quinta-feira, 27 de junho de 2013

sobre A Náusea (p 2) - de J-P Sartre




Sobre “A Náusea” (La Nausée, 1938)
do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980)


Quando a Literatura explicita uma existência nauseante

p2

Escrever sobre a vida de outra pessoa é uma forma autêntica de dar sentido a própria vida? Em que medida a vida do Sr. Rollebon justifica a atenção de um biógrafo? Uma vida vazia se legitima pela narração de uma vida aventurosa e misteriosa? Assim como um fã se alimenta das vitórias e conquistas de seus ídolos? Eu nada sou – mas sou fã de um rock star e assim tenho em quem me espelhar …

Mas ao termos acesso ao diário de Roquetin temos não apenas a vida do enigmático crápula Rollebon, mas também a vida sem rumos do biógrafo, que escreve a própria biografia em fragmentos – processo que também identificamos em “O Livro do Desassossego” de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa (1889-1935), com centenas de trechos desordenados, repetitivos, sobrepostos, descritivos, que desafiam a leitura – a ponto de deixar o biografado Rollebon em segundo plano. Ambas, a biografia e a autobiografia, se entrelaçam e se complementam – uma vida misteriosa e aventureira junto a uma vida mesquinha, cotidiana, gratuita.

Roquetin vive de lembranças e de uma saudade – sua amiga-amante Anny. De súbito chega em suas mãos uma carta da memorável Anny, e já basta para fender a vida sem sentido do biógrafo-escritor-de-diário, que espera, que tem uma espera, a chegada da amiga. Sem cortesias e formalidades, ela avisa a chegada. Ela se torna um destino – para quem nada tinha. Uma expectativa surge em seu horizonte – a chegada de Anny. Antes da chegada de Anny ele é um homem vazio. É como se Anny fosse um Godot (da peça de Samuel Beckett, 'Esperando Godot') que se espera, como legitimação do estar-aqui. Roquetin vive mais alguns dias – esperando Anny. “Quinta-feira – Escritas quatro páginas. A seguir, um longo momento de bem-estar. Não refletir sobre o valor da história. Se corre o risco de se desgostar. Não esquecer que o Sr. de Rollebon representa, neste momento, a única justificativa de minha existência. / De hoje a oito dias eu verei Anny.” (“Jeudi – Écrit quatre pages. Ensuite, un long moment de bonheur. Ne pas trop réfléchir sur la valeur de l'histoire. On court le risque de s'en dégoúter. Ne pas oublier que M. de Rollebon représente, à l'heure qu'il est, seule justification de mon existence. / D'aujourd'hui en huit, je vais voir Anny.” p. 104)


Sem rumos, vivendo gratuito, descolado, as coisas perdem a fixidez, se esvanecem, os valores pessoais e sociais se perdem em relativismos morais, em perspectivas metafísicas, em alternados pontos de vista, em que deve o protagonista se apegar?

Bem, hoje, elas, as coisas, não se ficam mais: parecia que a própria existência delas estava em questão, que tinham uma grande dificuldade de passarem de um instante a outro. Eu segurava fortemente nas mãos o livro que eu lia: mas as sensações as mais violentas estavam entorpecidas. Nada tinha um ar verdadeiro: eu me sentia rodeado por um cenário de cartolina que poderia ser bruscamente deslocado. O mundo esperava, segurando o fôlego, se encolhia – a esperar sua crise, sua Náusea, como o Sr. Achille noutro dia. (“Eh bien, aujourd'hui, ils ne fixaient plus rien du tout: il semblait que leur existence même était mise en question, qu'ils avaient la plus grande peine à passer d'un instant à l'autre. Je serrai fortement dans mes mains le volume que je lisais: mais les sensations les plus violentes étaient émoussées. Rien n'avait l'air vrai; je me sentais entouré d'un décor de carton qui pouvait être brusquement déplanté. Le monde attendait, en retenant son souffle, en se faisant petit – il attendait sa crise, sa Nausée, comme M. Achille l'autre jour.” p. 112)


Em sua mesa de restaurante, ou taverna, no seio da vida pacta da cidadezinha, Roquetin observa os cidadãos, aqueles que são autoridades, aqueles que andam deslocados, cada um a cumprir certos papéis sociais, dados pela comunidade, uns se aderem à ordem instituída, outros desviam dos padrões, que apenas reforçam a conformidade. Um sujeito solitário numa das mesas atrai sua atenção, como desviante em relação aos que se ostentam enquanto autoridades, que mandam na vida e que merecem existir. Mas o que liga o narrador ao outro sujeito solitário? Somente o fato de ambos não serem 'autoridades'? “Não é a simpatia o que há entre nós: somos parecidos, eis aí. É sozinho, igual a mim, porém mais afundado na solidão do que eu. Deve esperar sua Náusea ou qualquer outra coisa do gênero.” (“Ce n'est pas de la sympathie qu'il y a entre nous: nous sommes pareils, voilà. Il est seul comme moi, mais plus enfoncé que moi dans la solitude. Il doit attendre sa Nausée ou quelque chose de ce genre.” p. 97 )


Do outro lado, tem-se as autoridades, os especialistas pretendem dar um sentido para a vida coletiva, que recebem homenagens, pois concedem diretrizes, com suas vozes ativas, para guiar a 'vida de gado' das massas populares. O fato de ostentarem um 'sagrada sabedoria', um saber não acessível aos demais, é o que provoca a 'aura' de seres especiais, donos da experiência, da qual os demais dependem. “O doutor tem a experiência. É um profissional da experiência: os médicos, os padres, os magistrados e os oficiais conhecem o homem como se eles o tivesse feito.” (“le docteur a de l'expérience. C'est un professionnel de l'expérience: les médecins, les prêtres, les magistrats et les officiers connaissent l'homme comme s'ils l'avaient fait.” p. 100 )

São eles os profissionais da experiência (“professionnels de l'expérience”) dizem (proclamam!) “acreditem em mim, eu vos falo por experiência, tudo o que eu sei, eu tirei da vida” (“croyez-moi, je vous parle d'expérience, tout ce que je sais, je le tiens de la vie.” pp. 101-102 ) Os experts, os eruditos, os líderes que se acham 'dignos de existir', enquanto os outros, os submissos, a ralé, a plebe, devem obedecer ou serem excluídos. Mas Roquetin não vê qualquer 'sentido' ou 'dignidade do existir', pois há uma gratuidade, existe-se e pronto.

Roquetin vai ao museu, em perambulações, onde pode contemplar as faces e as poses das autoridades locais, os patriarcas, os líderes, as figuras da tradição. Ele logo se sente deslocado, sob tais olhares rígidos, austeros, idealizados. Temos ainda uma perspectiva dos seres solitários diante dos seres sábios. Assim o mesmo contraponto entre o sujeito solitário e a figura do médico respeitado, figuras que são dois lados da mesma moeda. Um não existiria sem o outro – o desvio precisa do padrão tanto como o conformista precisa do subversivo – e quem considera especial é por pura arrogância, por se julgar no 'direito' de existir (de preferência acima dos demais). Mas acontece que estamos jogados no existir – sem aviso, sem ensaio. E os arrogantes se enchem de 'direitos de existir', tal qual fazem as autoridades, mas para o homem deslocado não sentido, muito menos direito, “Eu não tinha o direito de existir. Apareci por acaso, existia tal uma pedra, uma planta, um micróbio. Minha vida crescia com sorte e em todos os sentidos.” (“Je n'avais pas le droit d'existir. J'étais apparu par hasard, j'existais comme une pierre, une plante, un microbe. Ma vie poussait au petit bonheur et dans tous les sens.” p. 122)


Com a expectativa da chegada de Anny, Roquetin se distrai na escrita da biografia do Sr. de Rollebon, até ao ponto de desistir da escrita. Temos apenas o seu diário, prolixo, fragmentado, obsessivo, onde registra a incapacidade de fazer a biografia de alguém, quem quer que seja, Segunda-feira – Já não escrevo mais o livro sobre Rollebon; acabou, não posso mais escrever. O que é que vou fazer de minha vida? / Então como eu que não tive força para reter meu próprio passado, posso esperar que salvaria o de outro? (“Lundi – Je n'écris plus mon livre sur Rollebon; c'est fini, je ne peux plus l'écrire. Qu'est-ce que je vais faire de ma vie? / Comment donc, moi qui n'ai pas eu la force de retenir mon propre passé, puis-je espérer que je sauverai celui d'un autre? pp. 135-136)


pois

O Sr. de Rollebon era meu sócio: ele precisava de mim para ser e eu precisava dele para não sentir meu ser. Quanto a mim, eu fornecia a matéria bruta, esta matéria que eu tinha para revender, com a qual não sabia o que fazer: a existência, a minha existência. Ele, de sua parte, estava a representar. Ele ficava diante de mim, e se apoderava de minha vida para me representar a sua própria. […] Eu não era mais que um meio de fazê-lo viver, ele era minha razão de viver, ele tinha me livrado de mim mesmo. O que é que farei agora?(“M. de Rollebon était mon associé: il avait besoin de moi pour être et j'avais besoin de lui pour ne pas sentir mon être. Moi, je fournissais la matière brute, cette matière dont j'avais à revendre, dont je ne savais que faire: l'existence, mon existence. Lui, sa partie, c'était de représenter. Il se tenait en face de moi, et s'était emparé de ma vie pour me représenter la sienne. […] Je n'étais qu'un moyen de le faire vivre, il était ma raison d'être, il m'avait délivré de moi. Qu'est-ce que je vais faire à present?” p. 140)


As coisas, as imagens, as palavras não têm mais sentido – o existir é suspenso sobre o vazio, sobre o Nada, sem consistência e mesmo assim é tudo o que se tem: viver, respirar, sofrer, procriar. Estar-aí para assumir-se e responsabilizar-se, enquanto ser consciente de existir. Além da consciência o que há? Que transcendência nos espera? Alguma Imortalidade ou Transmigração das almas? “é tanto esforço se imaginar o nada. Agora eu sei: as coisas são inteiramente o que parecem – e detrás delas … nada há.” (“tant on a de peine à imaginer le néant. Maintenant, je savais: les choses sont tout entières ce qu'elles paraissent – et derrière elles... il n'y a rien.” p. 137)


Sendo assim o que sobra do passado? Apenas memórias, feitas de imagens e sombras, e o Nada. Aquele eu de ontem já era, não voltará, é irrecuperável. Ele/ela somente existe enquanto recordação – é fluido e inacessível. O eu de outrora pode ser uma ficção – ou melhor, uma ficcionalização do eu que atuou factualmente – andou, amou, venceu, perdeu, odiou, esqueceu. (Assim descobriram os memoralistas Marcel Proust e Pedro Nava que dedicaram suas maturidades literárias para o resgate do 'tempo perdido' ou da 'geografia sentimental'.)


A condição de ser coisas entre coisas – e coisa com consciência. Fenômeno de saber-se no mundo, toda plena, a afastar o Nada. Tudo que há na consciência a preenche intencionalmente. A consciência não tem conteúdo, ela é o conteúdo. “A coisa, que aguardava, estava alerta, ela veio sobre mim, se infiltrou em mim, estou pleno dela. - Não é nada: a Coisa sou eu. A existência, liberada, despregada, reflui sobre mim. Eu existo.” (“La chose, qui attendait, s'est alertée, elle a fondu sur moi, elle se coule en moi, j'en suis plein. - Ce n'est rien: la Chose, c'est moi. L'existence, libérée, dégagée, reflue sur moi. J'existe.” p. 141)

Mas o pensamento sou eu que o continuo, que o desenrolo. Existo. Penso que existo.” (“Mais la pensée, c'est moi qui la continue, qui la déroule. J'existe. Je pense que j'existe.”e “Meu pensamento sou eu: eis aí porque eu não posso me deter. Eu existo porque eu penso... e não posso me impedir de pensar. Mesmo neste momento – é apavorante – se eu existo é porque tenho horror de existir. Sou eu, sou eu que me tiro do nada ao qual aspiro: o ódio, o desgosto de existir, são também maneiras de me fazer existir, de me forçar dentro da existência. Os pensamentos nascem por detrás de mim como uma vertigem, eu sinto que nascem atrás de minha cabeça... se eu cedo, eles vem para a frente, entre os meus olhos – e eu cedo sempre, o pensamento engrossa, engorda e eis aí, é imenso, que me preenche todo e renova minha existência.” (“Ma pensée, c'est moi : voilà pourquoi je ne peux pas m'arrêter. J'existe par ce que je pense... et je ne peux pas m'empêcher de penser. En ce moment même – c'est affreux – si j'existe, c'est parce que j'ai horreur d'existir. C'est moi, c'est moi qui me tire du néant auquel j'aspire: la haine, le dégoût d'existir, ce sont autant de maniéres de me faire exister, de m'enforcer dans l'existence. Les pensées naissent par-derrière moi comme un vertige, je les sens naître derrière ma tête … si je cède, elles vont venir là devant, entre mes yeux – et je cède toujours, la pensée grossit, grossit et la voilà, l'immense, qui me remplit tout entier et renouvelle mon existence.” pp. 142-43)


Nas sombras de Descartes, eis onde Roquetin perambula, “Eu sou, existo, eu penso, logo sou; eu sou porque eu penso, porque será que eu penso? Não quero mais pensar, eu sou porque eu penso que eu não quero ser, eu penso que eu ...” (“Je suis, j'existe, je pense donc je suis; je suis parce que je pense, pourquoi est-ce que je pense? Je ne veux plus penser, je suis parce que je pense que je ne veux pas être, je pense que je ...” p. 144) e mais: “a existência prende meus pensamentos por detrás e docemente os expande por detrás: me agarram por detrás, por detrás me forçam a pensar, então a ser qualquer coisa, detrás de mim que respira em ligeiras bolhas de existência, é bolha de bruma de desejo, é pálido no espelho como um morto, Rollebon é morto, Antoine Roquetin não está morto, me desfaleço:” (“l'existence prend mes pensées par-derrière et doucement les épanouit par-derrière: on me prend par-derrière, on me force par-derrière de penser, donc d'être quelque chose, derrière moi qui souffle en légères bulles d'existence, il est bulle de brume de désir, il est pâle dans la glace comme un mort, Rollebon est mort, Antoine Roquetin n'est pas mort, m'évanouir : [...]” p. 146)


Dentro de sua náusea existencial, Roquetin só vê uma luz no fim do túnel: a chegada de Anny. Ele passa a medir o tempo em base de tal expectativa. Verei Anny daqui a cinco dias, ou reverei Anny dentro de quatro dias, assim como uma baliza para seguir vivendo, a evitar o deslize para a não-existência (considerando que a morte corporal é o fim de tudo, ao contrário do que esperam os espiritualistas...) Enquanto isso, ele perambula, frequenta a biblioteca por inércia, conversa superficialmente com o Autodidata, até chegam a almoçar juntos, mas ao contrário de construírem uma amizade, acabam por expor ainda mais suas diferenças e contradições...

Às vezes, Roquetin passa da amargura ao sarcasmo, diz que se preocupar com as pessoas seria uma forma de não ficar entediado, não uma forma de compaixão, ou de aproximação afetiva. “Sou todo ouvidos: não desejo mais do que me apiedar dos problemas alheios, eis uma mudança. Não tenho problemas, tenho dinheiro como um homem de rendas, sem patrão, nem mulheres, nem filhos; eu existo, eis tudo. E é tão vago, tão metafísico, este tédio, que tenho vergonha.” (“Je suis tout oreilles: je ne demande qu'à m'apitoyer sur les ennuis des autres, cela me changera. Je n'ai pas d'ennuis, j'ai de l'argent comme un rentier, pas de chef, pas de femmes ni d'enfants; j'existe, c'est tout. Et c'est si vague, si métaphysique, cet ennui-là, que j'en ai honte.” pp. 150-151)

A conversa nunca é espontânea, é cheia de intencionalidade, de má-fé, de jogos de palavras, onde o interesse é fazer o outro se interessar pelo que nos interessa. Não apenas um interesse financeiro, ou político, ou sexual, mas um interesse existencial, estético – fazer o outro se interessar pelo sentido que assumimos para a nossa existência. Observações singelas podem ter interpretações maliciosas, frases fora de contexto podem gerar ambiguidades, afirmações sem precisão podem causar mal-entendidos. De modo, que um simples diálogo pode se tornar sondagem, solicitação, interrogatório, confissão, justificação, sempre com intencionalidade discursiva.

Enquanto levam uma conversa cheia de lacunas e mal-entendidos, o ex-biógrafo e o leitor de biblioteca observam os demais comensais, e suas atitudes e gestos, a espera de suas ambições e temerosos do absurdo de existir.

Passeio os olhos pela sala. Eis uma farsa! Todas essas pessoas se sentam com ar sério; comem. Não, não comem: repõem forças para realizarem suas incumbências. Cada uma tem sua pequena obsessão pessoal que lhe impede de se aperceberem que existem; não há um que não se creia indispensável a alguém ou a alguma coisa. […] Tenho aparência de nada, mas sei que existo e que eles existem. E se eu conhecesse a arte de persuadir, iria me sentar junto ao simpático senhor de cabelos brancos e explicaria a ele o que é a existência. Morreria de rir, à ideia da cara que ele faria. O autodidata me olha com surpresa. Gostaria de me conter, mas não posso: choro de tanto rir.” (“Je parcours la salle des yeux. C'est une farce! Tous ces gens sont assis avec des airs sérieux; ils mangent. Non, ils ne mangent pas: ils réparent leurs forces pour mener à bien la tâche qui leur incombe. Ils ont chacun leur petit entêtement personnel qui les empèche de s'apercevoir qu'ils existent; il n'en est pas un qui ne se croie indispensable à quelqu'un ou à quelque chose. […] Je n'ai l'air de rien, mais je sais que j'existe et qu'ils existent. Et si je connaissais l'art de persuader, j'irais m'asseoir auprès du beau monsieur à cheveux blancs et je lui expliquerais ce que c'est que l'existence. A l'idée de la tête qu'il ferait, j'éclate de rire. L'Autodidacte me regarde avec surprise. Je voudrais bien m'arrêter, mais je ne peux pas: je ris aux larmes.” p. 158)


Não há razão para existir – primeiro existimos, depois inventamos um sentido qualquer para nos justificar enquanto existentes. Existimos para servir ao Deus todo-poderoso? Existimos para servir ao Estado? Existimos para procriar e constituir famílias? Existimos e é tão pesado e gratuito que inventamos uma leveza e razão de ser: existimos para algo fora de nós mesmos. Lá fora está a explicação: capricho divino ou exigências estatais, amores filiais ou desejos lascivos. Eis tudo. Mas será que vale a pena existir? Devemos nos orgulhar? Ou é bem pior não ter nascido? Ficar lá na não-existência...

Diante do ceticismo de Roquetin, surgem os argumentos do Autodidata, que é um humanista, que ainda acredita nos homens, de modo ingênuo, mas também homoerótico como um sacerdote que seduz pupilos (em cena que depois será explícita, como veremos...), com argumentos que soam livrescos, deslocados, idealistas. O autodidata tenta se refugir de sua solidão num coletivo idealista, numa ideologia. Enquanto isso, Roquetin sabe muito bem como pensam os humanistas, pois há um modo de pensar humanista, compartilhado pelo coletivo de humanistas, os vários tipos de humanista, que varia de acordo com a ideia do que seria a 'Humanidade'. Os homens são abstrações, são símbolos, não personalidades de carne e osso. No mais, os idealistas se detestam, detestam o vizinho ao lado, se irritam com as contradições, pois amam apenas uma ideia. “O que posso fazer? É culpa minha se em tudo o que ele diz eu reconheço, de passagem, a referência, a citação? Se eu vejo reaparecer, enquanto ele fala, todos os humanistas que conheci? Ai, e tenho conhecido tantos!” (“Que puis-je faire? Est-ce ma faute si, dans tout ce qu'il me dit, je reconnais au passage l'emprunt, la citation? Si je vois réapparaître, pendant qu'il parle, tous les humanistes que j'ai connus? Hélas, j'en ai tant connu!” p. 165)


O que poderia ser um diálogo de aproximação torna-se um farejar de inimigo, um nascer de mútua desconfiança – todo um mal-estar que nada tem de humanista. Afinal, as distâncias entre as pessoas é bem maior que as pontes que podem ser lançadas. Os líderes, em vão, tentam congregar as pessoas em categorias e ideologias, em nome da Nação, da comunidade, do progresso, mas é perda de tempo: cada um persegue interesses pessoais e mesquinhos. Adotam rótulos, e querem rotular os demais: um é comunista, o outro é nazista, um é misantropo, um outro é judeu, aquele ali é pederasta, aquela ali é feminista, ou seja, em mil rotulações estereotipadas que acabam por coisificarem uns aos outros.

O humanismo pode aceitar tudo: desde que seja humano. Pode o humanista se aliar a um misantropo? Um socialista pode ser amigo de um anti-social? Quanto a Roquetin, ele acha difícil tanto amar quanto odiar os homens. Tudo parece parte de uma farsa, uma comédia. Talvez por isso seja tudo tão trágico. Uma vida breve numa representação de papeis sociais – para uma tragicomédia sem ensaios, onde uns lucram e outros morrem miseráveis.


É impossível esgotar ('arrêter') o ser humano, é preciso admirar o Homem, é necessário suportar o sofrimento e a condição humana – eis algumas ideias e frases feitas do Humanismo, ao qual Roquetin reconhece como múltiplo e contraditório. Tudo porque as pessoas não suportam a solidão e inventam ideias gerais, crenças e ideologias que possam congregar, em igrejas, templos, clubes sociais, partidos políticos. Tudo isso nada significa para o cético Roquetin. Todas a situação falsa e inútil só consegue atrair a náusea, o desconforto existencial de estar-aí sem-sentido,

Com o olhar eu percorro a sala e um desgosto violento me invade. O que faço aqui? Por que me dispus a discutir sobre o humanismo? Por que estas pessoas estão aqui? Por que elas comem? É verdade que elas não sabem que existem. Tenho vontade de ir embora, de ir a qualquer lugar onde estivesse de verdade em meu lugar, onde me adequasse … Mas meu lugar não é lugar algum; sou demais. […] e de súbito aí está: a Náusea. / Uma bela crise: que me agita de alto a baixo. Há uma hora que a sentia chegar, só que não queria admitir. […] É então a Náusea: esta evidência cegante? Como quebrei a cabeça? Sobre o que escrevi! Agora eu sei: existo – o mundo existe – e eu sei que o mundo existe. Eis tudo. Mas a mim é igual. É estranho que a tudo a mim seja assim indiferente: isso me assusta. (“Je parcours la salle du regard, et un violent dégout m'envahit. Que fais-je ici? Qu'ai-je été me mêler de discourir sur l'humanisme? Pourquoi ces gens sont-ils là? Pourquoi mangent-ils? C'est vrai qu'ils ne savant pas, eux, qu'ils existent. J'ai envie de partir, de m'en aller quelque part où je serais vraiment à ma place, où je m'embolterais... Mais ma place n'est nulle part; je suis de trop. […] et tout d'un coup ça y est: la Nausée. / Une belle crise: ça me secoue du haut en bas. Il y a une heure que je la voyais venir, seulement, je ne voulais pas me l'avouer. […] C'est donc ça la Nausée: cette aveuglante évidence? Me suis-je creusè la tête! En ai-je écrit! Maintenant je sais: J'existe – le monde existe – et je sais que le monde existe. C'est tout. Mais ça m'est égal. C'est étrange que tout me soit aussi égal: ça m'effraie.” pp. 172-73)


Sempre deslocado, Roquetin deixa o restaurante, sentindo a hostilidade dos agregados, afinal, ele enganou a todos: não é um ser gregário, é um nauseado. As palavras não completam o mundo, nem correspondem a ele – daí a desconfiança que despertam. “As coisas se libertam de seus nomes. Estão aí, grotescas, teimosas, gigantes e parece idiota chamá-las de bancos ou de dizer o que sejam elas: estou no meio das Coisas, as inomináveis. Sozinho, sem palavras, sem defesas, elas me cercam, debaixo de mim, atrás de mim, acima de mim. Elas nada exigem, elas não se impõem: elas estão lá.” (“Les choses se sont délivrées de leurs noms. Elles sont là, grotesques, têtus, géants et ça paraît imbécile de les appeler des banquettes ou de dire quoi que ce soit sur elles: je suis au milieu des Choses, les innommables. Seul, sans mots, sans défenses, elles m'environnent, sous moi, derrière moi, au-dessus de moi. Elles n'exigent rien, elles ne s'imposent pas: elles sont lá.” p. 177)

O que cansa o protagonista-narrador deste diário-romance não é a existência, mas a consciência da existência, “Gostaria de me deixar, me esquecer, de dormir. Mas não posso, me sufoco: a existência me penetra por tudo, pelos olhos, pelo nariz, pela boca...” (“Je voudrais tant me laisser aller, m'oublier, dormir. Mais je ne peux pas, je suffoque: l'existence me pénètre de partout, par les yeux, par les nez, par la bouche...” p. 178)


Ao constar que a Náusea é inerente à sua condição humana, de ser consciente da finitude, Roquetin se entrega a infindas digressões filosóficas cuidadosamente anotadas. Por um lado é confissão, por outro um excesso. Às vezes, só um leitor de filosofia entenderia. A preocupação do autor é certamente divulgar suas ideias existencialistas – adiantando discussões da obra técnica O Ser e o Nada. A literatura enquanto veículo de comunicação de ideias filosóficas (e políticas) é evidente nas escritas de autores como Sartre, André Gide, Albert Camus, Simone de Beauvoir, André Malraux, Aldous Huxley, George Orwell, dentre outros.

Roquetin dedica a tarde de quarta-feira, após o almoço desastrado com o Autodidata, para escrever sobre suas meditações sobre a existência, a consciência, a condição humana. Temas centrais na filosofia existencialista de Sartre e camaradas (Camus, Beauvoir, Malraux e incluindo Dostoiévski, que viveu mais de meio século antes). Em seu diário, o nauseado disseca sua Náusea, que está nele e é ele. Vivemos dentro da existência, como um peixe dentro de um aquário, inconsciente da água que o mantem vivo. De repente, a existência se faz evidente, é de se perder o fôlego. É a experiência sensorial-metafísica, de expressão surrealista, que ele vem desvelar (no sentido de 'tirar o véu' das aparências).


Assim tudo impregnado de existência, por isso passam despercebidas, assim como se nota o ar apenas quando esta falta, e se sufoca. É natural andar por entre as coisas, que tudo parece um imenso cenário. Se esquece que é uma coisa andando entre coisas, tudo farto de existir.

Como se livrar da existência? O suicídio, a auto-eliminação, seria solução? Não, pois se geraria mais existência: uma agonia, uma morte, um cadáver, uma autópsia, um enterro. É inútil requer resvalar no Nada. Até a morte faz parte da existência.

Cogitava vagamente em me suprimir, para anular ao menos um destas existências supérfluas. Mas minha morte teria sido demais. Demais. Meu cadáver, meu sangue sobre estes seixos, entre estas plantas, ao fundo deste jardim sorridente. E a carne corroída teria sido demais na terra que a tivesse recebido e meus ossos, enfim, limpos, descascados, purificados e asseados como os dentes teria sido ainda demais: eu era demais para a eternidade.” (“Je rêvais vaguement de me supprimer, pour anéantir au moins une de ces existences superflues. Mais ma mort même eût été de trop. De trop. Mon cadavre, mon sang sur ces cailloux, entre ces plantes, au fond de ce jardin souriant. Et la chair rongée eût été de trop dans la terre qui l'eût reçue et mes os, enfin, nettoyés, écorcés, propres et nets comme des dents eussent encore été de trop: j'étais de trop pour l'éternité.” p. 181)


As digressões do ex-biógrafo continua entre o absurdo e o ilogismo do existir: jogados no estar-aí gratuitamente, sem explicação. Mas para expressar o ilógico ele ainda usa palavras, um modo de linguagem, que carrega um sistema de lógica, com seus casos, sujeitos, objetos, complementos, conjugações, derivações, etimologias, etc, que requer atenção de quem pretende atingir o outro. Uma linguagem ilógica não comunica, não passa de um delírio.

Absurdo: ainda uma palavra; eu me debato contra as palavras; lá eu tocava a coisa. Mas eu gostaria de fixar aqui o caráter absoluto desse absurdo. Um gesto, um acontecimento no pequeno mundo colorido dos homens não é mais absurdo do que relativamente: em relação às circunstâncias que o acompanham. Os discursos de um louco, por exemplo, são absurdos em relação à situação onde se encontra mas não em relação ao seu delírio.” (“Absurdité: encore un mot; je me débats contre des mots; lá-bas, je touchais la chose. Mais je voudrais fixer ici le caractére absolu de cette absurdité. Un geste, un événement dans le petit monde coloriré des hommes n'est jamais absurde que relativement: par rapport aux circonstances qui l'accompagnent. Les discours d'un fou, par exemple, sont absurdes par rapport à la situation où il se trouve mais non par rapport à son délire.” p. 182)


Não é possível explicar a existência: estamos demasiadamente dentro dela. O viver excede a toda a nossa compreensão: qualquer explicação é transitória, ilusória, no máximo serve de consolo, evita o desespero. “o mundo das explicações e das razões não é aquele da existência. Um círculo não é absurdo, se explica bem pela rotação de um segmento de reta em torno de suas extremidades. Mas também um círculo não existe. Esta raiz, ao contrário, existia na medida em que eu não a podia explicar. Nodosa, inerte, sem nome, ela me fascinava, me preenchia os olhos, me conduzia sempre à própria existência.” (“[...] le monde des explications et des raisons n'est pas celui de l'existence. Un cercle n'est pas absurde, il s'explique très bien par la rotation d'un segment de droite autour d'une de ses extrémités. Mais aussi un cercle n'existe pas. Cette racine, au contraire, existait dans la mesure oú je ne pouvais pas l'expliquer. Noueuse, inerte, sans nom, elle me fascinait, m'emplissait les yeux, me ramenait sans cesse à sa propre existence.” p. 182)


Em plena crise existencial, Roquetin procura palavras para expressar as sensações-contrações de seu ser no mundo, incapaz de entender em que condição está jogado, sem solução. Mas como descrever a Náusea? Afinal, é uma sensação, assim como um religioso em êxtase, um místico em iluminação, não há como comunicar o vivenciado. É inútil expressar o que é intransmissível – vive-se, não se pode narrar.


Há alguma luta pela vida? Algum orgulho de existir? Que voracidade exibiam as árvores, folhas, raízes nas sombras do jardim público? Eis o mundo que nos cerca e domina. Somos parte do mundo e conscientes do mundo, o que nos deixa deslocados.


Como desistiu de escrever a biografia do ilustre desconhecido Sr. de Rollebon, o ex-biógrafo agora autor de diários Roquetin decide se mudar para Paris, onde passará seus dias, com ou sem náusea. Deve se mudar logo depois de rever a mui aguardada Anny. Ela chega e logo começam os mal-entendidos, as ausências nos olhares, a solidão a dois, tudo o que Roquetin já previa, pois sabia. É um imenso desencontro – ele esperava tanto por ela – com as expectativas que falham. Ou o que acontece não corresponde ao esperado.


O que ambos têm em comum? O desejo? O gosto literário? O pensamento filosófico? Afinal, o que realmente une duas pessoas? O que há em cada uma capaz de fazer com seja preferida em relação às outras? Roquetin tem seus interesses, Anny tem outros interesses, assim precisam lidar com 'denominadores comuns' para conviverem. Quando não encontram, o que há? Uma separação. Pois para manter um contato é preciso palavras, fórmulas de tratamento, respeito mútuo. Muito mais do que ideias. Como manter uma amizade erótica quando se precisa patrulhar cada fala, da nuance do diálogo. Ou seriam dois monólogos? Pois é uma coisa teatral, dramática mesmo: como se o outro precisasse de uma plateia!


Assim o casal Roquetin e Anny parece interpretar personagens tal qual aquele jovem casal que Roquetin observou atentamente certa vez num restaurante, quando almoçava com o Autodidata. Enquanto Roquetin pouco compreende, Anny se esforça por se explicar – o que são os 'momentos perfeitos', aquelas expectativas as quais é preciso satisfazer. Momentos que deveriam ser perfeitos para serem relembrados, perfeitos para justificarem os tantos momentos imperfeitos. Mas, em vão, não há nada de perfeição no mundo subjetivo. Sempre algo ou alguém quebras as expectativas, pois não existem momentos perfeitos, como a própria Anny percebera.


A solidão a dois acaba por novamente separar o casal. Roquetin esperou tanto pelo reencontro, e nada havia a comunicar do que as desilusões de ambos. Então não houve encontro – apenas se viram um diante do outro. Sem comunicação. Se ela vive uma vida, em outros lugar, ou outro tempo, ele vive uma não vida, deslocado de lugar e de tempo. É inútil um diálogo – nem contato corporal seria possível. Roquetin não reencontrou Anny e muito menos a si mesmo.

Assim só resta ir embora, deixar a cidade de Bouville, lugar tedioso. Sua missão auto-imposta – a escrita da biografia – não foi cumprida, seu sentido para viver se perdeu, ele deixou que Anny se fosse. O que norteia a existência do nauseado Roquetin? Ele se deixa levar em visões sucessivas, em crises de estar-no-mundo, em êxtases niilistas de colorações surrealistas. Basta conferir as páginas finais. Nada o prende ao mundo ao redor – com ele se sente em semelhante liberdade? Afinal, não estará 'condenado à liberdade'?

Sou livre: não me resta mais razão para viver, todas aquelas que eu experimentei se perderam e não posso mais imaginar outras. Sou ainda bem jovem, ainda tenho força para recomeçar. Mas que é preciso recomeçar? O quanto, no ápice dos meus terrores, de minhas náuseas, eu tinha contado com Anny para me salvar, eu o compreendo somente agora. Meu passado está morto, o Sr. de Rollebon está morto, Anny não voltou senão para tirar toda a esperança. Estou só nesta rua branca que limita os jardins. Sozinho e livre. Mas esta liberta se assemelha um pouco à morte.” (“Je suis libre: il ne me reste plus aucune raison de vivre, toutes celles que j'ai essayées ont lâché et je ne peux plus en imaginer d'autres. Je suis encore assez jeune, j'ai encore assez de forces pour recommencer. Mais que faut-il recommencer? Combien, au plus fort de mes terreurs, de mes nausées, j'avais compté sur Anny pour me sauver, je le comprends seulement maintenant. Mon passé est mort, M. de Rollebon est mort, Anny n'est revenue que pour m'ôter tout espoir. Je suis seul dans cette rue blanche que bordent les jardins. Seul et libre. Mais cette liberté ressemble un peu à la mort.” p. 219)


O fato de se definir pelos negativos – o que não é, o que não tem – o protagonista Roquetin se encontra num vazio, cheio de pensamentos niilistas, logo derrotistas. Uma falta de vigor, de vontade de agir, de desistir de interferir, fazer diferença É entregar os pontos, literalmente. “Perdi o jogo. De súbito, percebo que se perde sempre. Ninguém além dos canalhas acreditam que ganham.” (“j'ai perdu la partie. Du même coup, j'ai appris qu'on perd toujours. Il n'y a que les salauds qui croient gagner.” p. 219) Assim toda uma atmosfera mental que notamos nos intelectuais da época (e que muito favoreceu aos avanços alemães-nazistas durante a próxima guerra, de 1939-1945, com o antisemitismo francês pós-caso Dreyfus), sejam de esquerda ou de direita, tais como Sartre, Camus, Céline, Gide, dentre outros.


Perdido num labirinto niilista, Roquetin passa seus últimos momentos na cidadezinha de Bouville, já pensando no futuro, quando se lembrará do tempo perdido ali, numa biografia incompleta, num esforço em vão. Não entende porque afinal está ali, sendo aquele ser feito de ideias e hábitos, de renúncias e perdas, de deslocamento e ironia. Ele olha com desprezo para os habitantes da pacata Bouville, que seguem em suas vidas pactas, ordinárias, sem medo, pois 'sentem-se em casa', e que nada questionam, vivem apenas. “Eles são pacatos, um pouco morosos, eles pensam no amanhã, isto é, simplesmente um novo hoje; as cidades possuem apenas um dia retorna igual a cada manhã. Com esforço só se enfeita um pouco, aos domingos.” (“Ils sont paisibles, un peu moroses, ils pensent à Demain, c'est-à-dire, simplement, à un nouvel aujoud'hui; les villes ne disposent que d'une seule journée qui revient toute pareille à chaque matin. A peine la pomponne-t-on un peu, les dimanches.” p. 221)

E, se subitamente, algo inesperado ocorresse? E se uma catástrofe se abatesse sobre a cidadezinha? E se um conflito abalasse a vida ordinária? E se um bombardeio aéreo devastasse aquela existência cotidiana? E se as leis da física fossem abolidas? E se entidades surreais invadissem aquele mundo pacato? E se as coisas saíssem dos eixos? Roquetin gostaria muito de saber como se comportariam. “Ou nada disso acontecerá, não se produzirá qualquer mudança apreciável, mas as pessoas, numa manhã, ao abrirem as janelas, serão surpreendidos por uma espécie de sentido horrendo, pesadamente pousado sobre as coisas e que terá um ar de espera. Nada mais que isso: mas por pouco tempo que isso dure, haverá centenas de suicidas.” (“ou alors rien de tout cela n'arrivera, il ne se produira aucun changement appréciable, mais les gens, un matin, en ouvrant leurs persiennes, seront surpris par une espèce de sens affreux, loudement posé sur les choses et qui aura l'air d'attendre. Rien que cela: mais pour peu que cela dure quelque temps, il y aura des suicides par centaines.” pp. 222-23

Numa vida modesta e ordinária, qualquer diferença, qualquer inesperado pode produzir tragédias – pois o incomum, o não familiar, o unheimlich pode irromper e desfazer a aparente 'normalidade'. Por exemplo, um escândalo. Vejamos o pacato Autodidata. Aquele humanista que se instrui na biblioteca seguindo um método alfabético, autores de A a Z. Ele não inspira suspeitas, mas percebe-se que seu humanismo não é apenas um 'amor ao homem' no sentido simbólico, mas também físico, pois Roquetin presencia um ato obsceno, um impulso homoerótico não refreado, quando o Autodidata encontra os jovens estudantes na sala de leitura. O ato desviante quebra a calma cuidadosamente encenada.

Roquetin tenta ajudar o 'humanista', mas em vão. Com seu gesto impensado, o Autodidata jogou fora sua reputação e adentrou a margem da sociedade, que não permite desvios. Ele agora deixará a 'cultura' e viverá sua solidão, longe dos homens (em ambos os sentidos). Não terá mais legitimidade para andar por entre os concidadãos, seres do comum e do ordinário. O ser desviante – tal como o nauseado Roquetin – é sempre afastado do grupo (até formar seu próprio grupo desviante, a excluir outros desviantes do desvio...)

Pronto para partir, e ainda na cidade que deixara, o escritor de diário não sabe o que fazer com esta perda de laços de pertença. Não é da cidade que abandona, não é da cidade para a qual se mudará. Ele sofre não com a existência, mas com a Consciência de existir, ser-aí, o Dasein (da filosofia de Heidegger), “e há a consciência de tudo e a consciência, ai de mim!, da consciência.” (“et il y a conscience de tout ça et conscience, hélas! de la consciência.” p. 238) e para se despedir da pequena cidade, Roquetin se refugia na taverna para ouvir, mais uma vez!, a melodia de jazz que faz afastar a náusea, a melodia que traz emoção à sua percepção niilista. A melodia soa, se expande, a voz canta, a cantora talvez nem mais viva, os sons se sucedem, se desgastam, tudo tão frágil, tudo pronto para acabar, no entanto, o que pode fazer! Pode suspender o tempo, pode dar uma amostra da dádiva da Arte – pelo menos algo que o ser humano criou que o faz transcender, se superar – algo que não existe fisicamente, mas vivendo-morrendo a cada acorde, a cada nota.

Some of these days (1911; 1927)



É assim que Roquetin se despede, talvez para seguir em novas viagens, em busca de aventuras para embotar o tédio, para escrever um diário ou uma biografia ou um romance, para que digam que ele foi alguém – o autor de uma obra. Alguém que deixou um rastro, que provou que existiu, não apenas como uma coisa consciente, mas um criador, a superar o tempo, tal qual esta melodia jazzística que existe-não-existindo, obra de um compositor e de uma cantora, interpretada por uma série de músicos, que se superaram e legaram algo que se superou, uma sucessão de sons capaz de ser em si mesmo uma expressão humana e além-do-humano. É a única salvação para quem vive a náusea do existir humano, 'demasiadamente humano' - como vem nos lembrar Friedrich Nietzsche e Jean-Paul Sartre, em suas obras.



fonte: SARTRE, Jean-Paul. La Nausée. Paris, Gallimard, 1938.



jun/13


Leonardo de Magalhaens






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sexta-feira, 21 de junho de 2013

sobre A Náusea - obra de Jean-Paul Sartre - parte 1





Sobre “A Náusea” (La Nausée, 1938)
do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980)


Quando a Literatura explicita uma existência nauseante


parte 1

Aqui continuamos nossa saga através das obras que apresentam o indivíduo, a voz subjetiva, diante de uma sociedade, um mundo, em sua coletividade e objetividade. São vozes demasiadamente pessoais que atuam deslocadas num contexto de época ou classe, e que denunciam a coisificação do ser humano e das relações sociais. Ao destoarem das vozes circundantes, os deslocados, ou flutuantes, ou outsiders, conseguem explicitar o que não se desvela a quem segue a 'ordem unida' da conformidade.

Mas como já vimos em “Demian” - quando abordamos “O Lobo da Estepe”, de H. Hesse - e veremos em “O Estrangeiro / O Estranho”, de A. Camus, há algo mais que a narrativa, há um desejo de discutir questões filosóficas que incomodam tanto os autores quanto os leitores. A identidade, a consciência, a razão para viver, a expressão de sentimentos pessoais, a confissão de culpas (reais ou imaginárias), eis alguns eixos temáticos que impulsionam os textos, sempre a buscarem alguma cumplicidade com quem se anima a ler.

Aqui em A Náusea, publicado em 1938, adentraremos o universo da Filosofia existencialista do francês Jean-Paul Sartre, pensador e ativista, autor também de O Ser e o Nada (L'être et le Néant, 1943), obra filosófica, pensada durante a Segunda Guerra Mundial, quando o filósofo foi prisioneiro dos alemães nazistas, e escreveu mais romances existencialistas (a trilogia “Os Caminhos da Liberdade”: A Idade da Razão, Sursis, e Com a Morte na Alma) que ajudaram a divulgar que “o existencialismo é um humanismo”, em diálogo com os marxistas e os humanistas (católicos ou ateus).


Mais sobre o existencialismo sartreano


Mas falemos de literatura. Antoine Roquetin, o narrador-protagonista de A Náusea, lembra muito o tipo psicológico do narrador-protagonista Paul Hilbert do conto “Erostrato” de Sartre (publicado no volume intitulado “O Muro”, Le Mur, 1939), cujo enredo é basicamente tecido em torno de um cidadão amargurado e misantropo, que marca sua passagem pelo mundo pelo niilismo e autodestruição, tal qual o incendiário grego famoso por ter destruído o templo de uma deusa.

Tanto em Erostrato quanto em A Náusea, é tematizado o “se deus não existe, tudo é permitido” (em “Os irmãos Karamázov”, de Dostoiévski), onde o ser humano está só, no sentido de que tudo é recriado e justificado pela ação humana, pois não há 'lei divina', então os humanos precisam criar as leis, daí a angústia da responsabilidade, ao não esperar mais a 'intervenção divina'.

Pois a vida não tem sentido, é uma gratuidade. É preciso inventar um sentido para se viver. “Dar sentido à própria vida”, segundo o filósofo iconoclasta Friedrich Nietzsche (1844-1900), é quando, ao percebermos que não há um Sentido dado por uma Transcendência, ou Divindade, passamos a inventar um sentido para nossas existências – criar novas leis – e evitar a queda no misticismo ou seguir um 'sentido' dado pelos líderes, sejam os espirituais ou os temporais, sejam as autoridades, os especialistas, os ditadores, os padres, os reverendos, os escritores de auto-ajuda, os pensadores, os santos.


Relendo La Nausée agora no original, os aspectos estilísticos se destacam mais, a simplicidade dos diálogos, as frases feitas, em relação às meditações filosóficas-metafísicas sobre a consciência. Ousei fazer a tradução das citações para melhor 'me apropriar' do texto, conseguir me orientar nessa tessitura de digressões de um protagonista errante que vive a escrever em seu diário as suas impressões. “O melhor seria escrever os acontecimentos dia a dia” (“Le mieux serait d'écrire les événements au jour le jour.” p. 11) Mas por que escrever? Ele precisa, pois quer relatar, colocar ordem no que vive, num tédio que progressivamente o domina. É o que denomina 'a náusea'. O que será? A náusea advém se perceber-se mais uma 'coisa' entre coisas, um corpo a perambular por aí (a carregar uma alma consciente?), pois é comum coisificar-se os outros, seus corpos e suas palavras, mas assumir-se enquanto coisa é difícil.


Acho que é perigo se ter um diário: se exagera tudo, fica à espreita, se força continuamente a verdade” (“Je pense que c'est le danger si l'on tient un journal: on s'exagere tout, on est aux aguets, on force continuellement la vérité.” p. 11)

Acho que sou eu mesmo quem tem mudado: é a solução mais simples. Também a mais desagradável. Mas enfim eu devo reconhecer que estou sujeito à estas transformações súbitas.” (“Je crois que c'est moi qui ai changé: c'est la solution la plus simple. La plus désagréable aussi. Mais enfin je dois reconnaître que je suis sujet à ces transformations soudaines.” p. 16)

Terça-feira, 30 de janeiro. Eu vivo sozinho, inteiramente só. Não converso com quem quer seja, nunca; eu nada recebo, e nada entrego.” (“mardi 30 janvier: Moi je vis seul, entièrement seul. Je ne parle à personne, jamais; je ne reçois rien, je ne donne rien.” p. 19)

Na maioria das vezes, por falta de se ligar às palavras, meus pensamentos ficam nevoentos. Eles esboçam formas vagas e agradáveis, se engolfam : assim logo esqueço todos.” (“La plupart du temps, faute de s'attacher à des mots, mes pensées restent des brouillards. Elles dessinent des formes vagues et plaisants, s'engloutissent: aussitôt, je les oublie.” p. 19)


Não apenas de Roquetin a obra vem tratar em suas 200 páginas. Outros figurantes aparecem, com destaque para dois, o cidadão que lê na biblioteca pública, como forma de auto-instrução, que recebe aqui a alcunha de 'Autodidata'; e uma esperada mulher com a qual o protagonista teve um relacionamento frustrado, a enigmática Anny. Esta mulher só reaparecerá no final da obra – ou diário, ao qual temos acesso (Mas como conseguimos este diário? Será que Roquetin o publicou?!) - enquanto o estudioso é um contraponto constante, como paródia e como figura de desprezo.

O Autodidata (Ogier P.) espera a autoridade externa, “Mas eu desconfio tanto de mim mesmo; seria preciso ter lido tudo.” (“Mais je me défie tant de moi-même; il faudait avoir tout lu.” p. 56) Aliás, o Sr. Ogier é aquele que se 'educa' por ordem alfabética, com autores de A a Z, de um autor a outro autor, passando por assuntos os mais diversos, tudo ao almejar um 'conhecimento universal' (como se fosse possível ler a Enciclopedia Brittannica de A a Z.)

O estudioso é um humanista, daí ressurgir aqui a questão do Humanismo, se é possível amar o Ser Humano enquanto entidade abstrata, e não reconhecê-lo no próximo – amar a Humanidade, mas desprezar o vizinho, o operário na rua, odiar o patrão no serviço, etc. Afinal, o humanista ama o Homem idealizado, que ele deseja de certo modo – caso contrário, vem o desprezo, o “inferno são os outros” (frase do próprio filósofo-escritor em sua peça “Entre quatro paredes”, Huis Clos , de 1944).


Enquanto não observa a cidade de Bouville e seus pacatos habitantes, Roquetin lê e escreve na Biblioteca pública, concentrado em concluir a biografia de um certo excêntrico Sr. de Rollebon, dado às intrigas políticas e palacianas. Entre leituras, narrativas, dados biográficos, para ele não é estranho que a própria vida veja vista enquanto uma narrativa. Mesmo de uma vida comum. “Quando se vive, nada acontece. As cenas mudam, as pessoas entraram e saem, eis tudo.” (“Quand on vit, il n'arrive rien. Les décors changent, les gens entrent et sortent, voilà tout.” p. 62) Contudo a narrativa pode criar o extraordinário.

Aqui eis o que pensei: para que um acontecimento mais banal se torne uma aventura, é preciso e é suficiente que se comece a narrá-lo. É o que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de estórias, vivem em torno de suas estórias e pelas estórias dos outros, vê tudo o que ocorre através delas; e procura viver sua vida como se a recontasse [narrasse]. (“Voici ce que j'ai pensé: pour que l'événement le plus banal devienne une aventure, il faut et il suffit qu'on se mette à le raconter. C'est ce qui dupe les gens: un homme, c'est toujours un conteur d'histoires, il vit entouré de ses histoires et les histoires d'autrui, il voit tout ce qui lui arrive à travers elles; et il cherche à vivre sa vie comme s'il la racontait.” pp. 61-62)



Lembramos que é possível uma distinção entre 'História' (History) com H maiúsculo, no sentido de factual, documental, e 'estória' (story) no sentido de ficcional, imaginário. “Eis o que é o viver. Mas quando se narra a vida, tudo muda; apenas uma mudança na qual ninguém repara: a prova é que se fala de estórias reais. Como se pudesse haver estórias reais; os acontecimentos acontecem de um jeito e são narrados de modo inverso.” (“Ça, c'est vivre. Mais quand on raconte la vie, tout change; seulement c'est un changement que personne ne remarque: la preuve c'est qu'on parle d'histoires vraies. Comme s'il pouvait y avoir des histoires vraies; les événements se produisent dans un sens et nous les racontons en sens inverse.” p. 63)


“Mas é preciso escolher: viver ou narrar.” (“Mais il faut choisir: vivre ou raconter.”) ou seja, enquanto se vive, não se narra; apenas pode-se narrar depois de vivenciado, daí termos os memoralistas. Mas Roquetin quer registrar o momento, o vivido, exatamente no mesmo instante – ele ouve uma música e passa a descrevê-la, e suas reações emocionais. Mas enquanto ele narra, sabe que tudo se modifica (“Ça, c'est vivre. Mais quand on raconte la vie, tout change.”), o que se vivenciou, já passou, é lembrança.


Mas Roquetin desconfia das narrativas, e da Literatura, a tessitura de factual e ficcional, tal como o eu lírico de Carlos Drummond de Andrade em “Elegia 1938”, “A literatura estragou tuas melhores horas de amor”, que deixa de aproveitar o momento ao observar-se para narrar. Além do mais, para quem o protagonista escreve? Para si mesmo, pois seu diário é uma válvula de escape, uma forma de manter a sanidade. Daí a necessidade de ser espontâneo, não um literato exibicionista. (Vejamos o 'contrato ficcional' aqui: o Leitor tem acesso a um diário, não a um romance...)

Não preciso fazer frases. Escrevo para deixar claro certas circunstâncias. Desconfiar da literatura. É preciso escrever ao correr da pena; sem escolher as palavras. (“Je n'ai pas besoin de faire des phrases. J'écris pour tirer au clair certaines circonstances. Se méfier de la littératture. Il faut écrire au courant de la plume; sans chercher les mots.” p. 85)


É preciso viver, experimentar, e não narrar. O conhecimento se apreende pelo vivenciado, não pelo absorvido dos livros. Ainda que tenha-se um delay (um atraso) entre o experimentado e o percebido – quando só se tem as lembranças, meras sombras das emoções – a ponto de se pensar que o vivido foi lido, “Tudo o que sei da minha vida, parece-me que tenho aprendido nos livros.” (“Tout ce que je sais de ma vie, il me semble que je l'ai appris dans des livres.” ) Roquetin é um homem sem aventuras, e ele o sabe, “Não tive aventuras” (“Je n'ai pas eu d'aventures.”), pois em sua vida nada há de extraordinário, afinal,

Enfim, eu tinha imaginado que em certos momentos minha vida podia adquirir uma qualidade rara e preciosa. Sem necessidade de circunstâncias extraordinárias: exigia apenas um pouco de rigor. Minha vida presente nada tinha de brilhante: mas de tempo em tempo, por exemplo quando se tocava música nos cafés, eu me recordava e me dizia: outrora, em Londres, em Meknes, em Tóquio, conheci momentos admiráveis, eu tive aventuras. Eis o que me é tirado. Percebo, bruscamente, sem razão aparente, que tenho mentido a mim mesmo por dez anos. As aventuras estão nos livros.” (“Enfin je m'étais imaginé qu'à de certains moments ma vie pouvait prendre une qualité rare et précieuse. Il n'était pas besoin de circonstances extraordinaires: je demandais tout juste un peu de rigueur. Ma vie présente n'a rien de très brillant: mais de temps en temps, par exemple quand on jouait de la musique dans les cafés, je revenais en arrière et je me disais: autrefois, à Londres, à Meknès, à Tokio j'ai connu des moments admirables, j'ai eu des aventures. C'est ça qu'on m'enlève, à présent. Je viens d'apprendre, brusquement, sans raison apparente, que je me suis menti pendant dix ans. Les aventures sont dans les livres.” p. 59)


Enquanto se narra, se re-elabora o vivenciado, o tempo escorre, se esvai, o “famoso escorrer do tempo” (“ce fameux écoulement du temps”) que corrói a vida, que nos afasta de nós mesmos – um eu-de-hoje em relação a um eu-de-ontem e um eu-de-amanhã – pois “cada instante se aniquila, que não vale a pena tentar retê-lo, etc” (“chaque instant s'anéantit, que ce n'est pas la peine d'essayer de le retenir, etc”), contudo o que faz Roquetin? Ele não retem o instante, mas o conserva enquanto narrativa – ele registra o momento e o que sentiu, e eis o relato que temos (e do qual ele desconfia!) Pois inevitavelmente o tempo passa, e a consciência bem o sabe! “Alguma coisa começa por findar: a aventura não se deixa alongar; ela não tem sentido senão por sua morte.” (“Quelque chose comence pour finir: l'aventure ne se laisse pas mettre de rallonger; elle n'a de sens que par sa mort.” p. 60)

No mais, a vida não está nos livros! Tudo o que está descrito, já está anestesiado, congelado. Quando se tem a emoção não se narra – daí a inutilidade da psicologia na escrita, mera simulação. “Não passava de psicologia. Igual a que se faz nos romances.” (“C'était tout juste de la psychologie, comme on em fait dans les romans.” ) Se a vida é vazia e sem sentido, pelo menos poderíamos valorizá-la com 'momentos perfeitos', a obsessão de Anny, sabendo que o tempo passa, foge, tempus fugit, e é um desejo febril o de congelá-lo em retratos, em fotografias emocionais, em momentos únicos, excepcionais, daí rememoráveis. Um amor avassalador, uma paisagem, uma sinfonia ouvida ao crepúsculo, tudo se constitui em singularidades meio às banalidades.

Eu me inclino sobre cada segundo, tento desgastar todos; nada passa que eu não perceba, que eu não fixe para sempre em mim, nada, nem a ternura fugaz desses belos olhos, nem os ruídos da rua, nem a claridade indecisa do aurora: e no entanto o minuto se escorre e eu não o retenho, gosto que passe assim.” (“Je me penche sur chaque seconde, j'essaie de l'épuiser; rien ne passe que je ne saisisse, que je ne fixe pour jamais en moi, rien, ni la tendresse fugitive de ces beaux yeux, ni les bruits de la rue, ni la clarté fausse du petit jour: et cependant la minute s'écoule et je ne la retiens pas, j'aime qu'elle passe.” p. 60)


Roquetin com medo da loucura, além da solidão , do viver sem amigos, “Quando se vive só, nem se sabe mais o que é isso de narrar: a verossimilhança desaparece ao mesmo tempo que os amigos.” (“Quand on vit seul, on ne sait même plus ce que c'est que raconter: le vraisemblable disparaît en même temps que les amis.” p. 20) que pode culminar na perda da identidade, “Então é isso que me espera? Pela primeira vez me entedia estar só. Desejaria falar com alguém sobre isso que me afeta antes que seja tarde demais, antes que eu aterrorize os meninos. Gostaria que Anny estivesse aqui.” (“Est-ce donc ça qui m'attend? Pour la première fois cela m'ennuie d'être seul. Je voudrais parler à quelqu'un de ce qui m'arrive avant qu'il ne soit trop tarde, avant que je ne fasse peur aux petits garçons. Je voudrais qu'Anny soit là.” p. 22)

O narrador do diário mostra o quanto está entediado com o seu biografado (M de Rollebon), sendo que a escrita da biografia é o que dá sentido a vida do deslocado narrador, “Mas, agora, o homem... o homem começa a me entediar. É ao livro que eu me atenho, sinto uma necessidade cada vez mais forte de escrever – à medida em que envelheço, diria.” (“Mais, maintenant, l'homme... l'homme commence à m'ennuyer. C'est au livre que je m'attache, je sens un besoin de plus en plus fort de l'écrire – à mesure que je vieillis, dirait-on.” p. 27) Ele questiona a biografia versus o romance, a ficcionalização – o quanto a vida é espontânea? O quanto M. Rollebon é real? O quanto é verossímil? “Tenho a impressão de fazer um trabalho de pura imaginação. Ainda estou bem certo que as personagens de romance teriam um ar mais real, seriam, em todo caso, mais agradáveis.” (“J'ai l'impression de faire un travail de pure imagination. Encore suis-je bien sûr que des personnages de roman auraient l'air plus vrais, seraient, en tout cas, plus plaisants.” p. 28)


Destaca-se aqui o contemplar-se: é possível o Eu definir-se? Como se detém diante da própria face? “Eu nada entendo desta face. Aquelas dos outros têm um sentido. Não a minha. Eu não posso mesmo decidir se é bela ou feia.” (“Je n'y comprends rien, à ce visage. Ceux des autres ont un sens. Pas le mien. Je ne peux même pas decider s'il est beau ou laid.” p. 32) mas está presente o perigo da introspecção, o mergulho em si-mesmo que pode levar ao desgosto, a náusea, “um quarto de hora bastaria, estou certo, para que tivesse o supremo desgosto comigo mesmo.” (“un quart d'heure suffirait, j'en suis sûr, pour que je parvienne au supreme degôut de moi.” p. 29)

Pois o ser humano vivem sociedade, no convívio com o outro, ponto de apoio e motivo de desgosto. É através do outro que o eu toma consciência de si mesmo, percebe-se numa relação de alteridade. Sem o outro o eu não pode nem qualificar a própria aparência – acostuma a ser considerado belo ou feio de acordo com as apreciações externas. Sozinho, como ele se julga? Será belo ou feio? Que padrões terá além daqueles dados socialmente? Veja-se os critérios da moda, sempre fugaz. Pois bem, ele não sabeo que dizer da própria face! E se indaga se “As outras pessoas têm tanta dificuldade de julgar a própria face?” (“Est-ce que les autres hommes ont autant de peine à juger de leur visage?” p. 33

Talvez seja impossível entender a própria face. Ou talvez seja por que sou um homem solitário? As pessoas que vivem em sociedade aprenderam a se ver, nos espelhos, tal como elas aparecem aos amigos. Eu não tenho amigos: será por isso que minha carne é tão desnuda? É de se dizer – sim, diria a natureza sem os seres humanos.” (“Peut-être est-il impossible de comprendre son propre visage. Ou peut-être est-ce parce que je suis un homme seul? Les gens qui vivent en société ont appris à se voir, dans les glaces, tels qu'ils apparaissents à leurs amis. Je n'ai pas d'amis: est-ce pour cela que ma chair est si nue? On dirait – oui, en dirait la nature sans les hommes.” p. 34)

Neste quadro de solidão, de introspecção, não é de se espantar se ela surge, a crise existencial, denominada a Náusea, que está nele e em tudo, “Assim a Náusea me dominou. Deixei-me cair no banco, nem sabia mais onde eu estava; eu via girar lentamente as cores ao meu redor, tinha vontade de vomitar. Pois é: depois a Náusea não me abandonou, ela me sujeitou.” (“Alors la Nausée m'a saisi. Je me suis laissé tomber sur la banquette, je ne savais même plus où j'étais; je voyais tourner lentement les couleurs autour de moi, j'avais envie de vomir. Et voilà: depuis, la Nausée ne m'a pas quitté, elle me tient.” p. 35) e também: “A Náusea não está em mim: eu a percebo lá na parede, nos suspensórios, em tudo ao meu redor. Ela não faz mais que um todo com o café, sou eu quem está nela.” (“La Nausée n'est pas em moi: je la ressens là-bas sur le mur, sur les bretelles, partout autour de moi. Elle ne fait qu'un avec le café, c'est moi qui suis em elle.” p. 36)

A arte, a música, a simples canção de jazz consegue dissolver a crise existencial, a Náusea, “A Náusea se desvaneceu. De súbito: […] ao mesmo tempo a duração da música se dilatava, se inflava como uma tromba. Ela preenchia a sala com sua transparência metálica, a esmagar contra as paredes nosso tempo miserável. Estou na música.” (“La Nausée s'est évanouie. D'un coup: […] En même temps la durée de la musique se dilatait, s'enflait comme une trombe. Elle emplissait la salle de sa transparence métallique, em écrasant contre les murs notre temps misérable. Je suis dans la musique.” p. 40)


Consciente, Roquetin quer escrever espontâneo, sem literatura. Mas exibe trechos líricos, com matiz literária “A Náusea ficou lá, na luz amarela. Estou contente: esse frio é tão puro, tão pura esta noite; não sou eu mesmo uma onda de ar gélido? Não ter sangue, nem linfa, nem carne. Escorrer por esse longo canal em direção àquela palidez lá. Não ser exceto frio.” (“La Nausée est restée là-bas, dans la lumière jaune. Je susis heureux: ce froid est si pur, si pure cette nuit; ne suis-je pas moi-même une vague d'air glacé? N'avoir ni sang, ni lymphe, ni chair. Couler dans ce long canal vers cette pâleur là-bas. N'être que du froid.” p. 45)

Ou quando fala do tempo, “Eu nem distinguo mais o presente do futuro e no entanto tem duração, ao se realizar pouco a pouco; a velha avança na rua deserta; ela desloca suas grossas sandálias masculinas. É este o tempo todo nu, que vem lentamente à existência, que se faz esperar e quando vem, é de se estar entediado pois se percebe que já estava ali há muito tempo.“(“Je ne distingue plus le présent du futur et pourtant ça dure, ça se réalise peu à peu; la vieille avance dans la rue déserte; elle déplace ses gros souliers d'homme. C'est ça le temps tout nu, ça vient lentement à l'existence, ça se fait attendre et quand ça vient, on est écoeuré parce qu'on s'aperçoit que c'était déjà là depuis longtemps.” p. 51)

O escritor do diário passa seus momentos em perambulações ou acomodado entre os volumes da biblioteca, está entre imagens e textos, aprisionado por obsessões que desabrocham a qualquer momento, brotando da inconsciência. Tudo latente, a aflorar subitamente bastando um estímulo visual ou olfativo. Ele é cativo de suas próprias impressões – ser entre seres, coisa entre coisas. Suas leituras são apenas distrações, ele não leva à sério. Ele se diverte e julga os autores, tece considerações irônicas – enfim, desconfia do que lê, despreza os literatos. Despreza o humanista incauto ironicamente denominado Autodidata, que ainda acredita que a cultura melhora o homem.

A distinção eu-de-hoje com o eu-de-ontem, a lacuna temporal que separa ser que viveu e o ser que narra, “Mas eu não vejo mais: tenho vasculhado o passado e nada retiro mais que os destroços de imagens e eu não sei mais o que representam, nem se são recordações ou ficções.” (“Mais je ne vois plus rien: j'ai beau fouiller le passé je n'en retire plus que des bribes d'images et je ne sais pas très bien ce qu'elles représentent, ni si ce sont des souvenirs ou des fictions.” p. 53.)


Em muitos casos os próprios destroços desapareceram: apenas restam as palavras: ainda poderia narras as estórias, narrar todas muito bem (em anedota eu não temo ninguém, salvo os oficiais da marinha e os profissionais), mas não passam de carcaças. Tratam de um sujeito que fez isso ou aquilo, mas não sou eu, nada tenho em comum com ele.” (“Il y a beaucoup de cas d'ailleurs où ces bribes elles-mêmes ont disparu: il ne reste plus que des mots: je pourrais encore raconter les histoires, les raconter trop bien (pour l'anecdote je ne crains personne, sauf les officiers de mer et les professionnels), mais ce ne sont plus que des carcasses. Il y est question d'un type qui fait ceci ou cela, mais ça n'est pas moi, je n'ai rien de commun avec lui.” p. 53)


Sem ter uma produtiva e satisfatória vida própria, Roquetin perambula a observar as vidas dos outro, os jogadores no bar, os casais nos modestos boulevards, os pequenos dramas, as autoridades nos passeios dominicais, os frequentadores de museus, os que vivem cotidianamente, medianamente, sem sobressaltos, sem náuseas, enquanto ele segue e sempre deslocado não sabe o que fazer da própria existência. Ele se deixa a observar e criticar ironicamente os transeuntes, com suas vestes e faces, suas poses e hierarquias, descrente da ordem social que não passa de aparência e inércia.

Ela, a multidão, era mais misturada do que pela manhã. Parecia que todos aqueles homens não tivessem mais a força de sustentar esta bela hierarquia social, a qual, antes do almoço, eles eram tão orgulhosos. Os comerciantes e os burocratas andavam lado a lado; eles se encostavam, mesmo empurrar e deslocar-se por pequenos empregados de ares pobres. As aristocracias, as elites, os grupos profissionais se fundiam nessa multidão morna. Restavam apenas homens quase solitários, que não representavam mais.” (“Elle était plus mêlée que le matin. Il semblait que tous ces hommes n'eussent plus la force de soutenir cette belle hiérarchie sociale dont, avant déjeuner, ils étaient si fiers. Les négociants et les fonctionnaires marchaient côte à côte; ils se laissaient coudoyer, heurter même et déplacer par de petits employés à la mine pauvre. Les aristocraties, les élites, les groupements professionnels avaient fondu dans cette foule tiède. Il restait des hommes presque seuls, qui ne représentaient plus.” p. 78)


E Roquetin sempre deslocado, “Eu andava com passos de lobo, furtivo, nem sabia o que fazer com meu corpo duro e fresco, em meio a esta multidão trágica que repousava.” (“Je marchais à pas de loup, je ne savais que faire de mon corps dur et frais, au millieu de cette foule tragique qui se reposait.” p. 80) e suas meditações transitam entre a ironia e o tratado sociológico, enquanto ele se indaga, no seu embaçado humanismo, “Eu me perguntei, por um instante. Se eu não amaria os homens.” (“Je me demandai, un instant, si je n'allais pas aimer les hommes.” p. 81) pensa o angustiado Roquetin ao ver as multidões na avenida à beira-mar, enquanto se sente solitário meio ao coletivo, que tem identidade e estilo, enquanto ele indaga sobre tudo e sobre si-mesmo. Os outros têm conforto na conformidade, no viver grupal, ele nada tem. A conformidade gera comodidade, a vida de rebanho, sem ideias próprias, sem o peso da responsabilidade. “As ideias gerais são mais cômodas” (“Les idées générales c'est plus flatteur.” p. 102)


O escritor de diário se descreve, em sua condição solitária, de deslocado e desapegado das honras sociais, que todos buscam avidamente, para agregarem às suas identidades. Profissionais, autoridades, sacerdotes, todos esperam aplausos e honrarias. Tudo para o belo edifício social. Enquanto a Roquetin, é um homem sem rumos, talvez um anti-herói,

Sou sozinho, a maioria das pessoas adentram os seus lares, onde leem jornais e ouvem a rádio TSF. O domingo que finda tem deixado nelas um gosto de cinzas e o pensamento delas se volta para a segunda-feira. Mas não há para mim nem segunda-feira, nem domingo: existem os dias que se sucedem em desordem, e mais, de súbito, clarões como este.

Nada tem mudado e no entanto tudo existe de uma outra forma. Não posso descrever; é como a Náusea e no entanto é bem o contrário: enfim uma aventura me ocorre e quando eu me pergunto, eu vejo que me ocorre que sou eu e que estou aqui; sou eu que fendo a noite, estou contente como um herói de romance.

(“Je suis seul, la plupart des gens sont rentrés dans leurs foyers, ils lisent le journal du soir em écoutant la T. S. F. Le dimanche qui finit leur a laissé un goût de cendre et déjà leur pensée se torne vers le lundi . Mais il n'y a pour moi ni lundi ni dimanche: il y a des jours qui se poussent en désordre, et puis, tout d'un coup, des éclairs comme celui-ci.

Rien n'a changé et pourtant tout existe d'une autre façon. Je ne peux pas décrire; c'est comme la Nausée et pourtant c'est juste le contraire: enfin une aventure m'arrive et quand je m'interroge, je vois qu'il m'arrive que je suis moi et que je suis ici; c'est moi qui fends la nuit, je suis heureux comme un héros de roman.” p. 82)


É atordoante, para o narrador do diário, e para nós, os leitores desprevenidos, a extrema noção de si-mesmo e do que está ao redor, sincronicamente no mundo, o ser pensante no contexto do existir, em algum lugar em relação a todos os lugares, com sua vida disposta em paralelo com outras tantas vidas,

Sigo adiante. O vento traz até mim um grito de sirene. Estou só, mas eu marcho como uma tropa que adentra uma cidade. Existem, neste instante, navios ressonantes de música sobre o mar; as luzes se acendem em todas as cidades da Europa; os comunistas e os nazistas atiram uns nos outros nas ruas de Berlim, os desempregados perambulam pelas ruas de Nova York, as mulheres, diante de suas penteadeiras, num quarto morno, aplicam rímel nos cílios. E eu estou aqui, nesta rua deserta, e cada disparo de uma janela de Neukölln, cada soluço sangrado dos feridos que são transportados, cada gesto preciso e modesto das mulheres que se enfeitam correspondem a cada um de meus passos, a cada pulsar de meu coração. (“Je repars. Le vent m'apporte le cri d'une sirène. Je suis tout seul, mais je marche comme une troupe qui descend sur une ville. Il y a , en cet instant, des navires qui resonnent de musique sur la mer; des lumières s'allument dans toutes les villes d'Europe; des communistes et des nazis font le coup de feu dans les rues de Berlin, des chômeurs battent le pavé de New York, des femmes, devant leurs coiffeuses, dans une chambre chaude, se mettent du rimmel sur les cils. Et moi je suis là, dans cette rue désert, et chaque coup de feu qui part d'une fenêtre de Neukölln, chaque hoquet sanglant des blessés qu'on emporte, chaque geste précis et menu des femmes qui se parent répond à chacun de mes pas, à chaque battement de mon coeur.” p. 83)



fonte: SARTRE, Jean-Paul. La Nausée. Paris, Gallimard, 1938.



continua …



jun/13


Leonardo de Magalhaens