terça-feira, 27 de setembro de 2011

sobre OLIVER TWIST - de Charles Dickens








Sobre “Oliver Twist” (1838 )
do escritor inglês Charles Dickens (1812-1870)


Testemunho literário da criança órfã

Ao retratar as condições da exploração e da miséria no país pioneiro da industrialização – a Inglaterra pós-Revolução Industrial de meados do século 18 –, ao apresentar o estado de tantos cidadãos privados da real cidadania, enquanto alguns privilegiados reservam para si os ganhos da nova expansão econômica, o autor inglês Charles Dickens dá voz a uma denúncia na obra literária onde o protagonista é uma criança.


Nesta obra “Oliver Twist” - nome do protagonista – há um interesse de desvelar as condições de miséria, numa obra em folhetins que visa além das vicissitudes do pobre menino órfão, figura central numa obra onde se evidencia o desejo de retratar a realidade da desigualdade social – após a Revolução Industrial de meados do século 18, na Inglaterra e na França. Os pobres são seres excluídos das benesses do novo mundo comercial – e apenas podem recorrer ao paternalismo das instituições públicas.


Ao mostrar em forma literária estes lados sombrios da industrialização, Dickens se projeta enquanto escritor além da própria época, pois é notado enquanto testemunho, não apenas para os contemporâneos, mas até para os historiadores. Como foi a época dita Vitoriana na Inglaterra? Como se expandia o Império Britânico? Como as condições sociais se apresentavam nas distintas classes em relação aos ganhos e perdas do industrialismo?


O autor Dickens é testemunha de uma época de mudanças, com a França napoleônica derrotada, com o reacionarismo na Europa central – com os governos austríacos e russo firmes no poder centralizador -, com o atraso econômico das futuras Itália e Alemanha, ainda em processo de unificação, somente completado no ano da morte do escritor inglês. No sentido de autor-testemunha temos outros 'Dickens'. Assim, o Charles Dickens da França seria Victor-Hugo, enquanto o da Rússia seria Dostoiévski. Autores que não hesitam em mostrar os lados pouco gloriosos de suas sociedades.


Especificamente, o tema de “Oliver Twist” é o da orfandade, o do desamparo de uma criança num sistema injusto. Se o mundo já é cruel para os adultos, então imagine para as crianças!


Não faltam outros órfãos na literatura da Era vitoriana, vide o caso de David Copperfield, protagonista de romance do mesmo Dickens, e de Jane Eyre da escritora Charlotte Brontë do romance homônimo publicado em 1847. Na França temos o Gavroche, no romance “Les Misérables” de Victor-Hugo. A questão dos 'meninos de rua' (na Inglaterra, 'street child'; na França, 'gamin';) já era visível no século 19. No século 20, a triste condição das crianças abandonadas se fez visível no Brasil – basta lermos “Capitães da Areia”, 1935, de Jorge Amado.


Meus artigos sobre “Os Miseráveis
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/05/sobre-os-miseraveis-de-victor-hugo-1.html
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/06/continua-o-ensaio-sobre-os-miseraveis.html

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mais info sobre “Jane Eyre
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jane_Eyre
movie 2011 trailer
http://www.youtube.com/watch?v=C8J6Cjn06kA

movie 1996
http://www.youtube.com/watch?v=MsB3pTdg3RM


Mais sobre os órfãos na literatura da Era Vitoriana
http://www.victorianweb.org/genre/childlit/childhood4.html
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No formato folhetim – em publicação seriada, descontínua, não em livro, mas jornal – ajuda a criar um clima de suspense, pois o narrador interrompe a ação muitas vez num ápice, num aparente beco-sem-saída, onde o protagonista está nas mãos do(s) antagonista(s). Assim o leitor é 'fisgado' para acompanhar o desenrolar do enredo no próximo capítulo – na próxima edição do jornal. Assim cada capítulo apresenta uma súmula dos acontecimentos, para excitar a curiosidade dos leitores. (Assim faziam também um Cervantes, em seu extenso “Dom Quixote”, no século 17; Defoe e Swift, no século 18, com suas respectivas obras “Robinson Crusoé” e “Viagens de Gulliver”)

Vejam meus ensaios sobre estas obras em:

http://leoliteratura.zip.net/arch2008-09-28_2008-10-04.html

http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/01/sobre-robinson-crusoe-de-d-defoe.html

http://leoleituraescrita.blogspot.com/2009/09/as-viagens-de-gulliver-swift-parte1.html


O narrador de Oliver Twist se simpatiza evidentemente com o protagonista, o pobre órfão Oliver, e não hesita em caricaturas ao ironizar os antagonistas – os gentlemen, um tanto quanto obesos, que fazem caridade, os protetores de órfãos (Protetores? Como assim? Parecem mais uns carcereiros...) As contradições do sistema social são todas desmascaradas. A presença da riqueza (sugada das colônias ao redor do mundo) ao lado da miséria mais vergonhosa. Contradições. A bondade precisa da miséria? É preciso haver pobres para que os ricos possam exercer a piedosa caridade?


Conhecemos as 'workhouses' inglesas, os abrigos para os pobres e miseráveis, uma amostra do paternalismo dos Estado burguês em relação aos pobres. Uma forma de conter a miséria? Ou de isolar e controlar os pobre? Podemos ver análises mais profundas na leitura que o francês Michel Foucault faz dos asilos, hospícios, orfanatos e prisões enquanto benevolências estatais que visam 'vigiar e punir'.

O livro de Foucault chama-se justamente “Vigiar e Punir”, “Surveiller et Punir”, publicado em 1975

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vigiar_e_punir


Vários cidadãos se aproveitam da miséria alheia. O limpa-chaminés emprega crianças num trabalho insalubre e perigoso (ver outros casos na Europa, principalmente norte da Itália e Suíça, onde as crianças faziam o trabalho sujo, e morriam entaladas nas chaminés ou com câncer nos pulmões...) com a conveniente (para os exploradores...) aprovação dos ditos filantropos, além das autoridades.



É um drama real. Existem dois poemas do poeta William Blake que testemunham a presença miserável dos limpador-de-chaminés, “The Chimney-Sweep”, vejam o links. Blake fazia uma denúncia da modernidade industrial que condenava tantos a uma vida de misérias, enquanto alguns fidalgos lucravam.
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The Chimney Sweep
http://www.online-literature.com/blake/628/
http://en.wikisource.org/wiki/The_Chimney_Sweeper_(Blake,_1794)
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As descrições longas e complexas transmitem as imagens da London sombria, aquela mesma do fog noturno, com médicos e monstros, a London dos bairros miseráveis no país pioneiro do industrialismo. Seria justamente em London que o exilado Karl Marx ( 1818- 1883) escreveria a obra O Capital (“Das Kapital”, 1867), denunciando as explorações que moviam a acumulação capitalista.


Daí o assistencialismo para aliviar as agruras do capitalismo nascente, causador do êxodo rural para as grandes cidades, onde os camponeses são mão-de-obra barata para as indústrias em criação, ou então tripulação para os navios mercantes que percorrem o mundo na formação do Império Britânico (século 16 ao 20).


Foram assim as trágicas condições do êxodo rural, com a consequente exploração da mão-de-obra, que se repetiram na Alemanha e na Rússia no final do século 19 e no Brasil no início do século 20.


meu ensaio sobre “O Médico e o Monstro
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/03/sobre-o-medico-e-o-monstro-dr-jekyll-mr.html

filme 1990
http://www.youtube.com/watch?v=ENrdQ2gStYU&feature=related

o trailer do filme “Sweeny Todd” (2007)
http://www.youtube.com/watch?v=L_hgrfZVlJA


Além do contexto, da época, da denúncia, temos o fenômeno da linguagem, da narrativa, do modus operandis da obra. Há uma linguagem prosaica e coloquial em Charles Dickens (assim como encontramos antes em outro clássico: Victor Hugo) quando apresenta aspectos do mundo que não eram interessantes aos círculos literários.


Assim como Victor Hugo, na obra “Os Miseráveis”, ao usar os termos de baixo calão e gírias de bandidos – a ponto de causar escândalo entre os literatos conservadores – , também Dickens usa gírias de criminosos e de miseráveis do subúrbio em suas obras, com destaque para “Oliver Twist”, onde o desejo de retratar a realidade da desigualdade social precisa se aliar a um registro das culturas à margem do mundo letrado e literário.


Nas citações de trechos do livro de Dickens (com tradução by LdeM) as fontes são a edição “Oliver Twist”, 1966, da Penguin Books e o arquivo da Wikisource.

O tom irônico do narrador é amargurado quando cita as condições de precariedade da infância de Oliver, vítima, cativo numa casa para pobres. Subnutrido, reprimido, sujeito a todo tipo de humilhação. A alimentação precária cria crianças doentias, anêmicas, apáticas. Nada de bom sairá deste assistencialismo para inglês ver.

“Não pode se esperar que este sistema de cultivo produzisse algum tipo de safra extraordinária ou esbelta. O nono aniversário de Oliver Twist encontrou-o na condição de criança pálida e franzina, diminuto em tamanho, e decididamente pequeno em dimensão. Mas a natureza ou a herança implantou no coração de Oliver um bom ânimo robusto. E tivesse tido pleno espaço para se expandir, graças à dieta disponível do estabelecimento; e talvez à esta circunstância seja atribuída o fato de ele ter afinal um nono aniversário.”
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“It cannot be expected that this system of farming would produce any very extraordinary or luxuriant crop. Oliver Twist's ninth birthday found him a pale thin child, somewhat diminutive in stature, and decidedly small in circumference. But nature or inheritance had implanted a good sturdy spirit in Oliver's breast. It had had plenty of room to expand, thanks to the spare diet of the establishment; and perhaps to this circumstance may be attributed his having any ninth birth-day at all.” (p. 49, cap. 2)


Sabemos o quanto Oliver sofreu no orfanato (aqui, workhouse, termo intraduzível, por ser típico do contexto britânico), onde vivera toda a infância, e agora seria 'negociado' como aprendiz para algum explorador de mão de obra infantil. Ao deixar seu 'lar', onde tanto sofreu, ele ainda chora.


“Esta não foi grande consolo para a criança. Jovem como ele era, de qualquer modo, ele tinha senso suficiente para fazer um dissimular de sentimento a continuar em grande mágoa. Não era questão difícil para o menino ter lágrimas nos olhos. Fome e mal-tratos são bons ajudantes quando se quer chorar; e realmente Oliver chorava mui naturalmente. A Sra. Mann dava-lhe mil abraços, e o que Oliver preferia mais, um pedaço de pão com manteiga, menos ele pareceria tão faminto quando ele fôra para a workhouse. Com uma fatia de pão na mão, e o pequeno gorro paroquial de tecido marrom sobre a cabeça, Oliver foi então levado pelo Sr. Bumble do lar miserável onde nem uma palavra ou olhar gentil jamais iluminou o tom sombrio de sua infância. E ainda ele irrompia numa agonia de mágoa infantil, quando o portão da cabana fechou-se atrás dele. Miserável tal qual os pequenos companheiros de miséria que ele deixava para trás, eles foram os únicos amigos que ele conhecera; e um senso de sua solidão no grande mundo, imergiu em seu peito infantil pela primeira vez.”
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This was no very great consolation to the child. Young as he was, however, he had sense enough to make a feint of feeling great regret at going away. It was no very difficult matter for the boy to call tears into his eyes. Hunger and recent ill-usage are great assistants if you want to cry; and Oliver cried very naturally indeed. Mrs. Mann gave him a thousand embraces, and what Oliver wanted a great deal more, a piece of bread and butter, less he should seem too hungry when he got to the workhouse. With the slice of bread in his hand, and the little brown-cloth parish cap on his head, Oliver was then led away by Mr. Bumble from the wretched home where one kind word or look had never lighted the gloom of his infant years. And yet he burst into an agony of childish grief, as the cottage-gate closed after him. Wretched as were the little companions in misery he was leaving behind, they were the only friends he had ever known; and a sense of his loneliness in the great wide world, sank into the child's heart for the first time.” pp. 52-53, cap. 2


Temos descrições detalhadas da cidade, capital britânica, numa época que supomos de prosperidade – no ápice do Império Britânico, a Era Vitoriana – mas que não é tão próspera assim para todos. Somente alguns lucram com o imperialismo. Lembramos das descrições de Paris na prosa de Victor Hugo e na poesia de Baudelaire. As cidades grandes enquanto lugares pouco convidativos, enquanto espaços desiguais, onde a miséria é a contraparte do luxo.


“Eles andaram, por algum tempo, através da parte mais tumultuada e densamente povoada da cidade; e então, avançando por uma ruela mais suja e miserável do que qualquer outra na qual passaram, pararam para procurar a casa que era objeto da procura. As casas de um lado ou outro eram altas e largas, mas muito antigas, e ocupadas por pessoas da classe mais pobre: como a aparência negligente deles teria sido suficientemente notada, sem o concorrente testemunho permitido pelos esquálidos olhares dos poucos homens e mulheres que, com braços inclinados e corpos meio dobrados, ocasionalmente a se esconderem. A grande maioria dos blocos de casas tinham lojas na frente; mas estas eram logo fechadas, e decaíam; apenas os cômodos superiores eram habitados. Algumas casas que ficaram inseguras devido a idade e decadência, eram prevenidas de caírem na rua, por imensos vigas de madeira apoiadas contra as paredes, e firmemente plantada na rua; mas mesmo estes antros loucos pareciam ter sido selecionados como os abrigos noturnos de alguns miseráveis sem-casa, pois muitas tábuas rudes que substituíam o lugar de porta e janela, eram arrancadas de seus lugares, para permitir uma abertura suficiente para a passagem de um corpo humano. O canil estava imundo. Os muitos ratos, que aqui e ali jaziam putrefatos em sua podridão, estavam horrendos com fome.”
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“They walked on, for some time, through the most crowded and densely inhabited part of the town; and then, striking down a narrow street more dirty and miserable than any they had yet passed through, paused to look for the house which was the object of their search. The houses on either side were high and large, but very old, and tenanted by people of the poorest class: as their neglected appearance would have sufficiently denoted, without the concurrent testimony afforded by the squalid looks of the few men and women who, with folded arms and bodies half doubled, occasionally skulked along. A great many of the tenements had shop-fronts; but these were fast closed, and mouldering away; only the upper rooms being inhabited. Some houses which had become insecure from age and decay, were prevented from falling into the street, by huge beams of wood reared against the walls, and firmly planted in the road; but even these crazy dens seemed to have been selected as the nightly haunts of some houseless wretches, for many of the rough boards which supplied the place of door and window, were wrenched from their positions, to afford an aperture wide enough for the passage of a human body. The kennel was stagnant and filthy. The very rats, which here and there lay putrefying in its rottenness, were hideous with famine.” p. 81, cap. 5


Oliver é o pobre órfão explorado e humilhado na casa do fazedor de caixões, então o pequeno órfão resolve fugir – a pé para Londres. (Em “David Copperfield”, é o protagonista que, assaltado e desamparado, vai a pé de Londres a Dover, numa longa caminhada de quatro dias.) Estamos diante do menino em crescimento, ao perceber o mundo, quando Oliver passa a ficar mais interessante, pois ele toma atitudes, não se deixará tão passivo – ou ingênuo, como queiram.


Ele chegará em Londres, ou antes, no caminho, já entrará em contato com outras personagens, outras figuras à margem, vultos do submundo, pessoas que lutam para sobreviver na miséria gerada pela desigualdade de renda. Meninos que roubam para viver. Mas Oliver, ainda aprisionado (ou protegido) pela ingenuidade, demorará um tempo para se aperceber disso.


O garoto, com aspecto de pequeno adulto, que Oliver encontra, de modo tão inesperadamente, meio a jornada, será então o guia para o submundo, onde as vítimas do sistema se tornam novos criminosos, novos réus. Aparece a figura do judeu Fagin, que explora as crianças pobres, treinando-as para um interessante 'jogo' de tirar os pertences dos gordos gentlemen, enquanto os cidadãos flanam pelas tumultuadas ruas londrinas.


As descrições de Dickens são primorosas – ele deseja que o leitor veja o que ele imagina – monta tudo como um cenário, no qual inserir as personagens, que completam a descrição com a sequência de diálogos – tal qual estamos acostumados hoje nas telenovelas: pois tudo começou com as novelas em folhetim, no século 19. É primorosa a descrição do habitat do desonesto Fagin.


“As paredes e teto da sala eram totalmente sujos e enegrecidos com o tempo. Havia uma mesa de madeira diante do fogo: sobre a qual havia uma vela, enfiada numa garrafa de cerveja, dois ou três potes, um pão e manteiga, e um prato. Numa frigideira, que estava ao fogo, e que estava segura à cornija da lareira por um fio, algumas salsichas cozinhavam; e estando de pé sobre elas, com um garfo nas mãos, estava um enrugado velho judeu, cuja perversa e repulsiva face estava obscurecida por uma entrelaçada mecha de cabelo rubro. Ele vestia um roupão de flanela todo seboso, com o pescoço exposto; e parecia dividir a atenção entre a frigideira e o cabide, sobre o qual pendia um grande número de lenços de seda. Muitas camas rudes feitas de sacos, estavam ajuntadas lado a lado no chão. Sentados ao redor da mesa estavam quatro ou cinco meninos, nenhum deles mais velhos que Dodger, fumando longos cachimbos de argila, e bebendo aguardente com ares de velhos senhores. Todos estes se amontoaram ao redor do companheiro deles quando ele sussurrou ao judeu umas poucas palavras; e então voltaram-se e sorriam em careta para Oliver. Assim fez o próprio judeu, com o garfo na mão.”
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The walls and ceiling of the room were perfectly black with age and dirt. There was a deal table before the fire: upon which were a candle, stuck in a ginger-beer bottle, two or three pewter pots, a loaf and butter, and a plate. In a frying-pan, which was on the fire, and which was secured to the mantelshelf by a string, some sausages were cooking; and standing over them, with a toasting-fork in his hand, was a very old shrivelled Jew, whose villainous-looking and repulsive face was obscured by a quantity of matted red hair. He was dressed in a greasy flannel gown, with his throat bare; and seemed to be dividing his attention between the frying-pan and the clothes-horse, over which a great number of silk handkerchiefs were hanging. Several rough beds made of old sacks, were huddled side by side on the floor. Seated round the table were four or five boys, none older than the Dodger, smoking long clay pipes, and drinking spirits with the air of middle-aged men. These all crowded about their associate as he whispered a few words to the Jew; and then turned round and grinned at Oliver. So did the Jew himself, toasting-fork in hand." p. 105, cap. 8


Oliver é 'convidado' a integrar-se ao grupo de meninos e participar dos treinamentos para um interessante 'jogo' – o de como tirar os lenços e carteiras dos bolsos e paletós alheios – mas sem despertar a atenção das vítimas. Ser o mais sutil e eficiente possível, tirar um pertence sem levantar suspeitas...


Certamente que a narrativa é irônica. Afinal que 'hopeful pupils' (discípulos esperançosos) temos aqui? Não são apenas pobres crianças exploradas por um bandido? Ele, o judeu com ares suspeitos, 'ampara' as crianças desde que elas 'trabalhem' para ele – ou seja, pratiquem os pequenos furtos. As crianças estão sob a 'proteção' de um criminoso em tanto desamparo como quando sob a tutela dos 'sábios cavalheiros' das instituições públicas filantrópicas.


Qual a diferença entre os 'gentlemen' que lucram com a 'venda' das crianças para os cargos de 'jovens aprendizes' em relação ao bandido que usa as crianças para lucrar com pequenos furtos? Em ambos, as crianças servem a interesses alheios – que em nada aliviam a miséria e desamparo delas.


O uso da fala coloquial e de gírias aumenta o teor de hilaridade trágica – afinal, as crianças são mais vítimas de um sistema mercenário do que realmente culpadas pelos pequenos roubos.

Assim, Oliver entra no estilo de vida bem animado dos pupilos do Sr. Fagin, crápula, sem escrúpulos, explorador de crianças pobres. O 'jogo' de tirar pertences alheios é exaustivamente praticado para manter os meninos em forma para o 'jogo' lá nas ruas do mercado, no meio da multidão. Oliver vê como um 'jogo', mas sabemos – enquanto bons leitores que somos – que toda a cena é por demais clara: os meninos treinam para serem batedores-de-carteira, para serem eficientes ladrões. Que belo aprendizado!


Mais tarde, Oliver perceberá finalmente em que espécie de jogo ele está envolvido, ao contemplar Dodger e Bates, os eficiente meninos, em ação,

“Com que horror e alarme estava Oliver quando ele parou a poucos passos, com suas pálpebras bem abertas, tanto quanto possível, a ver Dodger mergulhar sua mão dentro do bolso do velho cavalheiro, e tirar de lá um lenço! A ver a mão de Charley Bates fazer o mesmo; e finalmente observá-los, ambos correndo a fugir rumo a esquina com toda velocidade!

Num instante o completo mistério dos lenços, e os relógios, e das joias, e o judeu, percorreu a mente do menino. Ele parou, por um momento, com o sangue pulsando de terror, a ponto de sentir-se queimando vivo; então, confuso e assustado, ele escapuliu; e, sem saber o que fazia, ele correu tão rápido quanto poderia seus pés no chão.

Tudo foi num espaço de um minuto. No instante exato em que Oliver começou a correr, o velho cavalheiro, ao colocar a mão no bolso, e sentindo falta do seu lenço, voltou-se brusco ao redor de si. Ao ver o menino escapulir com rapidez, ele naturalmente concluiu que aquele era o ladrão; e começou a gritar 'Pega ladrão!' com toda força, correu atrás dele, a segurar um livro.”
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"What was Oliver's horror and alarm as he stood a few paces off, looking on with his eyelids as wide open as they would possibly go, to see the Dodger plunge his hand into the old gentleman's pocket, and draw from thence a handkerchief! To see him hand the same to Charley Bates; and finally to behold them, both running away round the corner at full speed!

In an instant the whole mystery of the hankerchiefs, and the watches, and the jewels, and the Jew, rushed upon the boy's mind. He stood, for a moment, with the blood so tingling through all his veins from terror, that he felt as if he were in a burning fire; then, confused and frightened, he took to his heels; and, not knowing what he did, made off as fast as he could lay his feet to the ground.

This was all done in a minute's space. In the very instant when Oliver began to run, the old gentleman, putting his hand to his pocket, and missing his handkerchief, turned sharp round. Seeing the boy scudding away at such a rapid pace, he very naturally concluded him to be the depredator; and shouting 'Stop thief!' with all his might, made off after him, book in hand."
p. 114, cap. 10


Encontrar Oliver assim envolvido no mundo dos criminosos é de partir o coração. E era exatamente isso que o autor Dickens pretendia : emocionar a plateia com as vicissitudes do protagonista tão ingênuo. Eis onde a ingenuidade leva: o pequeno órfão entra para uma gangue de menores infratores. Aumenta-se o ingrediente de peripécias – e emoção! - com as cenas de pequenos roubos, ainda que tenha-se que arruinar a pureza de Oliver – até então irreprovável.

Esta complexa condição da criança-protagonista enquanto herói envolvido com anti-heróis está presente também em obras como “Meninos da Rua Paulo” (1906, de Ferenc Mólnar) e “Capitães da Areia” (1935, de Jorge Amado), obras das quais brevemente nos ocuparemos aqui.


Mas Oliver consegue atrair a atenção do cavalheiro que foi vítima – o Sr. Brownlow – que não acreditar que o pequeno Oliver seja mesmo um batedor-de-carteiras. E o cavalheiro faz de tudo para esclarecer o roubo, e assim inocentar o nosso protagonista. Para evitar que Oliver seja incriminado, o Sr. Brownlow intervém junto às autoridades e consegue obter permissão para cuidar do menino.


O narrador onisciente alterna cenas de Oliver sob os cuidados do Sr. Brownlow e da Sra. Bedwin, com as cenas no interior do covil do meninos criminosos. O contraste entre os solícitos e altruístas com os egoístas e mercenários. A figura do Sr. Brownlow é contrastada com a presença do destemido bandido arrombador, o cruel Bill Sikes, que traz afetivamente cativa uma mocinha, meio anti-heroína, chamada Nancy.


Mas a permanência de Oliver na confortável casa do Sr. Brownlow é muito curta. Logo, o menino, ao ser enviado para devolver uns livros, é 'resgatado' por uma mocinha do grupo de pequenos ladrões. Oliver é levado de volta ao covil do judeu Fagin, pois este teme que o menino denuncie os avanços 'pedagógicas' do grupo de 'esperançosos pupilos'.


Logo Oliver está envolvido em crimes mais sérios, por exemplo, arrombamentos. O professor é o cruel Sikes, que usa os meninos para adentrar uma mansão e localizar bens preciosos para o roubo. A invasão, felizmente e infelizmente, não obteve sucesso e o indefeso Oliver é ferido. Mas para a sua sorte – felizmente – ele é acolhido pelos donos da casa, quando os 'colegas' ladrões fogem.


O próprio narrador tem consciências das alternâncias e vicissitudes que afligem a vida do pobre protagonista. É assim logo no início do Capítulo 17, quando apresenta um novo antagonista. O narrador se permite uma espécie de pausa meditativa, para abordar a própria tarefa de narrar, a própria condição de autor, aquele que é responsável pelos focos narrativos, pela escolha das sequências, ao manter uma atmosfera de suspense, ainda no gênero descontínuo do folhetim “sendo a habilidade de um autor, para tais críticos, principalmente considerados em relação aos dilemas nos quais ele deixa seus personagens ao final de cada capítulo: esta breve introdução agora talvez deva ser considerada desnecessária” (“an author's skill in his craft being, by such critics, chiefly estimated with relation to the dilemmas in which he leaves his characters at the end of every chapter: this brief introduction to the present one may perhaps be deemed unnecessary.” p. 169)


Não bastavam os inimigos que Oliver já coleciona – autoridades, gentlemen, limpadores-de-chaminés, agentes funerários, bandidos – agora outra personagem rasteja nas sombras. Quem é o tal Monks que se obstina em perseguir Oliver? Por que tanto esforço em arruinar a vida do menino? De onde Monks conhece o nosso protagonista?


O misterioso Monks demonstra saber muito sobre as circunstâncias do nascimento de Oliver – e ele quer saber mais. Por que tanta obstinação? Interesse que muito intriga o próprio antigo bedel. Será que Monks é o pai de Oliver? É possível que ele tenha abandonado a mãe do menino quando ela se declarou grávida... Agora Monks quer ter certeza?


Eis o mistério que re-aquece o interesse de nós leitores para prosseguirmos no folhetim por mais uns 40 capítulos … Uma verdadeira novela – futuramente teremos as 'telenovelas' - em longas sequências arquitetadas de modo a cativar a atenção dos leitores (ou telespectadores) enquanto durar a série. O enredo é dado aos poucos – é impossível para o leitor folhear até o final para saber como vai acabar a trama.


Enquanto os bandidos da gangue de Fagin, Sekis, e o misterioso Monks armam para destruir o protagonista, de outro lado o Sr. Brownlow não desistiu de sua simpatia por Oliver. Quer saber mais sobre o nascimento do menino, inclusive descobrir onde nasceu e em que circunstâncias. Assim temos duas personagens a 'vasculharem' o passado do protagonista, mas com propósitos diversos. Enquanto Monks quer 'provar' o caráter irrecuperável de Oliver, o Sr, Brownlow quer provar o contrário, que o menino é bom, e não será corrompido.


Enquanto Oliver recebe cuidados e carinho na casa, que ajudara antes a invadir, os gatunos da gangue do Fangin traçam planos para recapturar o menino. Mas providencialmente – ou porque o autor assim deseja – acontece a volta do Sr. Brownlow, que é reconhecido por Oliver. É preciso que o protagonista prove que não sumiu com os livros, mas foi capturado antes pelos bandidos.


Os inícios dos capítulos geralmente são descritivos – assim montam o cenário – para a introdução das personagens, com suas ações e diálogos. O tipo de descrição já faz prever o que será narrado – ora lúgubre, ora irônica – de acordo com as situações vivenciadas, sofridas, toleradas pelo protagonista (ou pelos antagonistas dele). O narrador é esperto ao alternar descrições, dramas, diálogos, novas descrições, numa tessitura verbal que mantém o leitor em suspense. (Hoje em dia isso é feito pela mídia visual – teatro, cinema, televisão – não sendo mais exclusividade da boa literatura)

Quando a narração perde o impulso, quando há uma pausa na sequência de vicissitudes, o narrador aproveita para se manifestar, se explicar, dialogar com os possíveis leitores (é aquele narrador de Sterne, de Machado de Assis, e de José Saramago, uma voz manifesta e explícita, que bem conhecemos). Vejamos um exemplo, quando na súmula do capítulo, o narrador se explica, quase pede paciência ao leitor. Este capítulo parece pouco importante? Nada disso: tem algo que será importante nos seguintes.

Capítulo 36 “É um bem curto, e deve até parecer aqui sem muita importância. Mas deve ser lido, apesar disso, como uma sequência ao último [capítulo], e uma chave para o que se segue quando for o momento” (“Is a very short one, and may appear of no great Importance in its Place. But it should be read, notwithstanding, as a Sequel to the last, and a Key to one that will follow when its Time arrives.” p. 318)

O narrador não hesita em lembrar que se trata de uma narração, e que há um leitor ali do outro lado. “Capítulo 37 – No qual o Leitor deverá perceber um contraste, não incomum em casos matrimoniais” (“In which the Reader may perceive a Contrast, not uncommon in matrimonial Cases”)


O pequeno resumo no início de cada capítulo cria uma expectativa, levada ao ápice durante a leitura, que se encerra no momento de anunciar o próximo capítulo. Esta forma de enredo serial acabou por gerar formas culturais que temos até hoje nas telenovelas e séries (veja por exemplo os seriados norte-americanos, que se estendem por várias temporadas, em enredos complexos) que exploram a curiosidade - sempre incentivada - da plateia.


O enredo precisa ser complexo – com vários sub-tramas paralelas – para alongar as aventuras (e desventuras) antes de apresentar as resoluções dos conflitos. Quem é mesmo Oliver? Quem é o Sr. Brownlow que pesquisa sobre o passado de Oliver? Quem é Monks que tenta apagar o passado de Oliver? O que acontecerá com a gangue de meninos ladrões de Fagin? O que acontecerá com o cruel arrombador Bill Sikes? São estes os motivos que cativam o leitor.


Sabemos que o(s) antagonista(s) merecem uma punição. Punição esta que terá vez em momento oportuno – isto é, nas páginas finais do romance-folhetim. E muitas vezes o que parece ser o pior vilão ainda mostra-se 'fraco' perto de alguém ainda mais perverso. Aqui em “Oliver Twist” se pensamos que os vilões são o aliciador de menores Fagin ou o ladrão-arrombador Sikes, é porque ainda não entendemos o verdadeiro papel de Monks neste enredo. Ele é a verdadeira sombra na vida do menino Oliver. Monks é em verdade o antagonista-mor nesta triste história do órfão. Quem é ele? Qual o interesse em destruir a vida do pobre órfão? O mistério vale a leitura.


A quantidade de antagonistas e figurantes (muitos são explícitas caricaturas como o bedel Bumble ou o vilão Fagin) que cercam o protagonista servem ao mesmo tempo para destacar a importância do contexto – a sociedade ao redor de Oliver – como para ressaltar o indivíduo Oliver – a personagem mais bem apresentada. Sendo Oliver o foco da narrativa, com tudo girando ao seu redor, não é de se admirar que os eventos aconteçam a partir de Oliver – e não, como é lógico, da sociedade (os outros) para Oliver (geralmente o afetado, o vitimado). Isso acontece porque nossa atenção está toda em Oliver, que cativa nossa compaixão.


Mas podemos por alguns momentos abstrair o protagonista e imaginar que temos um painel de época – ao estilo Balzac – onde as personagens servem mais para apresentarem 'tipos' humanos, num recorte de cima a baixo no tecido social. Oliver então deixa de ser o indivíduo Oliver e torna-se caricatura, o 'tipo' do 'pequeno órfão'. Mas então perde-se muito do sentimento que o leitor pode nutrir pelo protagonista – que precisa gerar alguma simpatia ou admiração ou identificação. Caso contrário, o leitor vai abrir outro livro, ler outro folhetim. E sabemos o quanto isso desagradaria ao caro autor Dickens.



Set/ 11






Um site com as tantas personagens das obra de Charles Dickens
http://www.fidnet.com/~dap1955/dickens/characters.html



Oliver Twist na Wikisource
http://en.wikisource.org/wiki/Oliver_Twist

para ouvir
http://www.youtube.com/watch?v=euIaw5TPJSk&feature=related


filmes baseados em “Oliver Twist

Oliver Twist” (2005)
http://www.youtube.com/watch?v=xpYVXdpm6zg

Oliver Twist” (TV movie, 1997)
http://www.youtube.com/watch?v=tlVXyO-zmJY&feature=related

Oliver !” (1968)
http://www.youtube.com/watch?v=TDIRNqNdsTI

Oliver Twist” (1948)
http://www.youtube.com/watch?v=hHv14Fbq1UM

Oliver Twist” (1933)
http://www.youtube.com/watch?v=XMvB8wKUZ_4&feature=related


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