráter literário – Commédie Humaine – a França do século 19.

O esgoto: digressões escatológicas sobre tipos de estrumes e a produção agrícola! (A lembrar certos trechos sátiros do clássico de Swift, “Viagens de Gulliver”.) Sob a bela e luminosa Paris, uma outra Paris, uma Paris dos esgotos...

O esgoto enquanto abrigo para marginais e revoltosos. E lembramos de uma famosa vítima dos esgotos de Paris: o líder revolucionário Marat (Jean-Paul Marat, 1743-1793), que sofria de doença de pele, devido a constantemente se esconder nos esgotos quando fugia dos soldados monarquistas. Marat vivia dentro de uma banheira – onde, aliás, foi assassinado por uma jovem, Charlotte Corday, adversária política.

Uma das características do Narrador do Autor Victor Hugo, em Os Miseráveis, é o 'enciclopedismo', a obsessão por explicar tudo, contextualizar a Narrativa. Assim, se há uma cena num convento (onde Valjean se refugia com a menina Cosette), há todo um capítulo (ou livro) a esclarecer a história do monastério e a vida monástica. Aqui, no ápice da 'batalha' das barricadas, Valjean se refugia nos esgotos, ao salvar o jovem Marius, ferido em combate. Então há todo um livro a resgatar a história do esgoto de Paris. As origens, a extensão, as ramificações, o labirinto de dejetos sob a metrópole francesa. Só depois voltará a narrativa propriamente dita.

O estilo 'enciclopédico' é usado pelos lusitanos Alexandre Herculano e Almeida Garrett, além do norte-americano Edgar A Poe e do francês Jules Verne. (Outro recurso é utilizar o diálogo, onde as personagens, ao conversarem, 'contextualizam' os fatos narrados – sem uso constante da voz narrativa. Tal método está presente em obra de Dostoiévski, Hemingway e Simone de Beauvoir, por exemplo. Já mesclado ao diálogo, temos os exemplos em obras de Jean-Paul Sartre, Conrad e Umberto Eco, onde o enciclopedismo é 'diluído'.

Sob a vida de 'progresso', há o despejo de dejetos. Há uma “maravilhosa formação histórica chamada Paris” e logo abaixo um labirinto de tuneis, catacumbas, canalizações dando escoamento aos restos fisiológicos de burgueses e miseráveis.

É nesse labirinto – Livro III – que se encontra Valjean. Tenta se localizar, encontrar uma direção, uma saída. A carregar o ferido Marius – que nem geme mais – em passos incertos, a sentir-se cego, assim o herói prossegue. A tropeçar, a afundar em lama, o herói enfrenta o labirinto fétido, sob as ruas em batalha, tal um Ulisses numa odisseia no Mundo dos Mortos, os Infernos. (Para entender estes capítulos é necessário, no mínimo, um mapa da Paris da primeira metade do século 19...) Com uma noção minima de direção, e muito 'sangue-frio', Valjean enfrenta os desafios no mundo das trevas. “As sombras que o envolviam entravam em seu espírito. Ele marchava num enigma.” (“L'ombre qui l'enveloppait entrait dans son esprit. Il marchait dans une énigme.” I, p. 1368) Como escapar dessa fossa tentacular, antes de Marius sangrar até a morte?

Até nos esgotos, os policiais (exploradores de esgotos, com armas e lanternas) a procura de subversivos. Valjean percebe um brilho de lanterna e, prontamente, se oculta no escuro, enquanto a patrulha se desvia para outra ala do labirinto. Valjean, num moneto de pausa e descanso, revira os bolsos de Marius, e encontra o bilhete com o nome do jovem, além do nome do avô e o endereço. Com a claridade a descer de alguma sarjeta, ele pode ler. Depois continua a marcha no labirinto.

A genialidade do Autor se derrama na prolixidade do Narrador ao descrever as dificuldades em cena tão dantesca. É mesmo de causar claustrofobia e desespero. O horror de morrer meio a imundície – enterrado vivo no sepulcro profundo da cloaca parisiense.

Afundado na água, na lama, no fedor, Valjean prossegue, preocupado com a fraqueza e palidez de Marius. Ao final do túnel, uma grade. Hermeticamente fechada. Será o fim? Não há saída... Os penamentos de Valjean não se ligam ao momento - “não pensa em si-mesmo, nem em Marius. Ele pensava em Cosette.” (VII)

Mas ainda não é fim. Temos ainda 150 páginas pela frente, logo um 'deus ex-machina' deve surgir. Mas não será um deus ou anjo ou super-herói a salvar o herói, mas ninguém menos que um bandido, aqui, o velhaco Thénardier! O bandido pensa que o grandalhão assaltou e matou o jovem, e quer metade da 'grana' para então abrir a grade. “Esta providência aparecia horrível, e o bom anjo sai da terra na forma de Thénardier.” (VIII)

O bandido loquaz negocia com o 'assassino' emudecido. Thénardier revista os bolsos a procura de moedas e leva tudo (inclusive um pedaço da roupa de Marius, sem que Valjean perceba) A grade do esgoto é aberta e depois fechada. Sem rangidos – os bandidos cuidam bem dos portais para o 'subterrâneo'...

Ao sair do 'submundo', Valjean respira o ar benéfico e ajuda o desmaiado Marius. Mas outro vulto se aproxima. Valjean o percebe. Novamente entra em cena o inspector Javert, que seguia os bandidos. Javert não reconhece o enlameado ex-forçado, e ex-prefeito provinciano. Mas Valjean não hesita em 'se apresentar', e se entregar ao policial. Apenas, deseja antes, entregar o jovem feridos aos cuidados dos familiares. É assim que o jovem 'pródigo' volta ao lar – um corpo ensanguentado, enlameado, agonizante, sobrevivente das barricadas.

Livros III e IV

Depois de deixarem o jovem desmaiado lá na mansão do avô, o inspector Javert e o protagonista Valjean, seguem para a casa da rue l'Homme Armé. Javert diz esperar à entrada. Mas quando Valjean sobe e olha à janela, ninguém mais está à porta.

Enquanto o avô transtornado observa o que julga ser o cadáver do neto, que “se fez matar nas barricadas”, o inspector Javert vive o profundo dilema entre o dever , a rigidez da lei e a gratidão para com Valjean, a quem o inspector não despreza. Na verdade, Javert reconhece os méritos de Valjean!

A luta entre o dever e a gratidão – após trocar favores com um 'criminoso'.

“Entregar Jean Valjean, era mal; deixar Jean Valjean livre, era mal. No primeiro caso, o homem da lei caía abaixo do homem do crime; no segundo, um forçado subia acima da lei e a calcava aos pés. Nos dois casos, desonra para ele Javert.” (“Livrer Jean Valjean, c'était mal; laisser Jean Valjean libre, c'était mal. Dans le premier cas, l'homme de l'autorité tombait plus bas que l'homme du bagne; dans le second, un forçat montait plus haut que la loi et mettait le pied dessus. Dans les deux cas, déshonneur pour lui Javert.” IV, p. 1415)

Em tal dilema, o inspector perde sua fleuma, perde a si-mesmo, não é mais 'irreprovável', agora que falhou, seu último gesto é atirar-se ao rio Sena.

A narrativa do Livro IV com belas passagens de 'sondagem psicológica', com o dilema de Javert, a reconhecer que ele falhou, e não poderá viver com o próprio fracasso, tem algo de 'existencialismo', o melhor estilo de um Dostoiévski, de um Sartre, de um Camus. O Narrador usa a narrativa densa para 'dissecar' as profundezas psíquicas da personagem – tal percebemos na inglesa Virginia Woolf e na brasileira Clarice Lispector.

Livro V

Marius entre a vida e a morte. Os cuidados do avô junto ao leito do neto. Quando o neto se restabelece, é o avô que se extasia. Os delírios de Marius têm apenas um foco: Cosette. O primeiro desejo do jovem é casar-se. Agora, até o velho aceita.

O avô menciona as visitas do 'senhor idoso' que vem em busca de notícia, a mando da jovem Cosette. O casamento em comum acordo: eis a reconciliação. Há o reencontro de Marius e Cosette (ao estilo romântico) e conhecemos o valor do dinheiro nos 'casamentos burgueses'. Diz Valjean (ou Sr. Fauchelevent): “a Srta Euphrasie Fauchevelent tem 600 mil francos” Melhor argumento que esse não há para o velho Gillenormand!

É que Valjean foi ao bosque junto a Montfermeil buscar o 'tesouro' enterrado. Pois o dinheiro fala: a fortuna da Srta acaba por 'conquistar' a simpatia da família tradicional burguesa, os Gillernormands. O Narrador reforça constantemente – o que cria um 'efeito irônico' – os valores monetários envolvidos no 'matrimônio'. O elemento financeiro se mescla ao elemento afetivo – o idílio amoroso tem o seu lado mesquinho, mercenário. “um dos interessados tinha os olhos vedados por amor, os outros pelos 600 mil francos”. (2)

Cosette é declarada 'órfã de pai e mãe', enquanto o Sr. Fauchelevent é seu tutor (não é o seu 'pai' como ela imaginava...)

Pois bem , eis o final feliz. Cosette rica e casada com um jovem burguês, agora advogado. Pois se engana o leitor, a leitora. Falta algo: a identidade de Valjean. O passado golpeia de volta. Marius não tem certeza se o “Sr. Fauchelevent” foi o seu 'salvador' na fuga da barricada da rue de la Chanvrerie. Nem Valjean esclarece o episódio...

Assim, Marius, o advogado, que sobreviveu à pobreza, à miséria, ele desconhece a 'verdadeira cena' do 'salvamento' de seu pai Pontmercy, quando Thénardier foi roubá-lo no campo de batalha em Waterloo. Marius quer, portanto, encontrar dois homens: o tal Thénardier e o desconhecido que o carregou das barricadas até a mansão do avô. Marius tenta entender como foi levadas das barricadas até a beira do rio Sena – pelo esgoto?! - mas por quem? Seria um outro insurgente? Um agente policial? Um bandido? O homem não voltou em busca de recompensa... terá morrido? Ou preso?

Livro VI a VIII

Estamos em fevereiro de 1833, momento do casamento de Marius e Cosette. Na ausência do Sr. Fauchelevent (ferido na mão direita, num pequeno acidente), o Sr. Gillenormand assume como 'subrogé tuteur' de Cosette.

Valjean, então, sofre uma 'sondagem psíquica' por parte do narrador – em muito semelhante àquela de Javert. Diante de um dilema, o ex-forçado se vê obrigado a revelar-se ao jovem casal. Diante de Marius, o abatido Valjean diz, “Senhor, tenho algo a dizer-te. Sou um antigo forçado”. E revela não ter ferimento algum na mão direita (tudo não passou de um truque para não precisar ir ao casamento e precisar assinar documentos...)

“Eis o que quero dizer-te, que eu já estive nas galés”. E revela-se 'foragido da justiça'. É assustador para Marius: ele, burguês, casado com a filha de um bandido! Mas o Sr. Fauchelevent, ou melhor, Valjean, jura não ser parente de Cosette. E explica o que nós, os leitores, sabemos. A fortuna de Cosette é a devolução de um empréstimo, diz Valjean. Sempre guiado pela honestidade.

Quando tudo parecia resolvido: um drama nas 100 páginas finais! Nada de conciliação e vida em família! Uma incômoda verdade do passado é aqui exumada. Valjean desabafa, “não estou em família, não tenho família”, mas é acima de tudo um “homem honesto”, não pode sustentar uma mentira, uma farsa.

Para a justiça, Valjean está morto, e é assim que ele quer e deve continuar. Pois bem, Marius permite as visitas de Valjean a Sra Pontmercy, mas o próprio visitante se percebe não exatamente 'bem-vindo'. E Cosette não deve conhecer o 'segredo'... É a sinceridade de Valjean que atrai a confiança de Marius, ou Sr. Pontmercy. Mas, Marius acha que Valjean foi a barricada apenas para ter a oportunidade de vingar-se de Javert.

Livro IX

Investigações de Marius. Valjrean afasta-se de Cosette. Surge um carta de um tal Thénard, sobre 'segredos' de família. A visita do tal Thénard (que só pode ser mesmo o velhaco Thénardier). Tudo o que o trapaceiro diz, Marius já sabe. É o momento de desmascarar o velhaco. Mas é este que 'sabe mais', “Valjean não matou o Sr. Madeleine – era Madeleine. E não matou o inspector Javert – o policial se matou.”, diz o despeitado Thénardier. E revela que encontrou um homem a carregar um cadáver na saída do esgoto – mas, é claro, o 'cadáver' era o desmaiado Marius! Este percebe que está diante do 'elo' final para esclarecer tudo!

Pronto, eis a imagem do 'salvador': Valjean foi até a barricada, livrou Javert e carregou Marius pelos esgotos!

E Thénardier é insultado e simplesmente expulso da narrativa. Agora que outro vilão foi expulso – pois o outro (Javert) se expulsou – os elementos desarmônicos são vencidos, e a 'harmonia' pode ser restaurada.

Mas o Narrador não é tão otimista. Quando Marius e Cosette correm para visitar Valjean – que agora sabem ser o salvador do jovem 'barão' – encontram o velho no leito de morte.

Aqui também se encerra este ensaio – que não pretende tecer comentários sobre as emoções finais deste colossal Romance francês denso e enciclopédico chamado “Os Miseráveis”, obra hercúlea do Autor Victor Hugo, ao ousar registrar sua época para a posteridade. (3)

Jul/10
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por Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/
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Notas

(1)“O romantismo político manifesta-se muitas vezes com tendências sociais contraditórias, sendo, portanto, impossível determinar-se qual a ligação direta do socialismo da época com todas as direções que o Romantismo tomou em termos políticos. Podemos até diferenciar entre o romantismo político alemão, nitidamente conservador, e o italiano, em sua maioria liberal, o inglês apresentando as duas tendências em vários de seus representantes, como poderíamos exemplificar em Byron e Coleridge.

Na França, várias foram as fases do romantismo político, não se encontrando nenhuma linha uniforme que permita fazer uma caracterização precisa. Se, de um lado, o saudosismo sentimental para com a antiga França impera nos primeiros românticos, já em Chateaubriand e Lamartine se visualiza uma concepção inteiramente monárquica. Na Revolução de 1830 contra a monarquia dos Bourbons, os revolucionários parecem ao mesmo tempo querer derrubar o romantismo difundido nos meios intelectuais franceses. Mais tarde, com Victor Hugo, que se identifica com as ideias de progresso, fraternidade e democracia do povo, deparemos com uma nova tendência do romantismo político.” (FALBEL, Nachman, in: GUINSBURG, J. “O Romantismo”, SP, Ed. Perspectiva, 2002. 4a ed. p. 36)


(2)Exemplos semelhantes temos no romance “Eugene Grandet”, de Balzac, ou em “Orgulho e Preconceito” (Pride and Prejudice) da inglesa Jane Austen, ou, no Brasil, “Senhora”, de José de Alencar.

(3)Interessante a apreciação do crítico norte-americano Harold Bloom, em seu Gênios (trad. J. R. O'Shea, 2003), na p. 471, “Victor Hugo talvez tenha sido o último dos autores universais, na linha de Cervantes, Shakespeare e Dickens. Não encontro similar no século XX, e duvido que surja algum no século XXI. Les Misérables, para nós um musical, foi lido por toda pessoa alfabetizada, quando lançado na França (1862). aos 71 anos, pergunto-me o que não será transformado em musical. Ainda veremos um Hamlet: o Musical , ou ainda melhor, Rei Lear: um Espetáculo Musical? Na verdade, Victor Hugo adoraria o musical feito a partir da sua obra de vez que pretendia tocar o número mais elevado possível de seres humanos (especialmente as mulheres).” e na p. 479, “O gênio de Victor Hugo, conforme Les Misérables demonstra tão bem, é estranhamente, tão gentil quanto tempestuoso. Tal afirmação parece improvável, mas Victor Hugo foi sempre improvável.”
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