terça-feira, 26 de março de 2013

sobre FOME - romance de Knut Hamsun





Sobre Fome (Sult,1890)
romance do autor norueguês Knut Hamsun (1859-1952)
[tradução: Carlos Drummond de Andrade, 1981]
(citações tiradas da edição Círculo do Livro)



Quando a literatura autêntica brota da miséria


A primeira referência ao romance do norueguês Knut Hamsun encontramos em “O Encontro Marcado” (1956), romance de geração do mineiro Fernando Sabino (1923-2004) onde, no capítulo A Geração Espontânea, dois jovens listam as suas leituras, e Fome é considerado o “mais autêntico, mais humano”, dentre as obras do autor. Tendo lido o romance de Sabino em 1995, somente encontramos uma edição do livro de Hamsun três anos depois, traduzido pelo poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Desde então fizemos duas releituras da obra.

O impacto de Fome é realmente visceral. Narrado por um jovem de talento que, de tão honrado, vive em miséria material e carência afetiva. Seu talento é sua forma de afirmação no mundo que o ignora, que o despreza pela ausência de posses e status. É um texto que almeja autenticidade, vivencial e confessional. O homem tem fome e declara ter fome, e sabe que ‘não só de pão vive o homem’. Mas se temos fome, como teremos disposição para o talento? E sem o talento ele já teria se matado ou virado um bandido. É o mesmo caso de outros jovens de talento, o Raskólnikov (de Dostoiévski) ou o Bandini (de John Fante), que sobrevivem num mundo cruel.

Tanto o narrador de Fome quanto o Raskólnikov, de Crime e Castigo, e Bandini, de Pergunte ao Pó (Ask the Dust, 1933) são jovens escritores pobres, provincianos que vieram para a cidade grande em busca de oportunidade e reconhecimento. O narrador de Fome tenta sobreviver em Cristiania (atualmente Oslo), enquanto Bandini sobrevive em Los Angeles, quatro décadas depois. Ambos os narradores-protagonistas são jovens flâneurs – pois detestam o quarto pobre, em miserável solidão onde sobrevivem e se sentem atraídos pelos tentáculos tumultuosos da vida urbana: tudo o que não possuem e é possuído pelos outros – bens, serviços e luxos. (Assim acontece com o amargurado ‘homem do subsolo’ e com o angustiado Raskólnikov).

O narrador quer trabalhar e ser digno, e não viver de favor, em dívidas, dependente da compaixão alheia. Ele acredita no próprio talento, crê-se genial. Ele se declara um ficcionista, adora inventar mentiras, criar enredos mirabolantes. Esta narrativa de um declarado ficcionista, assim explícito, nos faz lembrar outras obras – que também discutiremos aqui. Tanto em Fome quanto em Angústia (1936, de Graciliano Ramos) e A Náusea (1938, de Sartre) temos os protagonistas-narradores obcecados por descrições de detalhes – como forma de evadirem-se de suas situações angustiosas.

Há uma voz sem nome, pessoal, mas anônima. Qual o nome do protagonista? Ele inventa nomes para si mesmo, e mantem-se anônimo, ao longo da narrativa, e nem sabe por que mente assim, ora Wendel Jarlsberg, ou André Tangen. Ou ainda Valdemar Atterdag. Não se identifica – estará despojado da própria identidade? Afinal, o protagonista se sente despojado, roupa a roupa, peça após peça de sua dignidade, até sua honra e identidade se perder, daí termos um narrador sem-nome, sem posição social, sem presença – passa a ser um cidadão invisível, desprezado, os transeuntes sequer levantam o olho para encará-lo – e pior: ele tem plena consciência de tudo!

O protagonista sofre, mendiga, mas, ao contrário de Raskólnikov, não comete crime, ainda que não hesite em se castigar. Encontramos cenas de autocompaixão e automutilação em Fome (o narrador se morde) – e em Pergunte ao Pó (onde Bandini se corta com as unhas). Ele vive a alternar fome com nervosismo – ora consegue escrever, publicar um artigo e ter um dinheiro no bolso durante uma semana, depois volta à miséria, ainda mais baixa. Há quem deva alguns níqueis ao narrador e ele faz questão de nunca cobrar – e tem consciência de que jamais será reembolsado. Ao mesmo tempo ele se sente culpado quando comete desonestidade – por exemplo, quando aceita em troco uma quantia a mais, ou quando, nem tendo pago, recebe um troco.

Tanto Bandini, do romance de Fante, quanto o narrador de Fome são jovens imaginosos, fantasiosos, que usam da ficção espontânea para sobreviverem às mais miseráveis situações, abrigam-se assim da indignidade na rede da imaginação, podem se ver a escrever tudo o que vivenciam. “Eu já não dominava a situação: um após outra, mentiras brotavam-me da cabeça.” (p 23)

Outro ponto que merece destaque: a relação homem – mulher. Percebemos que os narradores, em vida de penúria, se sentem inferiores a mulher que desejam – não só financeiramente, mas também em ousadia amorosa. As mulheres parecem mais atrevidas e misteriosas – e constrangem os jovens, que imaginam deveriam ter a iniciativa.


Mas vejamos alguns trechos que merecem especial atenção, e algum comentário. Ele é o jovem que perambula pela cidade costeira de Cristiânia, destino de muitos e abrigo de poucos (atualmente Oslo, a capital norueguesa, moderna e cosmopolita).  “Naquele tempo, com a barriga na miséria, eu vagava pelas ruas de Cristiânia, cidade singular, que deixa marca nas pessoas...” (p. 7) ele segue de insucesso em insucesso, “As inúmeras recusas e meias promessas, o ‘não’ seco e repetido, esperanças alternadamente acariciadas e desfeitas, novas tentativas que sempre davam em nada – tudo isso me aniquilara o ânimo. [...] Sempre esse ou aquele obstáculo.” (p. 8) até a penúria “A regularidade, o movimento uniforme com que ia, constantemente, deslizando ladeira abaixo! Acabei ficando tão extraordinariamente desprovido de tudo, que não me restava sequer um pente, um livro para ler, quando a vida se tornava demasiado triste.” (p.8)

Em estado de miséria e em busca de oportunidades, o narrador vagueia pelas ruas, observando o que é rotineiro para os demais, “Comecei a observar as pessoas com quem cruzava ou que ultrapassava; ia vendo os cartazes nos muros, recolhendo a impressão do olhar que alguém me lançava de um bonde em movimento; penetravam-me as coisas mais insignificantes, todas as miúdas contingências que cruzavam no caminho e desapareciam.” (p.9) e “Continuei a rodar por aí, flanando sem me preocupar com coisa alguma: parei a um canto, sem necessidade, mudei de direção, tomei uma rua lateral onde não tinha nada que fazer. Vagabundo na manhã alegre, passeando aqui e ali minha despreocupação, entre os outros felizes mortais, deixava as coisas correrem. O céu era claro, sem nuvens; e nenhuma sombra em minh’alma.” (p.10)


Ao mesmo tempo a necessidade de escrever : para narrar, afirmar-se e sobreviver. “E ao imaginar esse artigo, senti-me de repente invadido pela necessidade imperiosa de dedicar-me imediatamente a ele [o artigo], para expandir a plenitude das ideias.” (p.10) Ao se considerar um escritor, um artista, o narrador não gosta de ser julgado como pobre, por sua aparência miserável. Julga-se um gênio, não um mendigo. Quer mostrar boa aparência – sabe que as pessoas julgam a aparência, não a genialidade. Ele tem dignidade, acima de tudo. Quando ele imagina um artigo para o jornal, ele sempre julga ser uma obra-prima, e, corajoso, se entrega a escrita, seja num banco de parque, ou capela de cemitério. Mas, muitas vezes, o jovem não tem papel nem lápis, ou um toco de vela, para propiciar sua escrita. (E quantos outros têm acesso ao papel, à caneta e ao computador, e nada escrevem!)

O narrador tem elevada consciência de si mesmo e de sua condição de miséria. Ele joga com os cidadãos assim como a cidade joga com ele – mas ele sempre perde. Ele aborda pessoas nas ruas, assedia mocinhas, segue mendigos, discute com vagabundos, frequenta mercado e estação ferroviária, em suma, se mistura ao tumulto da cidade grande. “Já eu, em contraste, caminhava ao lado dessas pessoas, eu, moço em flor, e nem me lembrava mais como era o rosto da felicidade! Embalava-me com esse pensamento, sentindo-me vítima de uma injustiça cruel. Por que esses últimos meses me haviam mal-tratado tão rudemente? Já não reconhecia mais o meu natural prazenteiro; por toda parte era presa dos mais singulares tormentos.”  (pp. 17-18)

Por que a maldição da fome sobre o protagonista? “Que doença era a minha? Teria sido eu apontado pelo indicador da mão de Deus? Mas por que precisamente eu? Por que não, por exemplo, um homem que estivesse na América do Sul? Quanto mais refletia nisso, mais me parecia inconcebível que a Graça Divina me tivesse escolhido justamente como cobaia, para realizar seus caprichos.” (p. 18) O narrador pensa que a divindade conspira para a sua miséria, a perda do emprego, a vadiação nas ruas, a trilha da indignidade ... Sente-me pessoalmente perseguido, ferido pelo dedo divino, em constante desassossego. “Seria firme intenção de Deus destruir-me completamente?” (p. 18)


Ao querer escrever, muitas vezes, tal intuito é fracassado: a realidade do mundo, da cidade, o golpeia mais forte: “Escrever, porém, era impossível. Depois de algumas linhas, não me acudia a menor ideia; [...] Tudo me influenciava e me distraía, tudo o que via despertava uma impressão nova.” (p. 20)  É impressionante a capacidade de observação e descrição do narrador, rodeado de coisas, pessoas, eventos, vivências. Em suas palavras as impressões do mundo se misturam com sentimentos,

“Talos de erva, desbotados, eriçam-se contra o sol; folhas ressecadas rolam por terra com o chiado de uma procissão de bichos da seda. É a sazão outonal, em meio ao carnaval da efêmera duração. Inflama-se o rubor das rosas, a tez de sangue vivo das flores adquire maravilhosa cintilação de tísica.

Eu me sentia como o inseto agonizante, que o aniquilamento arrebata a esse universo prestes a adormecer. Presa de estranho terror, levantei-me e dei alguns passos rápidos na alameda. – Não! – gritei, apertando os punhos. – É preciso acabar com isso! – Tornei a sentar-me, retomei o lápis, resolvido a escrever o artigo.” (p. 26)


Mas os melhores artigos nascem não do esforço, mas da inspiração brutal que atual além da inanição indigna, como uma compensação febril, num desabafo não reprimido,

“Escrevo como um possesso, encho páginas e páginas, sem parar. As ideias desabam sobre mim tão depressa, continuam a afluir com tamanha abundância, que perco um monte de aspectos acessórios: não consigo fixa-los bastante rapidamente, embora trabalhe com todas as forças. A inspiração insiste em empurrar-me para adiante, estou inteiramente dominado pelo assunto, e escrevo cada palavra como se obedecesse a um ditado.” (p. 28)

Em busca da dignidade perdida o narrador se mostra orgulhoso, até arrogante, mas como uma forma de auto-defesa diante do mundo cruel. Ou seria a falta de comida a origem de sua inspiração devido a inquietação? Se ele fosse rico e bem nutrido teria as mesmas volições de escrita? “Visões e sonhos! Refleti que, se comesse agora, a cabeça voltaria a perturbar-se, a mesma febre se apoderaria de mim, e eu teria de lutar contra um mundo de fantasias loucas. Não tolerava alimento, não fora feito para isso; era uma idiossincrasia, uma coisa singular.” (p. 35)


 O mais importante para o protagonista de Fome é manter a dignidade e conservar a honestidade. Ele não é um aproveitador, ou crápula, por mais que seja marginal. Ele não visa prejudicar ou explorar, ele somente deseja ser reconhecido pelo povo – ou pelos editores de jornal – como um jovem de talento. “A consciência de minha honestidade subiu-me à cabeça, inundando-me com o sentimento grandioso de que eu era um caráter, um farol de extrema claridade em meio ao oceano lamacento dos homens, entre destroços flutuantes.” (p. 38)

Mas a miséria é medonha ao destruir corpo e mente, físico e moral, levando a ações mesquinhas e irracionais. Ele é um bom moço, mas começa a ser corrompido pela cidade,

“Agora, sentia tanta fome que os intestinos se enroscavam na barriga como serpentes, e em nenhuma parte estava escrito que arranjaria um pouco de comida antes do anoitecer.  À medida que as horas passavam, eu me via cada vez mais carcomido física e moralmente, e deixava-me levar à prática de ações cada vez menos honestas. [...]  Manchas de putrefação começavam a surgir em meu ser, mofos enegrecidos que se estendiam cada vez mais.” (p. 40)

Contudo, o narrador consegue ver um artigo publicado e sobrevive mais algumas semanas com um mínimo dinheiro no bolso.


Na Parte 2, depois de conseguir um dinheiro e sobreviver mais algumas semanas, o protagonista pensa em como prosseguir na ‘carreira’ de escritor, “No momento, não tinha qualquer pensamento triste; esquecera a miséria, pacificava-me a vista do porto, plácido e belo na semi-escuridão. Conforme o hábito, quis proporcionar-me um prazer, relendo o que acabara de escrever e que a meu cérebro enfermo se afigurava a melhor coisa que já fizera na vida.” (p.49)

Em tal estado de atordoamento que o narrador tece considerações em tom psicologista, observando a si mesmo, “Estendi as pernas no banco, virei-me para trás; assim, podia sentir, em sua plenitude, o bem-estar do desprendimento. Não pairava uma nuvem em minh’alma, nenhuma sensação de mal-estar; e por mais longe que fosse o pensamento, não me atormentava uma aspiração, um desejo insatisfeito. De olhos abertos, estendido, ausente de mim mesmo, num estado singular, sentia-me deliciosamente longe.” (p. 51)

Ambiências psicologistas que lembram trechos de Virginia Woolf e Clarice Lispector, que escreveriam tempos depois. Esta forma de olhar para si mesmo, e não apenas para o mundo ou a sociedade, afasta esta obra de Knut Hamsun de um Realismo (ou Naturalismo) em voga no fim do século 19. É precoce dizermos que já havia um Realismo psicológico, mas é claro o fenômeno de transição.

“A fome, cruel, dava-me vontade de sumir, de morrer; tornei-me sentimental e caí em pranto. Minha miséria nunca teria fim. Bruscamente, detive-me em plena rua, bati com o pé na calçada, e praguejei em voz alta.” (p. 52) Também “E a fome a roer-me por dentro; eu engolia saliva, na esperança de saciar-me, e parecia que dava resultado. Já durante semanas, antes desse jejum completo, alimentara-me muito pouco, e as forças tinham diminuído consideravelmente nos últimos tempos.” (p. 53)

O narrador se percebe enquanto ficcionista, mentiroso compulsivo, dono de uma verdade apenas psicológica, “Meus pensamentos flutuavam, dispersos; acudiam-me impulsos extravagantes, em dose maior que a conveniente. Inventei num segundo esse nome tão diferente do meu, e lancei-o sem premeditação. Mentira sem necessidade.” (p. 55)

É capaz de narrar estados alterados fisiologicamente causados pela inanição. Quando, por exemplo, ele se diz desabrigado e é recolhido a uma cela deveras escura no posto de guarda, onde tem quase uma epifania da condição humana – a incapacidade da linguagem em representar e transmitir o que sentimos, em suma, os limites da comunicação, quando, em delírio, imagina criar uma palavra nova,

“Despi-me. Não tinha sono, impossível dormir. Fiquei estendido um momento, olhando a escuridão, aquela treva sem fundo, espessa, maciça, que eu não podia conceber. O espírito era incapaz de captá-la. Estava escuro além de toda escureza, e a escuridão oprimia-me. [...] A escuridão tomara posse de meu pensamento, não me deixava um instante de repouso. Eu próprio não me estaria dissolvendo em trevas, não fazia um todo com elas?” (p. 56)

“Chegara à completa loucura da fome, sentia-me oco, sem sofrimento, já não detinha as rédeas da imaginação. Refletia calado, metido em mim. Mediante saltos extraordinários de raciocínio, procurei aprofundar o sentido da nova palavra.” (p. 57)


“Abri os olhos. Para que fechá-los, se não podia dormir? As mesmas trevas reinavam em torno, a mesma insondável e negra eternidade, contra a qual o espirito se revoltava, incapaz de assimilá-la. A que poderia compará-la? Fiz os mais desesperados esforços para achar uma palavra bastante negra a meu gosto, que designasse aquela escuridão; palavra tão pavorosamente negra que enegrecesse a boca, ao ser pronunciada.” (p. 58)

“Era um delírio feito de fraqueza e de esgotamento, porém não perdera a consciência. De repente, uma ideia varou-me o cérebro, a ideia de que enlouquecera.” (p. 59)


Em sua fome, o narrador sobrevive em momentos de delírio, quase loucura, “O espírito, desenfreado, fugiu de novo por estradas aventurosas. Eu continuava percebendo a incoerência de minhas palavras; não dizia uma só sem entendê-la e compreendê-la. Falei comigo: ‘Você já começa a divagar!’ Entretanto, não podia deixar de fazê-lo. Era como se estivesse deitado, sem dormir, conversando em imaginação. A cabeça estava leve, sem dor, inteiramente despreocupada; a alma, sem nuvens. Deixei-me ir à deriva, se a menor resistência.” (p. 62) e “Que é que não inventam as sensações, quando a gente tem fome? Sinto-me absorvido por essa música, dissolvido, tornado música; e fluo, sinto-me distintamente fluir, pairando alto sobre montanhas, dançando em zonas luminosas.” (p. 66)

O protagonista não apenas sofre com a miséria, mas pune a si mesmo como se fosse culpado. Torna-se um carrasco de si mesmo, como diz certo poema de Charles Baudelaire,

“Parei afinal, prestes a chorar de raiva pela impossibilidade de correr mais; o corpo todo tremia. Deixei-me cair num patamar. – Alto! – exclamei. E para me torturar bem, levantei-me e obriguei-me a continuar de pé, zombando de mim mesmo, compreendendo-me com o meu próprio esgotamento. Afinal, depois de bastante tempo, com um sinal de cabeça dei-me licença para ficar sentado, mas escolhi o lugar mais incômodo no patamar.” (p. 69)

O problema da consciência além das penúrias da miséria, “O quê: sua consciência? Nada de infantilidades, você é pobre demais para ter consciência. Está com fome, não é? [...] Bem, seu estado é assustador, você está em luta com as potências da treva; à noite, sustenta uma luta medonha contra enormes monstros silenciosos, um verdadeiro horror. Está sedento de leite e de vinho, e não os possui. Eis a que ponto você chegou.” (p. 70)


Pois o protagonista corre o dia todo em busca da sobrevivência – um centavo para um pão – e é tudo inútil : ele sabe que resta a opção de deitar-se e morrer, mas tem consciência – e dignidade – o suficiente para ainda persistir. Não quer descer ao nível do roubo ou da mendicância. Mas é inevitável. Ele sofre com as indignidades e ao se lembrar das indignidades. Prefere passar fome do que virar um marginal, um criminoso.

Mas a debilidade da fome é tanto física quanto mental, o sofrimento arrasa corpo e alma, joga ambos na desfiguração e degradação, e entende-se que é difícil aceitar tal estado como natural, “Tinha o ar de quê? É o diabo, a gente ir se deixando desfigurar, vivo, unicamente por obra da fome. Senti a cólera invadir-me uma vez mais; era a última chama, o último espasmo. [...] em plena cidade de Cristiânia, jejuava a ponto de perder a figura humana! Então isso tinha sentido, isso se harmonizava com a ordem natural das coisas?” (p. 74)

Depois de mendigar alguns centavos - e inutilmente ! - o narrador se recrimina, angustiado,

“Retirei-me, doente de fome, ardendo de vergonha. Não, era preciso acabar com isso! Tinha realmente ido longe demais. Mantivera-me durante tantos anos, conservara-me firme durante tantas horas cruéis, e eis que de repente caía na mendicância brutal. Um único dia degradara meu raciocínio, salpicara de impudor minh’alma.” (p. 77)

“Fizera tudo a meu alcance. ‘Um dia inteiro sem ter sorte uma única vez!’, dizia comigo. ‘Se contasse isso a qualquer pessoa, ninguém acreditaria; se escrevesse, diriam que tinha inventado. Não tivera sorte em nenhum lugar! Bolas, não havia nada a fazer; principalmente, que não tentasse mais inspirar piedade.” (pp. 77-78)

 No momento de maior penúria, o faminto protagonista recebe a ajuda providencial de um conhecido – aqui sequer nomeado. Consegue cinco coroas para sobreviver mais uma semana.


Na Parte 3, ainda na luta, o autor se esforça para escrever, e vender seus artigos para algum editor. É preciso escrever para poder comer, o desejo sempre adiado, a necessidade constante a roer o estômago, “Três ou quatro artigos em preparo saqueavam meu pobre cérebro, confiscando cada pensamento, cada faísca que nele brotava; e tudo parecia andar melhor do que antes.” Contudo “A última crise me afetara muito; começava a perder grandes mechas de cabelo; afligiam-me dores de cabeça, principalmente pela manhã, e o nervosismo não queria ceder.” (p. 83)

Quando se é benevolente com ele, o narrador não julga merecer, até se comove. E ao mesmo tempo nutre seu orgulho, não quer que tenham piedade dele. Ele se sente humilhado, quando mostram ter compaixão. Pois o narrador quer ser reconhecido e admirado por seu trabalho literário, por seus artigos bem escritos e não por ser alvo da piedade alheia.


Enquanto se esforça para escrever, o protagonista se vê as voltas com uma aventura amorosa. Uma certa moça, que ele abordara inconvenientemente algumas semanas antes, passa a esperar seu vulto, junto a um poste na rua. Ele se entrega ao impulso de curiosidade, quer saber quem é a moça, mas nem tem condições de se apresentar socialmente – está sem roupas adequadas, tem aparência abatida. Não pode mais resistir à fome, “Começara, porém, a enfraquecer sensivelmente, e já não podia, de modo algum, jejuar como antes; agora, bastava um dia para me dar vertigens, e se bebesse água desandava logo a vomitar.” (p. 86)

Ele passa fome, mas tem mais necessidade de escrever seus textos, assim mais importante que um pão seria um lápis ou toco de vela. A escrita deverá atrair reconhecimentos – e rendas. Ele escreve não apenas pelo dinheiro, mas para demonstrar seu talento, e ser admirado. Contudo, a fome é o obstáculo, “E eu não tenho duas coroas. Que desolação, que miséria inigualável, ser indigente a esse ponto! Que humilhação, que desonra!” (p. 87)

O protagonista precisa se sentir superior – pois é um intelectual ! – para se manter digno na miséria, para não mergulhar na inferioridade e na subserviência. Mas com as mulheres é ele ainda um ‘desarranjado’, não consegue se impor, sente-se miserável e assim nem uma prostituta ele consegue.  Ele anda e anda pelas ruas da cidade, em delírios de fome, a criar situações imaginativas, ora é um jornalista que gastou tudo numa farra, ora um religioso que tece sermões para as ‘decaídas’, “Que alegria, perambular assim, fazendo boas ações! [...] Sentia-me com ânimo absolutamente radioso, bem-disposto, cheio de coragem – acontecesse o que acontecesse. Só me faltava uma vela; se conseguisse, poderia terminar o artigo...” (p. 89)

Mas o ato de escrever é cada vez mais difícil, o esforço é sempre maior, as palavras não correspondem às ideias, os argumentos se embaralham, a miséria implode as abstrações. O mundo é um fato concreto: a carência. Com o estômago vazio é mesmo impossível filosofar! “o homem é aquilo que come”, já escrevera o pensador alemão Feuerbach. “Com grande dificuldade consegui alinhavar algumas frases curtas, duas dezenas de pobres palavras, arrancadas Deus como, para avançar de qualquer jeito. E parei; a cabeça era um vazio, não podia mais.” (p. 91)

Então o narrador se angustia, em torpor, com auto-piedade e aguda consciência do próprio drama. Ele escreve tempos depois do vivenciado, mas resta uma amargura, com certa auto-ironia. Como pode uma mente tão alerta se deixar abater tanto? Ele luta o tempo todo contra a indignidade, mas eis uma oportunidade para se valer de um mal-entendido, de um troco equivocado. Não pensa duas vezes, tal o torpor, tal o desespero. “A primeira desonestidade verdadeira fora cometida; o primeiro furto, diante do qual todos os anteriores nada significavam; a primeira pequena ... grande queda. Basta! Não havia meio de voltar atrás.” (p. 94)

Ele tenta comer, mas é inútil, pois de tão debilitado ele não consegue nem digerir o alimento. Não há como aplacar a fome! “Isso me exasperou; tornei a subir a rua, chorando, amaldiçoando os espíritos cruéis, não importava quais fossem, que assim me perseguiam; condenei-os à danação eterna e infernal, como castigo de tanta baixeza.” (p. 95)

 Ainda curioso com a moça sob a luz do poste, o moço esquece a fome e aborda a senhorita. É a mesma moça que ele abordara semanas antes, em plena rua, por inconveniência. Ele não sabe o nome da jovem, e sua mente mitomaníaca cria o sonoro nome Ilaiáli. No mais, ele idealiza mais do que vivencia. E idealiza porque não pode vivenciar. Não tem dinheiro, nem status, nem roupas, nem aparência digna.

Por outro lado, a moça não percebe o quão miserável é o estado do nosso narrador. Ela se sente atraída para ele, por seu modo diferente, ousado, mas antes imagina que ele seja um bêbado do que um faminto com ares extravagantes. Quanto a ele, tudo bem, ele aceita o interesse dela, mas está distante de poder corresponder ao que ela espera – sequer tem um capital extra para divertir-se ou tomar um drinque num lugar decente. Assim ele precisa revelar que é pobre, quase miserável – e assim arriscar-se a perder a interessante senhorita.

Ele se esforça para agradar, mas somente ele sabe o esforço que faz, que personagem precisa interpretar, ele um moço sem qualquer posse ou posição social – como poderá acompanhar uma senhorita decente pelas ruas, ao anoitecer, sem criar suspeitas? Mas ele precisa dela, da atenção dela, para se reerguer...

“Caminhando a contemplá-la, sentia-me cada vez mais corajoso; ela me estimulava, me atraía para si, a cada palavra de sua boca. Por um momento esqueci minha miséria, minha baixeza, toda a existência lamentável; o sangue corria-me, ardente, pelo corpo, como antes da decadência.” (p. 100)

“Mas, ao chegar à porta, minha miséria toda desabou novamente sobre mim. Também, como não perder a coragem quando alguém se vê assim esmagado pela vida? Ali estava eu diante daquela moça, roto, vestido pela metade, desfigurado pela fome, sem tomar banho: era de afundar pela terra adentro.” (p. 101)

Meio ao enlevo amoroso, o protagonista se vê obcecado pelo engodo do troco na mercearia. Ele sequer pagara a vela, mas recebera um troco indevido. Mas ele precisa provar a sua honestidade. É pobre, mas não vai se apropriar de bens alheios... “De qualquer modo, porém, aquele dinheiro me pesava um pouco no bolso, não me deixava em paz. Investigando bem no fundo de mim, descobri, claro como água, que antes era mais feliz, quando sofria com toda a honestidade.” (p. 103)

Ele se desfaz das moedas, entrega a uma velha vendedora ambulante, sem dizer palavra.

“Que gosto admirável, o de sentir-me novamente homem de bem! Os bolsos vazios já não me pesavam, era uma delícia encontrar-me outra vez a nenhum. Refletindo bem, esse dinheiro, no fundo, me enchera de preocupações secretas, eu realmente me arrepiava ao pensar nele; não era uma alma endurecida, pois minha natureza honesta se indignara profundamente com aquela ação vil.” (p. 103)

O narrador pode ser pobre, miserável, faminto, mas sua conduta ética é de base kantiana – faz o que deve ser feito, e espera ser imitado – segue seu imperativo categórico de dignidade humana. O que não evita que ele zombe de transeuntes ou confunda um cocheiro com uma viagem inútil de um lado a outro da cidade. Sente-se em delírio, em exaltação, quase embriagado, em ‘loucas imaginações’ – mas tudo consciente. “A loucura lavrava em meu espírito; deixei que lavrasse, com plena consciência de estar submetido a forças que não poderia dominar.” (p. 106) e “Sentia-me tão profundamente desgostoso e fatigado por toda essa vida miserável, que já não me parecia valer a pena lutar em sua defesa. A má sorte vencera, e fora demasiado rude: eu era apenas uma extraordinária ruína.” (p. 107)

E ele segue a perambular, sem ideias, sem esperanças, com nojo de si mesmo. Acaba por confessar o engodo, o troco indevido, da noite anterior, apenas para deixar perplexo o atendente da mercearia. E volta a perambular para casa, apenas para se acusar de arrogância e se sentir culpado com a barriga vazia. Só resta passar mais fome e se torturar.  Em febre, em delírio, ele se lembra de – e idealiza – sua Ilaiáli.

Após a febre – “não tinha consciência nítida do que acontecera, olhava espantado em volta; transformara-se completamente minha maneira de ser; já não me reconhecia a mim mesmo.” (p. 109) – ele segue com fome medonha, a ponto de roer osso descarnado, até se cansar de vaguear, enraivecido contra a providência que o martiriza, no fundo de sua miséria, ao ponto de tornar-se um ser insensível, até se salvar com uma ajuda derradeira de um possível editor – ou autoridade pública.

Com o dinheiro, ele se abriga num hospedaria para viajantes, e lembra-se então de um encontro marcado com a senhorita Ilaiáli. Mas é inútil insistir num enlace amoroso – eles estão separados pela miséria dele. Faminto, neurótico, megalomaníaco, orgulhoso, com cabelos a cair, em suma, desprezível ele se revela diante dos olhos dela. Pior que um estudante farrista, um excêntrico bêbado, ele se mostra o que é – um autor pobre, miserável. Ele revela toda a verdade, gasta sua ‘verborragia literária’, é rude, cínico, terrivelmente sincero – e perde a senhorita de seus sonhos e pesadelos. Ela é encantadora, logo ele não pode aceitar que ela se rebaixasse à pobreza dele.

É uma alma delicada, sensível, mas severamente atormentada pela miséria. O único ganho é sua capacidade de observação, descrição, análise, “o fato é que a pobreza aguçara em mim certas faculdades, a ponto de causar-me profundos dissabores, sim, posso lhe garantir, profundos dissabores – ai de mim! Por outro lado, isso tem suas vantagens: até me ajuda, em certas situações. O pobre inteligente é um observador bem mais fino que o rico inteligente. O pobre olha em redor, a cada passo; examina, desconfiado, cada palavra das pessoas que vai encontrando; cada passo que ele próprio dá impõe a seu espírito e a seu coração uma tarefa, um dever. Tem ouvido fino, é impressionável, experiente, leva queimaduras na alma...” (pp. 124-25)



O narrador, na parte 4 do romance, consegue manter-se um tempo na hospedaria, onde pelo menos um desjejum básico é oferecido. Mas nem sempre tem inspiração para seus textos. Mal consegue ter um pouco de concentração, fazer um cálculo aritmético simples. Mas sua capacidade de observação continua aguçada. E tem consciência da própria presença de espírito – descarta a loucura.

“Havia muitos dias que retomara o trabalho, sem conseguir escrever nada que me satisfizesse; não tinha sombra de inspiração, sem embargo de aplicar-me e de tentar a todo instante. Em vão atacava um assunto qualquer: nada saía certo, a sorte voara.” (p. 129)

“Afinal, acabaria percebendo o estado de fraqueza a que chegara, e a que ponto o cérebro embotado era incapaz de qualquer esforço.” (p. 130)

“O cérebro falhara. Tornara-me assim um tão completo idiota, a ponto de ser incapaz de calcular o valor de um pedacinho de queijo adubado? Por outro lado, seria possível que houvesse perdido a inteligência, quando podia fazer a mim mesmo tais perguntas?” (p. 132)


“Do que observava, eu nada perdia, nem mesmo um aspecto insignificante. Minha atenção era vigilante ao extremo. Respirava delicadamente cada pequenina coisa, e me representava intelectualmente cada circunstância, à medida que ela transcorria. Assim era impossível que minha razão estivesse perturbada. De resto, como poderia ficar perturbada, agora?” (p. 134)

“Ri nervosamente de minhas próprias brincadeiras, achando-as engraçadíssimas. Não tinha mesmo nada de maluco, estava perfeitamente são de espírito.” (p. 134)

Ele ainda tenta escrever, mas é sempre interrompido, pelas crianças que brincam e brigam no pátio, pela presença da dona da hospedaria, pelas dores físicas e morais da existência em penúria. Após tentativas infrutíferas, o narrador resolve sair em andanças pelas ruas, onde ele encontra conhecidos, além de ver, por acaso, a senhorita Ilaiáli (nome dado por ele) em companhia de um famigerado sedutor de donzelas. Percebe que tudo o que via na mocinha era fruto de sua própria imaginação exaltada. Era mais uma moça do povo que será enganada por outro moço com segundas intenções. A vida é assim mesmo. Uns vencem, muitos perdem.

Ele vive de favor na hospedaria, e tenta escrever. Mas há todo um drama familiar indiferente ao talento frustrado do jovem autor pobre. Tudo serve para distrair a atenção do autor, assim nunca consegue terminar seus textos, sempre incompletos e fracassados. A amargura somente cresce – ele sabe que nunca conseguirá pagar suas dívidas. O drama familiar ao redor do narrador é bem mais angustiante do que o drama medieval barroco que ele tem em mente. A realidade é sempre mais cruel que a idealização. Onde ele poderá se abrigar?

“Olhei para a porta, não com propósito de ir embora, de modo algum. Veio-me uma ideia audaciosa. Se a porta estivesse com chave, eu a trancaria e ficaríamos todos presos lá dentro; assim, não seria obrigado a sair. Acometera-me um pavor absolutamente histérico de me ver outra vez no olho da rua. Mas não havia chave na porta, e levantei-me. Sem nenhuma esperança.” (p. 145)

Expulso da hospedaria, novamente as andanças desvairadas sem rumo pela cidade. Atenção em tudo para não sentir a fome. (Em A Náusea, de Sartre, temos Roquetin que anda e vagueia pela cidade para conseguir afastar de si o espectro da ‘náusea’, sua angústia existencial. E em Angústia, de Ramos, o protagonista perambula para se livrar das frustrações amorosas e vivenciais) “A fome voltava a roer-me com ferocidade, e era necessário dar um jeito o mais depressa possível. Com esse pensamento, dormi no banco.” (p. 146)

Ele ainda se esforça para escrever, mas o mundo ao redor é incremente, é indiferente. E nunca há uma condição propícia para a concentração exigida pela escrita. Como compor um drama sobre vultos medievais no meio de uma cidade grande com gritos de cocheiros, olhares de guardas, cusparadas de mendigos? O mundo moderno destrói qualquer tentativa de resgate histórico. Temos o cidadão tentando fugir da cidade, mesmo mergulhado em seu tumulto. “Ah, se arranjasse um lugar onde esconder-me... Refletia nisso, parado bem no meio da rua; a questão é que não conhecia na cidade um único lugar sossegado onde me instalasse por momentos.” (pp. 146-47)

Não há lugar sossegado na cidade: todos lutam e se combatem e se entrechocam. Querem um lugar ao sol, querem subir ao pódio! Seduções, traições amorosas, violências físicas e morais, latrocínios, crimes passionais, tudo se confunde e se complementa. Uma insensível selva urbana é o que temos diante dos olhos. “Era impossível continuar. Por fim, tudo começou a girar na cabeça; parecia-me que tudo o que havia escrito não prestava para nada, que aquela ideia era absurda e perigosa.” (pp. 148-49) Mas um momento de sossego possibilita um encadeamento de ideias, até serem novamente interrompidas por presenças do mundo real – a senhoria que reclama dívidas, que vem mesmo expulsar.

“Tudo correu admiravelmente durante alguns minutos. Réplicas e mais réplicas surgiam prontas, num trabalho incessante. Enchia página sobre página, a galope. Soltei como que um doce vagido, no êxtase da inspiração, inconsciente. O único som que chegava até mim era esse vagido de alegria. Nisto, veio-me uma ideia felicíssima: introduzir em certa passagem do drama o repicar de um sino. Ia tudo às mil maravilhas.” (p. 149)

Expulso, o protagonista teme morrer nas ruas, lugar indiferente aos seus sofrimentos. A miséria traz um sofrimento físico que se torna um sofrimento moral quando o faminto toma consciência de sua indignidade num mundo onde as posses definem o ser. Ser despossuído é ser expulso e excluído – não há meio termo. Ou se torna um corruptível como todos os que ‘vencem na vida’ ou deixa-se a cair na sarjeta.

Ao lembrar que a bela mocinha de semanas antes, e da piedade que ela sente, ao enviar-lhe anonimamente uma cédula – prontamente atirada à face da senhoria que o expulsava – o narrador sente que está no fundo de sua miséria. Tornou-se um mendigo, a viver de favores e da caridade alheia. Finalmente desiste da composição do drama medieval – constata a impossibilidade de fugir do moderno, da vida moderna e da fome na cidade – onde morrer diante da indiferença geral. Mais um derrubado pela vida de competições e desigualdades.

Mesmo quando ele atua com desprendimento, não recebe igual paga, não há reciprocidade, afinal ele não passa de um miserável – não é visto como um cidadão, mas um pedinte que vem incomodar. Se um dia ele entregou moedas a uma velha vendedora, dias depois ela nem o reconhece, não concorda em matar a fome daquele pedinte. Inutilmente ele tenta aplacar a fome – deve abrir mão de seu talento, de seus escritos e assumir nova carreira. Que tal embarcar no próximo navio que sai do porto? Empregar-se como um auxiliar de bordo seria uma forma de matar a fome. A escrita? Ora, a escrita não satisfaz jamais a fome.



Fonte: HAMSUN, Knut. Fome. (Sult) Tradução de Carlos Drummond de Andrade. Círculo do Livro.


fev/mar/13


Leonardo de Magalhaens





mais info sobre ‘Fome







Hunger – on-line – Project Gutenberg



Filme Hunger / Sult (1966)
baseado no romance





domingo, 17 de março de 2013

sobre NOTAS DO SUBSOLO - de F. Dostoiévski





Sobre “Notas do Subsolo” (ou Memórias do Subterrâneo”,
ou “Memórias do Subsolo”)
(original : Zapiski iz pòdpol'ja)(1865)
de Fiódor Dostoiévski (1821-1881)


O drama da consciência na corrosiva ironia da auto-observação


Conhecido por seus mergulhos nos dramas que revelam profundezas psicológicas, no que se convencionou chamar psicologismo, o autor russo F. Dostoiévski é um homem de sua época, marcada por contradições, entre avanços e recuos, querendo democracia, liberalismo e socialismo (ideias do Ocidente) numa terra de absolutismo czarista. Contraditório, o autor flertou com os esquerdistas, que depois julgaria terroristas, e dedicou sua fé ao cristianismo ortodoxo, ao culto dos santos – não aqueles do catolicismo, ao qual o autor considera apóstata e corrupta.

Ao trocar o socialismo pelo cristianismo ortodoxo, a reforma social pela conversa pessoal, o autor russo voltou-se para a auto-observação, a introspecção, em busca dos labirintos mentais que guiam o comportamento humano, contraditório e egoísta, profano e sagrado. Esta análise do humano em si mesmo, da falta que leva ao desejo de transcendência, religação com um Ser Supremo, uma Providência Divina, que dê algum Sentido ao existir. Assim as razões de estar-aqui e agora num mundo de ânsias e sofrimentos que leva ao filosofar como vimos em Pascal, Kierkegaard e Tolstoi. Para muitos o que foi, no século 20, chamado Existencialismo teve então início.

Um existencialismo ainda envolto em brumas religiosas, ainda demasiadamente platonista, sem o toque ateu e materialista de um Sartre, de um Camus, de um Cioran. Mas um pensamento que já se mostrava crítico e ácido, quando o autor russo se volta contra os racionalismos, o positivismo, o arrivismo hipócrita do mundo europeu pós-ascensão da burguesia. Um mundo ocidental invejado e desejado pela inteligência russa, mas, para Dostoiévski, enquanto eslavófilo, a solução está na religiosidade ortodoxa russa – não exatamente clerical, mas enquanto devoção pessoal. Ao contrário, para os existencialistas posteriores, importa superar os subterfúgios, as tradições, e as superstições, e encontrar um sentido para viver, pois tal razão de ser não existe a priori, transcendental. É possível que sequer exista algum Sentido.

Mas para sabermos o que fazemos aqui e agora é preciso um olhar atento primeiramente para si mesmo, nas sombrias profundezas das próprias motivações, uma lente introspectiva que levaria ao método psicanalítico freudiano, que postula um ser profundo dentre de cada um – pois somos Egos submetidos a um Id primitivo e inconsciente que nos governa. Não é o racional que nos guia, mas uma irracionalidade que pode até se voltar contra nós. Somos médicos e monstros –como evitar que o lado Hyde destrua nosso lado Jekyll?

Em Notas do Subsolo , desde a parte 1Subsolo - temos um narrador e protagonista, que não se nomeia, mas se permite confissões, que se declara um ser doentio, “Sou um homem doente... Sou mau.” (p. 11), que não teve sucesso na vida, que vive em limitações e frustrações incontornáveis, percebendo em si uma amargura que envenena sua mísera existência, afundada em dor e consciência. Se ele fosse um tolo, um arruinado qualquer, jamais teceria as considerações que podemos ler neste relato.

Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado.(p. 13)(trad. Maria Aparecida B. P. Soares)

O amargurado narrador tem interlocutores imaginários, confessa-se diante de alguém,  ou muitos, que ele desconhece, que simbolizam uma espécie de consciência reflexiva, quando ele responde as questões de antemão, prevendo assim o que os outros julgarão – como um SuperEgo atento ao Id, no freudismo. Antes será uma consciência a se exibir,

Aposto que os senhores estão pensando que estou escrevendo tudo isso por gabolice, para fazer graça às custas dos homens de ação, e estão pensando ainda que, num gracejo de péssimo gosto, faço tinir meu sabre, como o meu oficial. Mas, senhores, quem pode se gabar de suas próprias doenças e ainda usá-las para fazer pilhéria?

Aliás, que estou dizendo? É isso que todos fazem: vangloriar-se de suas doenças, e faço-o, talvez, mais do que todo mundo. Não vamos discutir; minha objeção é absurda. Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não a consciência em alto grau é uma doença, como também o é qualquer consciência.(p. 15)


Assim, o narrador ao tentar o tempo todo se explicar, justificar perante os 'interlocutores', que parecem mais uns juízes rancorosos. Sofre de um prazer mórbido de se explicar, se retalhar em público, a expor sentimentos, ao ser um voyeur de si mesmo, um exibicionista do desespero, Sou, por exemplo, uma pessoa com um amor próprio exagerado. Sou desconfiado e ressentido, [...].(p. 17) Um caso de modéstia pouca: o protagonista se julga mais inteligente (não só mais intelectual) que os medíocres, aqueles arrivistas hipócritas e funcionários submissos,

Sou culpado, em primeiro lugar, porque sou mais inteligente do que todos os que me rodeiam. (Sempre me considerei mais inteligente do que todos os que me rodeiam e, às vezespodem crer? - até disso me envergonhava. Pelo menos, toda a vida eu andei olhando para o lado e nunca conseguia olhar diretamente nos olhos das pessoas.)(p. 17)

Finalmente , até se eu não quisesse ser de maneira alguma generoso e, ao contrário, desejasse me vingar do meu ofensor, eu não conseguiria me vingar de nada e de ninguém, porque provavelmente não me decidiria a fazer o que quer que fosse, mesmo se pudesse.(p. 18)

            O homem que pensa, que rumina, de 'consciência amplificada', não apreciaantes desprezao homem 'normal', que age diretamente, sem meditações e hesitações. Enquanto o homem consciente nutre seus rancores, cabisbaixo, envergonhado por ser diferente, e é incapaz de atingir os outros, que seguem suas vidas indiferentes. É incapaz de se vingar, poisem todas as suas tentativas de vingar-se, ele mesmo vai sofrer cem vezes mais do que aquele que pretende atingir, e este provavelmente nem se coçará.(p. 20)

            O narrador diz não se importar com as opiniõese os julgamentosalheios, mas constantemente se explica, se justifica, como se diante de uma autoridade. Afinal, ao narrar ele pressupõe um leitor, ou leitores, que poderão concordar ou não com o que é dito / escrito. Ele insiste em desabafos, confissões de suas mesquinharias.

É nesses gemidos que se expressa o prazer do sofredor; se ele não sentisse prazer com isso, não gemeria. Este é um bom exemplo, senhores, vou desenvolvê-lo. Nesses gemidos se expressa, em primeiro lugar, toda a inutilidade de sua dor, humilhante para a nossa consciência; toda a legitimidade das leis da natureza, de que os senhores, certamente, podem fazer pouco caso,  mas em consequência da qual os senhores sofrem, ao passo que ela não.(p. 23)

Para o homem do subsolo o fato de ter consciência é estar desligado de seu próprio solo e povo, é um homem que foi atingido pelo desenvolvimento e pela civilização europeia, um homem 'que renegou seu solo e as raízes populares'e que não merece mais respeito,por acaso um homem com consciência pode ter algum respeito próprio?(p. 25), poisserá possível que um homem possa ter um mínimo de respeito próprio depois de ter tentado buscar prazer até mesmo no sentimento da própria humilhação?

Por que então se humilhar? Por que permitir que o lado monstro se revele?Os senhores perguntarão: para que eu me mutilava e me torturava dessa maneira? Resposta: porque era muito chato ficar sentado de braços cruzados, e então entregava-me a essas extravagâncias. É a pura verdade.(p. 25) e “No fundo, a pessoa não acredita que está sofrendo, quer fazer uma pilhéria sobre o assunto, mas, apesar disso, eu sofria, e era um sofrimento verdadeiro, real; sentia ciúmes, ficava fora de mim... E tudo isso  por tédio, senhores, tudo por tédio; fui esmagado pela inércia.(p. 26)

Para não ficar na indolência de um Oblomov, o personagem inativo e entediado (o símbolo do homem inútil, supérfluo, o nobre acomodado oposto ao burguês empreendedor)  do célebre romance (1859) de Ivan Gonchorov, o Homem do subsolo procura inventar suas angústias e humilhações para 'agitar' sua vida subterrânea, indiferente.

Assim, ao estilo Oblomov, moroso, cheio de dúvidas, o narrador-protagonista aqui sente-se incapaz de agir,Pois, para se começar a agir, é preciso que antes se esteja completamente calmo e totalmente livre de dúvidas. E como eu, por exemplo, me tranquilizaria? Onde estão os meus motivos originais, nos quais me apoiaria? Onde estão os fundamentos? De onde vou tirá-los?(p. 26) e Mas tente abraçar com paixão e cegamente o seu sentimento, sem reflexão, sem buscar o motivo original, afastando a consciência pelo menos temporariamente; sinta ódio ou amor, nem que seja para não ficar sentado de braços cruzados. No mais tardar, depois de amanhã você começará a sentir desprezo por si mesmo, por ter-se enganado conscientemente.(p. 27)


mais sobre o romance 'Oblomov'




Realmente um prolixo falante, este homem do subsolo, que tenta se explica, legitimar seu egotismo, sua auto-observação doentia! Uma fala que é inútil, num transbordar de auto-recriminação e ironia com os intelectuais! Trata-se de um homem que não age em prol dos próprios interesses, mas contra si-mesmo, se prejudica como um masoquista. O homem culto, instruído, até literato, sabe tudo o que deve fazer, e como fazer, mas no momento de agirdevido a forças obscuras? - fará tudo ao contrário, como se dando um tiro no pé! Será o instinto de autodestruição diagnosticado pela psicanálise de Freud? O impulso para causar auto-dano, ao agir contras as 'leis da razão'. Mas, de fato, o quanto somos racionais?

É a civilização que domestica o ser humano instintivo? Estamos ficando mais pacíficos? Quantas guerras explodem a cada dia! Quanta miséria e violência! (E quando Dostoiévski escreveu sua obra não acontecera ainda as Guerras Mundiais, então as referências aqui são as guerras coloniais, a Guerra de Secessão e as guerras de unificação da Alemanha),

Em que a civilização nos está abrandando? A civilização desenvolve no homem apenas uma diversidade de sensações... e nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessas sensações, é bem possível que o homem acabe por descobrir no derramamento de sangue um certo prazer. Isso aconteceu. notaram que os sanguinários mais refinados quase sempre têm sido os cavalheiros mais civilizados, aos pés dos quais não chegam todos os Átilas e Stenkas Rázin? E que, se eles não chamam muita atenção, como Átila e Stenka Rázin, é justamente porque são muito comuns e frequentes e nos acostumamos a eles? Pelo menos se pode dizer que, se o homem não se tornou mais sanguinário com a civilização, tornou-se, com certeza, um sanguinário pior, mais hediondo.(p. 33)


            Assim, por mais que se tente atingir a paz, ou o controle, mais complexo, violento e incontrolável se encontra o indivíduo em sociedade, pois é impossível criar um sistema social perfeito se o homem não é perfeito, mas longe disso, é sempre ignorante e ingrato. E mais: o homem é um ser caprichoso, não teimoso. Quer fazer o que não se deve fazer. Se é proibido fumar, beber, fornicar a mulher do próximo: então é justamente o que o homem quer fazer: fumar, beber, fornicar a mulher alheia. O indivíduo se guia mais por vontadesnão exatamente deledo que pela racionalidade, que pretende explicar tudo,

Bem, quando tudo isso estiver explicado e exposto numericamente no papel (o que é perfeitamente possível, porque é indigno e sem sentido crer antecipadamente que haja leis da natureza que o homem nunca descobrirá), então , evidentemente, não existirão as chamadas vontades. Pois, se a vontade um dia coincidir completamente com a razão, nós iremos raciocinar e não querer, propriamente, porque é impossível , por exemplo, conservando a razão, desejar coisas sem sentido, indo, desse modo, conscientemente contra a razão e desejando algo que nos prejudique...(p. 37)

            Para se sentir livre, o ser humano tem o desejo de errar, de se extraviar, a preferir uma vida desregrada, sem rumos. Pois uma vida regulada, prevista, controlada, sem desvios, parece ser opressiva: o prazer nasce do erro e do pecado. Daí inventar leis apenas para poder transgredi-las! Toda a filosofia do Homem do subsolo (que vive quatro décadas no mundo da indiferença!) se resume em defender sua vontade de ser livre para se prejudicar! Ou ele é guiado por convenções e normas ou ele é dono do próprio nariz, ainda que seja um fracasso!E, mesmo que a nossa vida pareça às vezes bem ruinzinha do ponto de vista acima, ela é vida, apesar de tudo, e não apenas a extração de uma raiz quadrada.(p. 38)

            Será o homem do subsolo um intrigante irracionalista? Mas estará ele, paradoxalmente, usando lógica contra a racionalidade? É isso mesmo? Pois entre a vontade e a razão, ele prefere a primeira, o risco do desejar sem as amarras da previsão e controle. Ele afirma sem hesitações que o ser humano é ingrato e caprichosoe que servir à razão é servir apenas a uma parte mínima de si mesmo. Ou seja, antecipa aquilo que disse Freud em sua psicanálise: o lado racional é uma ponta de um iceberg da psiquê, mas inclinada ao inconsciente, ao delírio, ao sonho e ao fantástico.

Será possível explicar e regular o comportamento humano? Aqui toda uma crítica ao cientificismo, ao behaviorismo, que prevê uma 'domesticação' dos instintos em prol de uma civilização regulada, onde o ser humano se encaixa na sociedade como uma engrenagem na máquina. Os indivíduos preferem o fantástico ao racional, a ponto de se prejudicarem, em teimosias sem qualquer propósito além do capricho. Vários trechos repetem tal argumentação até a exaustão,

Se os senhores disserem que tudo isso também pode ser calculado pela tabelao caos, a treva, a maldição, de modo que a mera possibilidade de cálculo prévio pare tudo e a razão triunfe -, então nesse caso o homem ficará propositalmente louco, para ficar privado da razão e defender sua opinião!(p. 42)

Admito: o homem é, acima de tudo, um animal que constrói, condenado a buscar conscientemente um objetivo e exercer a arte da engenharia, ou seja, a abrir caminho para si mesmo incessante e eternamente, não importando aonde esse caminho o leve. Mas eis que, vez opor outra, ele tem vontade de se desviar para um lado, talvez precisamente porque ele esteja condenado a abrir esse caminho, e também talvez porque, por mais idiota que geralmente seja o homem direto, de ação, às vezes ele pensa que aquele caminho, na realidade, quase sempre leva não importa aonde, o mais importante não é para onde ele leva, e sim que ele continue a levar, (...)(p. 43)


“O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas por que ele também ama com paixão a destruição e o caos? Digam-me, por favor!” (p. 44)

“Mas o homem é um ser inconstante e pouco honesto e, talvez, à semelhança do jogador de xadrez, goste apenas do processo de procurar atingir um objetivo, e não do objetivo em si.” (p. 44)

“Ele [o ser humano] ama o processo de conseguir, mas atingir mesmo, nem tanto, e isso, claro está, é terrivelmente engraçado. Em uma palavra, o homem é constituído de modo cômico; em tudo isso, pelo visto, há um jogo de palavras. Mas dois e dois são quatro é, de qualquer modo, uma coisa extremamente insuportável. Dois e dois são quatro, na minha opinião, é pura insolência.” (p. 45)


O ser humano só deseja vantagens? Ou deseja também o infortúnio? Deseja o mundo imprevisível ao mesmo tempo em que fala em formas de controle? É possível mesmo uma sociedade onde todos ganhem igualmente?

“E por que os senhores estão assim tão firme e solenemente convencidos de que apenas o que é normal e positivo, ou seja, o bem-estar, é vantajoso para o homem? A razão não estará cometendo um erro quanto às vantagens? Quem sabe o homem ame não apenas o bem-estar? Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o sofrimento é para ele tão vantajoso quanto o bem-estar? O homem, às vezes, ama o sofrimento de maneira terrível, apaixonada; isto é um fato.” (p. 45)

Por que sofremos sabemos que sofremos. Sabendo adquirimos um fenômeno de auto-observação, numa forma reflexiva, assim a consciência, visto que “O sofrimento é a única causa da consciência. E, embora eu tenha declarado no início que, na minha opinião, a consciência é a maior infelicidade para o homem, eu sei que o homem ama a consciência e não a trocará por satisfação alguma. A consciência, por exemplo, é infinitamente superior ao dois mais dois.” (p. 46)

Será que o humano é isto mesmo: a preferência pelo irracional? Mesmo que seja em prejuízo de si mesmo? Preferir os desejos mesquinhos ao brilho da razão? Mas que razão? Que lógica defende o narrador? Não é ele uma contradição? “Juro aos senhores que não acredito em uma palavra sequer de tudo o que rabisquei até aqui! Ou melhor, eu acredito, talvez, mas, ao mesmo tempo, não sei por que, sinto e desconfio que estou mentindo desbragadamente.” (p. 49) E o que os 'interlocutores' diriam? Como compreendem (ou não) o contraditório narrador? Como o narrador imagina o que os 'outros' pensam sobre ele?

“O senhor diz absurdos e fica contente com eles; diz coisas insolentes, mas está o tempo todo com medo por causa delas e pede desculpas. O senhor afirma não ter medo de nada e, ao mesmo, busca nossa aprovação. O senhor afirma que range os dentes e, ao mesmo tempo, fica fazendo graça para nos divertir. O senhor sabe que seus gracejos não são nada espirituosos, mas, ao que parece, está muito satisfeito com a sua qualidade literária. Talvez o senhor tenha sofrido realmente algumas vezes, mas o senhor não respeita nem um pouco o próprio sofrimento.” (p. 49)

O narrador inventa o que diz os interlocutores, e elabora comentários metalinguísticos: “Claro está que essas palavras dos senhores fui eu mesmo que acabei de inventar. Elas também vieram o subsolo. Durante quarenta anos seguidos fiquei escutando pela fresta as palavras que os senhores diziam. Eu mesmo as inventei, pois somente isso era possível inventar.” e “Mas será possível, será possível que os senhores sejam tão crédulos e imaginem que eu vá imprimir tudo isso e ainda lhes dar para ler? E eis ainda uma questão que preciso resolver: para que, na verdade, eu os chamo de 'senhores', para que dirijo-me aos senhores, como se de fato estivesse dirigindo-me a leitores? Confissões, como as que tenho a intenção de começar a narrar, não se publicam nem se dão a outros para que leiam.” (p. 50)

São possíveis as confissões? “É possível alguém ser inteiramente sincero consigo mesmo e não temer toda a verdade? A propósito, Heine afirma que é quase impossível existirem autobiografias sinceras, porque na certa o ser humano mentirá, falando de si mesmo. Na opinião dele, por exemplo, Rousseau sem dúvida mentiu sobre si mesmo em suas Confissões e fez isso até deliberadamente, por vaidade.” E também “No meu caso, escrevo só para mim, e declaro de uma vez por todas que, se escrevo como se me dirigisse a leitores, é unicamente por exibicionismo, e porque desse modo me é mais fácil escrever. Isso é apenas forma, uma forma vazia, eu nunca terei leitores. Já havia declarado isso...” (p. 51) Nunca terá leitores? então por que foi publicado? Como nós, leitores, viemos a ter acesso a semelhante texto? Foi furtado do autor? Foi contrabandeado?

Ele tenta explicar para quem escreve. Se é que escreve para alguém. “No meu caso, escrevo só para mim, e declaro de uma vez por todas que, se escrevo como se me dirigisse a leitores, é unicamente por exibicionismo, e porque desse modo me é mais fácil escrever. Isso é apenas forma, uma forma vazia, eu nunca terei leitores. Já havia declarado isso ...” (p. 51) e defende o direito de se expressar livremente, num fluxo (quase a la surrealistas...),  “Não quero que nada me cerceie na redação de minhas notas. Não vou estabelecer ordem nem sistema. Escreverei tudo o que me vier à memória.” (p. 51)

No mais, escrever é algo mais solene. “Há, neste caso, toda uma psicologia. Talvez, inclusive, eu seja simplesmente covarde. Pode ser também que eu imagine de propósito um público na minha frente para me comportar mais decentemente enquanto escrevo.” (p. 52) e “O papel inspira respeito, serei mais exigente comigo mesmo, o estilo lucrará. Além disso, escrevendo, talvez eu sinta de fato alívio. Neste momento, por exemplo, uma recordação antiquíssima me oprime.” (p. 52) e “Finalmente: sinto-me entediado, pois fico o tempo todo sem fazer nada. O ato de anotar é, de certo modo, um trabalho. dizem que o homem se torna bom e honesto com o trabalho.” (p. 52)


Na parte 2 (A propósito da neve úmida) a voz narrativa volta ao passado, lembra-se da juventude – diferente, por exemplo, de Roquetin, em A Náusea, que narra ao mesmo tempo em que vivencia, ao manter uma forma de diário. “Naquela época eu tinha vinte e quatro anos. Já então minha vida era sombria e desordenada, eu era solitário como um bicho do mato. Não tinha amizades, até mesmo evitava falar com as pessoas, e cada vez me enfurnava mais no meu canto.” (p. 54)

Um ser solitário que é visto como diferente, excêntrico. Por isso ainda mais se amargura. “Às vezes eu me perguntava: por que será que, além de mim, ninguém tem essa impressão de ser olhado com repulsa?” (p. 54) Ou não é um caso de auto-insatisfação? “Está inteiramente claro para mim agora que, devido à minha desmensurada vaidade e, consequentemente, à tremenda exigência para comigo mesmo, eu me olhava com uma insatisfação furiosa que chegava às raias da aversão e, com isso, mentalmente transferia aos outros essa maneira de me ver.” p. 54


“Um homem honrado e evoluído não pode ser vaidoso sem possuir uma exigência infinita para consigo mesmo e sem, em certos momentos, se desprezar até o ponto de se odiar. Mas, seja desprezando o outro, seja julgando-me inferior, eu baixava os olhos diante de quase todas as pessoas com quem cruzava. Cheguei a fazer experiências para ver se aguentaria o olhar de alguém sobre mim. Sempre era eu o primeiro a baixar os olhos. Isso me torturava a ponto de me deixar furioso.” (p. 55)

E o narrador não é nem um pouco contente consigo mesmo, além de desprezar as pessoas de seu tempo. “Mas não era apenas questão de parecer: de fato, eu era um covarde e um escravo. Digo isso sem nenhum constrangimento. Todo homem honesto neste nosso tempo é e deve ser um covarde e um escravo. Essa é a sua condição normal.” (p. 55)

E ele vive a julgar a si mesmo: “sem mais nem menos, começava uma fase de ceticismo e indiferença (comigo tudo acontecia em fases), e eu mesmo começava a rir de minha intolerância e minhas aversões e censurava a mim mesmo pelo meu romantismo.” (p.56)

Mas o romantismo russo é diferente daquele alemão ou francês, que vivem em ‘altas esferas’. Sobre o estilo eslavo o narrador esclarece ter as características de “compreender tudo, ver tudo e, frequentemente, enxergar muito mais claramente do que as nossas inteligências mais positivas; não se resignar diante de nada ou de ninguém, mas, ao mesmo tempo, nada menosprezar, tudo contornar, ceder a tudo, comportar-se com todos de maneira política; nunca perder de vista um objetivo prático, útil (como algum apartamentinho do governo, uma pensãozinha, uma condecoraçãozinha), e ter em mira esse objetivo em todo entusiasmo e em todos os volumezinhos de versinhos líricos e, ao mesmo tempo, conservar incólume em si o ‘belo e sublime’, até o túmulo, e, a propósito, conservar a si mesmo embrulhado em algodão, como uma joiazinha, nem que seja, por exemplo, em prol do mesmo ‘belo e sublime’.” pp. 57-58

O caráter contraditório dos ‘românticos’, os idealistas, “Já um número incalculável de românticos ascende aos cargos mais elevados. Que versatilidade fora do comum eles têm! E que talento para sensações as mais contraditórias!” [p. 58] E a honestidade dos ‘canalhas’, “É, senhores, somente entre nós o mais rematado canalha pode ser inteiramente honesto de alma, e isso até mesmo de maneira sublime, sem, por isso, deixar de ser um canalha um pouquinho que seja.” (p. 59)

O narrador é daqueles que se refugiam na leitura, na evasão, “E a leitura era para mim a única fonte possível de impressões exteriores. A leitura, é claro, me ajudava muito: emocionava, deliciava e torturava. Mas de vez em quando ela me entediava terrivelmente.” (p. 59) Assim como se sente culpado ao dar livre curso aos prazeres, “Eu saía para a libertinagem à noite, secretamente, com medo e com sensação de sujeira, sentindo uma vergonha que não me abandonava nem nos instantes mais repugnantes, como uma maldição. Já então eu trazia na alma o meu subsolo.” (p. 60)

O narrador é vaidoso e quer ser reconhecido, se indigna quando é tratado de modo indiferente. Quer impor sua presença e ser respeitado, nem que seja por meio de uma briga – entre cavalheiros. Mas é simplesmente ‘tratado como uma mosca’. Preferia ter se batido em duelo, para provar que tem dignidade, que não é um covarde. Esta necessidade de se afirmar diante dos outros causa uma dependência psicológica para manter a auto-estima. Quando não é reconhecido, o ‘homem do subsolo’ se impõe inconveniente, a ponto de humilhar-se.

O narrador é mais culto e vaidoso que os frequentadores de tavernas, e se sente intimidade não por covardia, mas por amor-próprio. Romântico, ele que proteger seu ‘ponto de honra’. Mas apenas consegue ser ignorado. É obsessivo a tal ponto que quando se sente humilhado, ele passa a seguir e até pesquisar a vida de quem o ofendeu. Ou então transforma a obsessão em forma literária – tal qual a narrativa que faz agora. Escreve uma novela onde o ofensor é descrito de forma caricatural, ironizado sem piedade. É essa sua forma de vingança. Pobre literato!

Ao mesmo tempo em que deseja desafiar o ofensor para um duelo, o narrador espera a amizade do outro, como uma forma de reconhecimento. O outro tem status, mas o narrador tem erudição literária. Mas o narrador quer é se impor – marcar sua presença no mundo, deixar o anonimato. E o mais importante é não ceder passagem – os outros que desviem! Ele é o culto, o inteligente, o narrador que é o umbigo do mundo. Afinal, só temos a perspectiva dele.

         Andar nas ruas já é uma forma de acatar hierarquias. Um oficial se desvia para um general passar, mas quando é um civil, o oficial simplesmente atropela. A posição social determina até o uso das calçadas! Caminhar na principal avenida de São Petersburgo é uma forma de medir o status social – desfilar e esperar que as pessoas subalternas se desviem. Andar e ter prioridade sobre o uso da calçada - isto é privilégio! A forma de se vingar é não se desviar... mas terá tal ousadia? Afinal, deve estar apresentável, sociável, para ser visto como igual. O ofensor só aceitará o desafio de alguém de mesmo status. Um cavalheiro jamais se ofenderá com a audácia de um plebeu.


É tecendo todo um plano que o narrador resolve não se desviar na calçada. Faz planos e sofre – como um obsessivo. E finalmente entra em ação – o outro vem, o narrado não se desvie – ombro contra ombro – mesmo que sofrendo maior abalo, o ‘homem do subsolo’ sente ter se comportado como alguém digno, e mais: agindo como alguém da mesma classe social. Entenda-se: o direito de não ser pisado.

Enquanto idealista, o narrador se idealiza, imagina-se um herói. Vive dentro de sonhos para evitar os choques da realidade. Não aceita ser um medíocre : ou é um herói ou um salafrário. “Ou herói ou a lama, não havia meio-termo.” (p. 69) Um herói pode até cair na lama, mas não se suja inteiramente. Em seus devaneios o narrado ora despreza o mundo, ora espera aplausos. E tudo isso é confessado.

“Os senhores dirão que é vulgar e indigno expor tudo isso em praça pública, depois de tantos arrebatamentos e lágrimas que eu mesmo confessei. Por que seria indigno? Será possível que os senhores pensem que eu me envergonho de tudo isso e que tudo isso era mais idiota do que qualquer episódio de suas próprias vidas?” (p. 71)

O homem do subsolo vive em seu canto em reclusão e de repente precisa cultivar certa sociabilidade, encontrar alguns funcionários e literatos. É o ‘desejo de abraçar a humanidade’ como ele mesmo diz. Adentra as reuniões e saraus, mui modestamente, é pouco percebido, é solenemente ignorado. Imagina-se ignorado por ser um sujeito sem sucesso na vida. E as pessoas só bajulam aquelas com status e renda superiores. O mais baixo se inclina diante do mais alto. Os grupos sociais se organizam hierarquicamente: uns mandam, outros obedecem. Principalmente, o exército e a burocracia. [Tanto que na Rússia pós-revolução as segmentações continuaram, pois havia o Partido e o povo, havia o Exército Vermelho e os civis; formulários e condecorações não foram abolidos.]

Sempre há os superiores, aqueles de sucesso, ou que assim se consideram, e o narrador detesta prestar vassalagem a estes privilegiados, enquanto a maior parte da sociedade é subalterna e submissa. É um homem culto, um literato, mas fará parte da intelligentsia? É letrado, mas não passa de um funcionário ordinário. (O mesmo drama de um certo amanuense Belmiro, de obra homônima de Cyro dos Anjos) O que o homem do subsolo sente em relação aos superiores é uma mescla de aversão e admiração, uma certa inveja, um ressentimento, por ele mesmo não ser uma excelência.

As cenas de sociedade são descritas apenas para que o narrador possa ‘verter seu fel’, contra os de sucesso e os que pretendem, contra os medíocres e os aduladores. Mas, ao mesmo tempo, quer ser olhado com respeito por estes mesmos que ele despreza. Colegas de escola, funcionários, servidores, oficiais, pessoas com as quais o convívio é social, não pessoal, muito menos íntimo. No mais, o homem do subsolo não hesita em se prejudicar – não usa os contatos para subir na sociedade, antes cria inimizades, aumenta as exclusões. Ele é o maior inimigo de si mesmo.

Se sentindo diferente e por isso rejeitado, o narrador relembra suas agruras na infância, na escola, as zombarias, as portas fechadas, os cinismos dos arrivistas, o esforço para estudar, a inveja dos iletrados. Ele tenta fazer amigos, mas é sempre possessivo e ciumento, e quer tiranizar o amigo, e quando este se submete, ele o despreza. Assim ele vive somente atento ao amor-próprio, que oscila a cada olhar de indiferença ou desprezo. Os contatos com os outros não é como idealizado, não se encaixa nas expectativas. Na realidade existe pouco daquela literatura que ele cultiva. Os diálogos são banais e simplórios, as pessoas são superficiais.

Por mais que se sinta excluído, o homem do subsolo não quer ser incluído, pois despreza as reuniões sociais, recheadas de hipocrisia e subserviência. E, se ele resolve participar de algum evento social, acaba por se prejudicar – ao não ser conveniente, não seguir as regras da etiqueta. E é assim não porque ele seja o mais estúpido, mas por ter um excesso de consciência – ele percebe as piruetas do circo social. Percebe-se atuando, usando uma máscara, e rebaixando-se ao nível dos hipócritas e arrivistas. Para se dar bem entre os hipócritas basta ser outro medíocre, fazer parte do grupo. Justamente o que é impossível para o homem do subsolo.

Ele obsessivamente tenta explicar, justificar todas as ações e méritos, todas as ousadias e fracassos, como hesita diante dos superiores, como evita os inferiores, como prejudica os próprios interesses, como fecha as portas ao seu avanço. “’Ó Senhor, será para mim esta sociedade?’, pensava eu. ‘E como fiz papel de bobo na frente deles! Os imbecis acham que me fizeram uma grande honra ao conceder-me um lugar na sua mesa, mas não entendem que sou eu que estou fazendo uma grande honra a eles, e não o contrário!” (pp. 89-90) Pois o ressentimento guia o homem do subsolo, “Não estava habituado, fiquei logo embriagado e, com isso, cresceu ainda mais meu ressentimento. De repente me deu vontade de ofender a todos da maneira mais insolente e depois ir embora. Aproveitar o momento propício e mostrar meu valor – ele que digam depois: apesar de ridículo, ele é inteligente... e ... e... ora, ao diabo com eles!” (p. 90)

Ele adentra reuniões de sociedade e não hesita em dizer algumas verdades, se justificar, implorar por atenção, e logo será caluniado e ofendido, quando não punido e jogado ao limbo dos sinceros inconvenientes. O narrador quer se enturmar, mas do jeito dele, nas regras dele. Despreza os arrivistas, mas quer ser admirado por eles e fazer parte da festa. Ele se expõe ao ridículo, ao vexame da humilhação pública, doentios impulsos ao desprezo, “Era impossível humilhar-me de maneira mais vergonhosa e voluntária.” (p. 94) De nada impor a própria ‘cultura e erudição’ aos outros, que se movem por seus próprios interesses. Febrilmente, ele se prejudica, ele se mortifica. Para Freud, seria um ego torturado pelo id e vigiado pelo superego.

Pior de tudo é que os outros são indiferentes a ele : sequer podem se sentir ofendidos por ele! É pior do que ser cuspido em público.  Ele se autotortura e está consciente disso. Tem uma terrível consciência de tudo ao redor: um olhar de observação aos detalhes. (Assim é o narrador de Fome, assim são Roquetin em A Náusea e Luís da Silva em Angústia. Todos vítimas de uma atenção obsessiva.) “O problema é que naquele exato instante eu percebia, de maneira mais clara e viva do que qualquer outra pessoa no mundo, todo o torpe absurdo de minhas suposições e todo o reverso da medalha, mas...” (p. 99)

Tudo o que o desatina é a não-admiração alheia. Daí exibir seus desespero, “Vejam todos até que ponto podem levar um homem desesperado!” (p. 99), para se legitimar diante dos outros. É todo um jogo ambivalente: desprezo aos outros, mas são estes mesmos outros cujos olhares sustentam sua identidade. Ele está disposto a tudo para ser aceito – mesmo quando ironiza tal aceitação: afinal conviver com desprezíveis não se tornar também desprezível? Mas não é pior quando até os desprezíveis o desprezam? Para ele é a vergonha suprema.

No mais, ele sente um prazer mórbido em se sujeitar, em se resignar, em aceitar o destino. Sua miséria está traçada e não há que se possa fazer. Sente que está perdido, que segue para a ruina, e, mesmo consciente, ele continua rumo ao desastre. Sua sorte é que os ofendidos nem se lembram de qualquer ofensa. Mas ele precisa se vingar de alguém – nem que seja contra uma pobre prostituta. Ele jaz no que considera depravação – física e moral – num quarto ao lado de uma profissional do sexo e não pode deixar de tecer suas ruminações.

Junto da pobre prostituta – figura que aparecerá em outros romances do autor russo, por exemplo a Sonia de Crime e Castigo e a cocote Nastácia de O Idiota – o homem do subsolo começa suas inquirições e lições, a destilar suas leituras e indigestões. Ele veio de um subsolo e se encontra no subsolo de outro alguém, mas mesmo assim só sabe julgar o subsolo alheio. A jovem é obrigada a se prostituir devido a sua miséria – assim acontecera com a Fantini de Os Miseráveis, de Victor Hugo – e o narrador só sabe julgá-la como se fosse a real culpada por tal degradação..

Virei-me com repugnância; já não estava argumentando com frieza. Começava a sentir o que dizia e me exaltava. Estava ansioso para discorrer sobre as minhas ideiazinhas secretas que cultivara no meu canto. Algo em mim se inflamou: ‘surgira’ um objetivo.” (p. 108) Aqui o objetivo é a conversão da jovem prostituta no melhor estilo ‘vá e não peques mais’ moralista cristão. Vender o próprio corpo é como ‘vender a alma ao diabo’. Toda a atenção dada à prostituta é uma forma de criar um julgamento rigoroso. É humilhante e causa ainda mais angústia. E para ela é como se o homem estivesse lendo um livro : ele fala tal um livro : é meramente discursivo.

Ele alerta a prostituta sobre o ‘caminho da perdição’ mas tudo faz para que ela se sinta ainda mais miserável. Por alguns momentos, ele sabe que, se ela não fosse tal degradada, até se apaixonaria por ela. É o mesmo drama do assassino e da prostituta em Crime e Castigo, quando Raskolnikov e Sonia leem a Bíblia no quarto sórdido. Como poderá ele amar uma mulher que perdeu toda a ‘pureza’? quando vale o amor para ela? Ou sobrou algo além do sexo ? Alguns rublos e a consciência pesada?

“Eu me tornara tão patético que quase me deu um espasmo na garganta e... De repente parei, ergui o tronco assustado e, inclinando amedrontado a cabeça, pus-me a escutar, com o coração disparado. Algo perturbador estava de fato acontecendo.

Já bem antes eu havia pressentido que estava revolvendo toda a sua alma e partindo o seu coração e, quanto mais eu me certificava disso, mais queria atingir esse objetivo o mais rápida e poderosamente possível. Foi o jogo, o jogo que me estimulou; aliás, não foi apenas o jogo...” (p. 119)


Ele sabe que é ‘artificial e livresco’ mas continua a pregar moral contra a jovem ‘degradada’. A jovem que se debate em convulsões de desespero. Depois, ele tenta acalmá-la, mas, em pânico, só pensa em ir embora. Então ela quer provar que não é tão ‘decaída’, até recebe cartas de amor, sim, de um estudante, que desconhece a ‘profissão’ da amada. Para a jovem, em tal condição, em tamanho desespero e vergonha, aquela carta era um ‘tesouro’, como bem sabe o narrador, apesar de todo o seu sentimentalismo e cinismo. Para abafar sua consciência – e a angústia que esta causa - ele perambula pelas ruas.

“Era especialmente ao anoitecer que eu gostava de passear por essas ruas, justamente quando é mais densa a multidão de transeuntes de todos os tipos, gente do comércio e artesãos, com rostos preocupados e irritados, que voltam para casa depois de um dia de trabalho. eu gostava exatamente dessa agitação barata, dessa coisa descaradamente prosaica. Mas, dessa vez, todo esse empurra-empurra das ruas me fez ficar ainda mais nervoso. Não conseguia me controlar nem encontrar uma explicação. No meu íntimo algo crescia, crescia sem parar, dolorosamente, e não queria sossegar. Voltei para casa num péssimo estado de espírito. Era como se um crime me pesasse na alma.” (p. 125)

Crime que depois será real, duplamente real, no destino de Raskolnikov, que culpado vem a preparar o próprio castigo. Os crimes do homem do subsolo são de natureza livresca, isto é, nascem de sua vontade de romantizar, de impressionar, de passar por herói e aceitar duelos, de salvar mocinhas dos antros de perdição, de julgar moralmente os hipócritas. Ele imagina cenas de romance – a arrependida prostituta a se jogar aos seus pés, considerando-o o nobre salvador. Ele a desposar uma mulher salva da degradação!

Além dos problemas na sociedade – repartição, colegas, vizinhos – o homem do subsolo sofria com seu criado, orgulhoso e pedante, que sabia pagar ressentimento com mais ressentimento. Um verdadeiro caso de ‘morando com o inimigo’, com a relação patrão-empregado tensionada por desconfiança e desprezo mútuo. Um atraso de pagamento de salário é motivo para recriminações e insultos. Quando a jovem prostituta vem em visita ao homem do subsolo mais cenas de pobreza e humilhação – para todos! – se seguem. Todo o rancor do narrador explode numa crise nervosa. Ele deseja a mulher ao mesmo tempo em que a despreza – está assim em constante ambiguidade e dissonância moral. “O principal mártir era evidentemente eu mesmo, porque estava plenamente consciente de toda a baixeza asquerosa daquela minha raiva estúpida, e ao mesmo tempo não conseguia absolutamente me dominar.” (p. 138)

Em seu subsolo o homem não hesita em humilhar e ironizar ainda mais a jovem indefesa. Se ele simulou ser compassivo e sentimental, foi para melhor humilhá-la. “Fui humilhado, então também quis humilhar; fui pisado como se fosse um trapo e quis demonstrar o meu poder...” (p. 139) ele desabafa. E a jovem é moral e fisicamente abatida – como ‘derrubada por um golpe de machado’, a prever o crime de Raskolnikov (em obra publicada um ano depois, 1866) – e pode perceber que há gente pior do que ela.

Ele se disfarça de herói , mas detesta os ‘humilhados e ofendidos’ e despreza a realidade. Ao confessar, ele não pode deixar de se detestar por justamente confessar! “E estas coisas que estou confessando a você agora, também nunca lhe perdoarei por elas!” (p. 140) Tudo porque ele vive afastado da vida real – idealiza para sobreviver. E a mulher percebe a maior miséria do narrador: “ela percebeu que eu era infeliz.” E ela acaba por abraçá-lo e ambos choram quase até a histeria – uma cena de subsolo. Com toda a ambivalência : “como eu a odiava e me sentia atraído por ela naquele instante! Um sentimento reforçava o outro.” (p. 143)

O narrador se declara incapaz de amar – isto é, se solidarizar – pois somente sabe dominar, ou desejar o domínio. Para ele, no subsolo, a vida é luta, a aproximação do outro é uma conquista. Mas, para a jovem ‘decaída’, o amor é uma forma de ‘ressurreição’, ao encontrar um amante, um marido, e deixar o comércio sexual. Com seu cinismo, ele apenas a humilha mais. Mas até esta crueldade é livresca, é inventada!  Ele sabe que é egoísta e pouco respeitoso – ele sabe e não pode mudar. O drama da consciência ‘corrosiva e dolorosa’ a ampliar o sofrimento: a vida de penúrias e ressentimentos aumenta a introspecção (como veremos em Fome e Pergunte ao Pó). “E de fato agora eu mesmo estou colocando uma questão ociosa: é melhor uma felicidade barata ou um sofrimento elevado? Então, o que é melhor?” (p. 147)


Ele lembra que tudo é narrado a partir de lembranças, então vitimado por uma memória obsessiva (no século 20 temos os memorialistas Proust e Nava, com suas memórias excepcionais) ao se punir com tal confissão – “pelo menos fiquei envergonhado durante todo o tempo que levei para escrever esta narrativa: consequentemente, isto já não é literatura, e sim um castigo correcional.” (p. 147) E enquanto castigo, vem corrigir ao narrador e aos leitores, no que estes se identificam com aquele, a teimosia de continuar tecendo as teias que prejudicam não somente aos outros, mas principalmente a si mesmo.

Assim, ele, o homem em seu subsolo, sabe que é um anti-herói, um anti-exemplo, um perverso livresco que merece ficar mesmo nos livros. Ele sabe, sabe até demais. E se justifica a cada linha de confissão – precisa existir diante do(s) imaginado(s) interlocutor(es) / leitor(es), para  ser admirado e odiado. É um ‘paradoxista’ perdido em ambivalências – detesta o leitor ao mesmo tempo em que precisa do leitor, em que somente existirá ao surgir nos olhares do leitor. Permanecerá anônimo como se espera de um vulto nas sombras, demasiadamente consciente de sua condição de homem do subsolo.



fonte: DOSTOIÉVSKI, Fiódor . Notas do Subsolo. Trad. Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.





dez/12 & mar/13



Leonardo de Magalhaens




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