quarta-feira, 27 de julho de 2011

sobre 'Fahrenheit 451' - de Ray Bradbury









Sobre “Fahrenheit 451” (EUA,1953)
romance distópico
do autor Ray Bradbury (1920-)
(tradução de Cid Knipel. Ed. Globo, 2003)


A literatura denuncia a queima da literatura


Introdução


A literatura incomoda muita gente – governos, plutocratas, ditadores – assim os literatos são os primeiros a serem condenados, exilados, presos quando surge uma ditadura. Alguma coisa parece existir nos livros – desde que a civilização é letrada, desde que existam registros – que incomoda muito os conservadores, os revolucionários, os ditadores de plantão.


Os livros são logo rotulados, catalogados, indexados, prontos para as gavetas, para a censura, para a pira funerária em praça pública – isso quando não queima também os autores em seguida, na mesma fogueira. A livre expressão, a criatividade, o prazer da leitura, parece não cair bem nos padrões de controle das sociedades modernas, ávidas por diversão fácil, consumo fácil, pensamento fácil, facilmente alienadas. Se alguém 'fala demais' é sutil - ou violentamente – censurado.


Não é a primeira vez que o Autor Bradbury trata do assunto proibição e queima de livros - lembremos o conto “Usher II” nas “Crônicas Marcianas” onde um bibliófilo milionário constrói em Marte uma mansão mal-assombrada para se vingar dos censores do governo – os queimadores de livros.

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link para o meu artigo sobre
os contos marcianos de Bradbury
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2011/05/sobre-as-cronicas-marcianas-de-ray.html
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A época de Fahrenheit 451 é mais ou menos ano 2000 (ou seja, a nossa época!) numa descrição nem tão tecnológica quanto em Brave New World de Huxley, nem tão opressora quanto 1984, mas igualmente distópica, onde os bombeiros não são chamados para apagarem os incêndios – mas para causar incêndios – assim fazem jus ao nome 'fireman' – homem do fogo – que seria mais um 'bookburner', aquele que queima livro.


Similaridades são evidentes entre Fahrenheit 451 e Brave New World com diversão e entretenimento alienante para a população, que passa a desprezar os livros e a filosofia, a leitura estética, e busca emoções fortes, artificiais. A televisão está em todo lugar, atraindo atenções. Os narcóticos estão liberados, para manter o povo domesticado


Paralelos entre Fahrenheit 451 e 1984 também incluem as televisões onipresentes – com a diferença de que no mundo distópico de Orwell as televisões servem como câmeras que vigiam os cidadãos dentro e fora de suas casas. Em ambas as distopias temos o autoritarismo, a repressão, a censura, o Estado contra os cidadãos, o utilitarismo


De certa forma o mundo de Fahrenheit 451 é mais 'realista' e verossímil do que aqueles de Brave New World e 1984, com menos aparato tecnocrata, e menos repressão totalitária (o ápice é sempre 1984 onde até uma nova linguagem é inventada para impedir os cidadãos de pensarem livremente).


Os donos do poder – em nosso mundo, e ainda mais nos 'mundos distópicos' - não aceitam vozes dissonantes, sempre há uma figura que simboliza o poder contra o desejo de livre-pensamento do protagonista. Podemos comparar a figura do capitão Beatty com o Grande Inquisidor de “Os irmãos Karamázovi” (1879) de Dostoiévski – assim como podemos comparar Beatty com o Mustapha Mond de Brave New World e com o O'Brien de 1984. Antagonistas que explicam o funcionamento das distopias para os protagonistas – e, assim, para os leitores.


Onde se queima livros, também pode se queimar os autores, as pessoas. O escritor Thomas Mann falava algo semelhante quando se referia aos nazistas (do tipo, Hoje eles queimam meus livros, porque ainda não podem queimar o autor) enquanto Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, mostrava uma ironia amarga, “É um grande progresso em relação à Idade Média. Agora queimam meus livros, naquela época eu mesmo seria jogado na fogueira.”


Bombeiros provocam queimas


Em Fahrenheit 451 o protagonista é Guy Montag, um bombeiro, ou queima-livros, que tem por antagonista um inteligente oficial, seu superior no quartel, o Capitão Beatty, enquanto tem por interlocutores a esposa Mildred, a vizinha Clarisse e o bibliófilo clandestino Faber.


Primeiramente encontramos Montag ('segunda-feira' em alemão) um tanto ambíguo – gosta, tem prazer em queimar livros, mas não entende bem porque tem que fazer isso. É um exemplo de trabalhador alienado – trabalha e não se reconhece no trabalho que executa.


Neste momento algo – na verdade, alguém – rompe a vida rotineira de Montag, quando ele é abordado pela vizinha Clarisse McClellan, uma mocinha de 17 anos, que gosta de conversar e não tem medo dele – afinal, os bombeiros são queimadores-de-livros, gente antipática. A vizinha Clarisse faz perguntas um tanto excêntricas, espontâneas, fora dos padrões, do tipo “Você é feliz?” Ela quer saber se é verdade que antes os bombeiros apagavam o fogo – ao contrário de iniciar o fogo, ao queimar livros. Ele acha a pergunta deveras perturbadora. Desde quando os bombeiros queimam livros? Ele não sabe.


Clarisse gosta de observar pessoas – e Guy Montag acha a mocinha estranha, o problema deve ser que ela pensa demais. Ela indaga sobre os outdoors, a propaganda constante, a televisão interativa (tipo os 'big-brothers', os reality-shows da atualidade) e assim ficamos sabendo que há tudo isso no mundo futuro – um excesso de entretenimento que dispensa a leitura, o recolhimento e a solidão - exatamente o mesmo que acontece em Admirável Mundo Novo, onde a diversão é incentivada.


Ao chegar em casa, após o dia de serviço, e depois da breve conversa com a mocinha da casa vizinha, Montag encontra a esposa Mildred em plena overdose de entorpecente – que nem tem esse nome, são 'apenas' pílulas para dormir. Assim como hoje em dia nos entupimos de pílulas, estimulantes, viagras, anti-depressivos, em nossa vidinha artificial farmacológica.


Quando os paramédicos chegam, estes parecem mais uns desentupidores de pia – chegam e trocam o sangue da vítima. Sujeitos impessoais que tratam a mulher de Montag como se fosse uma boneca de pano, uma coisa. Como se trocassem óleo de um carro... Não se importam se morre mais uma, pois tem gente demais no mundo. A superpopulação, o acúmulo populacional nas cidades, cria o anonimato e a solidão meio a multidão, onde ninguém conhece ninguém, todos vivem suas vidas indiferentes às vidas alheias.


Mildred se recupera da overdose de pílulas para dormir e apenas para voltar a sua vida alienada, como se nada tivesse acontecido. Ela até nega que tenha tomado tanta pílula – comporta-se como uma adolescente viciada que nega o próprio vício. A esposa de Montag quer sempre mais conforto, mais diversão, quer televisão de tela plana nas quatro paredes da casa, com direito a ver todas as novelas interativas, os reality-shows da semana! Em suma, nada de pensar na vida, nada de parar para pensar, vamos nos embriagar de enlatados televisivos.


Temos então um interessante contraponto na perspectiva de Montag: a vida alienada da esposa versus a presença estranha da vizinha. De um lado a rotina doméstica e de outro a possível aventura (inclusive amorosa?). É um tanto ambíguo, pois Clarisse acha Montag interessante, julga que ele não é igual aos outros bombeiros com poses de durões a incendiarem pilhas de livros.


Acompanhamos Montag até o trabalho no Corpo de Bombeiros. Lá está um cão-robô ('mechanical hound'), o 'Sabujo Mecânico, que é uma espécie de mascote dos firemen. O tal cão-robô parece farejar aqueles 'fora-do-padrão' e não está muito amistoso com o desconfiado Montag. Até o robô ameaça Montag?


Mas o Capitão Beatty explica paternalmente que uma máquina 'não gosta nem desgosta', ela 'apenas funciona'. A máquina, o cão-robô, é apenas ajustada – para 'caçar, localizar e matar'. O capitão acha que Montag está com a consciência culpada ao imaginar ameaças. Realmente o capitão tem todo um tom paternal, de padre ou pastor, de xamã ou pajé, um guia tecnocrata para os seus subordinados. O capitão zela pela ordem – e pela consciência de seus comandados!


Montag reencontra Clarisse outras vezes e ela mesma se considera 'excêntrica' e até 'antissocial' – pois não aceita a vida padronizada. Ele sempre acha perturbadora a curiosidade da mocinha – ele que vive inserido numa rotina a ponto de demorar a perceber que a vizinha Clarisse desapareceu. Ela não estava mais na calçada para surpreendê-lo. O que teria acontecido? Uma viagem? Uma doença?


O protagonista vive entre o quartel e a casa, a sentir-se gradativamente desconfortável. Um mal-estar, uma ou outra reflexão, agora se insinua. Algo do contexto aflora – outra guerra? Outra! Lembrar que o romance Fahrenheit 451 foi escrito nos anos 1950, foi publicado em 1953, no início da Guerra Fria, com os Estados Unidos (e as Nações Unidas, ONU) enviando tropas para a Guerra na Coreia (1950-53) contra os comunistas norte-coreanos e chineses. (Guerra que oficialmente não terminou até hoje...)


Temos acesso em vários trechos a uma lista dos livros proibidos condenados pelas autoridades. Uma espécie de Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica Romana na época da fogueiras acesas da Inquisição. Também os nazistas alemães tinham suas listas de autores proibidos, ou artistas da “Arte Degenerada”. Em suma, os regimes de padronização não permitem qualquer pensamento não-catalogado, nenhuma excentricidade intelectual é aprovada.

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Os livros censurados do Index Librorum Prohibitorum
http://historica.com.br/hoje-na-historia/1406



Aquele que não se encaixa no padrão é rotulado como excêntrico, louco, e é sujeito a readaptação, internado em hospício, ou eliminado. E Montag logo desperta suspeitas quando faz perguntas. Quer saber, por exemplo como era a corporação de bombeiros antes, no passado? Justamente a pergunta de Clarisse nas primeiras cenas do romance.


Mas na distopia da História reescrita não é de se espantar se descobrimos que os 'firemen' foram – desde o século 18! - uma equipe de incendiários, e que o primeiro bombeiro foi ninguém menos que Benjamin Franklin!


Então, Montag tem uma experiência traumática – uma subversiva, dona de uma imensa biblioteca decide deixar-se queimar junto com os preciosos livros! Por que tanto sacrifício? O que os livros guardam de tão importante? A Sra. Blake morre com um olhar impassível – será loucura? Em nome de quê ela morre? Ela mesma acende os fósforo!


Este martírio da estranha Sra. Blake (referência ao poeta visionário William Blake, 1757-1827) causa um abalo emocional em Montag – ele finalmente questiona o próprio trabalho, estes incêndios de livros.


Enquanto isso, o capitão Beatty cita trechos de livros queimados. Onde e quando o capitão pôde ler os livros? (Também Mustapha Mond lia o proibido Shakespeare e citava trechos para o confuso Sr. Selvagem, em Admirável Mundo Novo. Também o ditador Adolf Hitler conservava na biblioteca pessoal alguns livros que eram queimados pelos próprios nazistas! Quem faz as leis sempre está acima das leis!)


Montag então questiona o trabalho, a queima de livros, a esposa – que ele percebe enfim pouco conhecer – o que une o casal? A casa em comum? A rotina de casados?) Interrompendo a esposa – entretida num programa da televisão interativa – Montag tenta um diálogo, e consegue saber o que aconteceu com Clarisse. A família vizinha se mudou, porque a mocinha sofrera um acidente. Certamente morrera.


Morrera? Como assim? Do mesmo modo como as pessoas somem, desaparecem – são 'vaporizadas' em '1984', num regime de Terror - aqui a diferente Clarisse é logo dada como morta – nada mais se sabe sobre ela. Nem Montag – nem o/a leitor/a saberá o que aconteceu. O trauma de Montag se torna psicossomático e ele adoece. Não vai ao quartel – e conta à esposa o caso da leitora-mártire, e ele quer que ela avise o capitão.


E finalmente sabemos porque Montag é bombeiro! “Que escolha eu tinha? Meu avô e meu pai eram bombeiros. Em meus sonhos, eu corria atrás deles.” (p. 76*) Ele é bombeiro porque é filho e neto de bombeiros, por tradição familiar. Assim como muitos são médicos ou militares por pressão familiar. Não escolheram a carreira, não decidiram o próprio futuro profissional. Seguem uma inércia de modo inconsciente. E depois, subitamente, a 'ficha cai', surge a angústia a revelar toda uma vida não-autêntica. Questão que muito interessava ao filósofo existencialista Jean-Paul Sartre.


Montag pensa então nos livros – o que realmente há nos livros? - e nos autores – quem são estes que escrevem livros? - e sabemos que ele ocultava livros – inclusive sob os travesseiros! Justo quando o Capitão Beatty vem saber o motivo da ausência ao trabalho. A figura paternal do Capitão é impressionante – parece um diretor de colégio em visita a uma aluno indisciplinado.


Beatty resolve esclarecer para Montag as reais origens dos 'firemen'. Depois de uma Guerra Civil (a de Secessão?), depois de um excesso populacional, depois de uma indústria cultural massificada (tudo nivelado por baixo). Livros – Filmes – Resumos de livros – Sinopses – Novelas. O importante não é pensar – mas se divertir. Domesticar os livros com versões cinematográficas. Abaixo a fadiga do pensamento – pensar pra quê? Temos sinopses de resumos, temos resumos de resumos de resumos. (O leitor não tem tempo de ler, absorver, a leitura atual, como vai ter concentração para ler os clássicos? Vide “Por que ler os clássicos?” de Ítalo Calvino)


Mas ler pra quê? Se há outras mil diversões? Mas ler é se divertir? Ora, temos TV, teatro, cinema, esportes, reality-show, etc. Leitura é apenas outro produto na estante... O importante é agradar a todos! Nada de incomodar minorias, ou fazer caricaturas de políticos! 'Autores cheios de maus pensamentos, tranquem suas máquinas de escrever!” Maus pensamentos? Quais? Todos aquele pensar que não está 'dentro do padrão', que é crítica ao estabelecido. Toda ditadura se dedica a censurar, a eliminar livros e autores. O pensamento não-ortodoxo é o primeiro a ser banido – seja pelas Direitas ou pelas Esquerdas – em prol das tradições ou do 'politicamente correto'.


O pensamento excêntrico, diferente, deve ser silenciado. Deve haver uma padronização para manter o controle – há o império da Maioria, o auge da mediocridade. Viva o senso comum! (As palavras de Beatty soam irônicas, como se ele tivesse lido num livro. Livros que contestam livros. Livros que são ambíguos.) A crítica ao mundo de Fahrenheit 451 deve ter por referência as advertências do pensador Nietzsche quanto a 'moral de rebanho' e as de Adorno & Horkheimer quanto a 'indústria cultural'.

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Mais info
contra a 'moral de rebanho'
http://niilismo.net/forum/viewtopic.php?t=540
http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/nietzschecotrim.html
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sobre a 'Indústria Cultural
http://www.urutagua.uem.br/04fil_silva.htm
http://en.wikipedia.org/wiki/Culture_industry
http://www.culturabrasil.org/frankfurt.htm
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O importante é divertir o povo, que as massas populares sejam felizes. Exatamente o mesmo argumento do Administrador Mustapha Mond em Brave New World. Todo o sistema de dominação e alienação teria por objetivo a felicidade dos cidadãos dominados e alienados! Pelo discurso das Elites para manter a submissão dos não-privilegiados.


Excesso de diversão, de entretenimento, de programas televisivos. Excesso de informações em rede mundial, excesso de links disponíveis – para causar desinformação! Nunca houve tanta informação – daí nunca dantes sermos tão desinformados. O professor que fornece miríades de informações aos alunos não é exatamente o bom mestre – ele apenas enche a mente dos doutrinados – não apresenta um método para 'digerir' tanta informação.


Tal um professor irônico o Capitão Beatty se despede de Montag, “Preciso ir. A aula acabou” - e toda a atitude de Montag até ali é a de um aluno aplicado a ouvir o professor. O aluno que não constrói o aprendizado – mas engole tudo o que o professor enfia-lhe goela abaixo. Assim como Winston Smith ouvia as palestras professorais de O'Brien nas torturas na sala 101 de '1984', de Orwell.


O protagonista - e nas três distopias – enfrenta uma mente superior, um tecnocrata, um oficial, que compreende o sistema e adere ao status quo, ainda que com ironia (Mustapha Mond), amargura (Beatty) ou fanatismo (O'Brien).


Montag resolve revelar para Mildred, sua esposa, o local onde ele escondia os livros – e ela fica horrorizada. Ler livros é crime! (A mulher surge aqui como uma 'agente da lei' dentro de casa – e é quem vai denunciá-lo) Montag não quer mais queimar livros – preferiria antes queimar os bombeiros – e todo o aparato de segurança. Há uma paranoia militar e nuclear no ar – as mesmas guerras constantes que encontramos em “1984” - “Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas”.


Afinal de contas, os Estados Unidos da América são a superpotências – e os cidadãos deveriam pensar no que representa a hegemonia ianque no mundo – em concorrência com a URSS – aos olhos dos povos ditos subdesenvolvidos. (“Será por que somos tão ricos e o resto do mundo tão pobre e simplesmente não damos a mínima para sua pobreza?”)


O excesso de propaganda – nos outdoors, no metrô – cria um incentivo constante ao consumo – também importante para a dinâmica do Admirável Mundo Novo, mas ausente em '1984', onde há penúria, escassez, nenhum consumismo. O excesso de promoções, mercadorias, programas de TV, tudo isso dispersa o pensamento do cidadão incapaz de 'totalizar' as informações – apenas partes, fragmentos, sem nexo são despejados sobre retinas e mentes.


Decidindo tomar uma atitude, Montag resolve procurar Faber, um antigo subversivo investigado. Faber entende de livros, mas desconfia de Montag. Depois de Beatty, Faber é a melhor persona deste romance – sabe algo que o protagonista – e nós, leitores - não sabe. Tanto que Faber e Beatty vão duelar pelo destino de Montag – o bibliófilo versus o oficial representam alegorias da arte versus a ordem.


Faber é aquela figura do bibliófilo, do 'rato de biblioteca', que gosta mais de livros do que de gente – que adora folhear, cheirar os livros... mas acha 'romântica' a ideia de Montag – a de que os livros poderia ajudar a mudar as coisas, o status quo...

Os livros eram só um tipo de receptáculo onde armazenávamos muitas coisas que receávamos esquecer. Não há neles nada de mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós a partir de retalhos do universo.” (pp. 109-110*)


Os livros incomodam os privilegiados, as dirigentes, porque eles revelam o que queremos ocultar, esquecer, pois colocam os pontos nos 'is' da nossa (ir)realidade cotidiana.


Os livros, aliás, não incomodam somente as autoridades – mas também aos cidadãos comuns, os medíocres, as minorias, os conservadores, as 'patrulhas ideológicas', os defensores do 'politicamente correto' – em suma, aqueles que preferem ver TV do que abrir um livro – daí os livros passarem a ser 'persona non grata', desprezados, logo censurados, depois eliminados. Chamem os queimadores-de-livros!


Faber sabe o que diz quando declara que “Os livros servem para nos lembrar quanto somos estúpidos e tolos.” (p. 113*) daí incomodarem muita gente. Então quem poderá resistir aos queimadores de livros? Os antigos leitores? Os historiadores? Os autores? Os atores de teatro? Os bibliófilos? Quem? Quem se importa com leituras? “Os que não constroem precisam queimar. Isso é tão antigo quanto a história e os delinquentes juvenis.” (p. 117*)


O bibliófilo Faber acha que os livros perderam a guerra – é melhor Montag desistir. O bombeiro renegado não sabe se o bibliófilo é prudente ou um covarde. Mas Faber é pressionado a ajudar Montag e ambos mantêm contato por um microfone transmissor. É o apoio que Montag precisa para 'enfrentar' Beatty. Ainda que Faber ache que o capitão é 'um dos nossos'. Será mesmo?



A guerra iminente: caças e bombardeiros cruzam o céu... notícias na TV... um clima de paranoia sobre os cidadãos. Montag não suporta: passa dos limites, ele resolve impulsivamente ler poemas para as amigas da esposa na hora do chá das visitas! Faber o adverte, mas é inútil. Montag está fora de controle: imagine ler poema para as visitas! É crime! Ainda mais um bombeiro...!


Percebemos o quanto a conversa das mulheres é completamente padronizada e alienada – nenhum pensamento autêntico. Montag, ao ler o poema, causa um estranhamento – justamente o papel da Arte: atentar o olhar para além do cotidiano, do padronizado. Para o mundo da padronização, a Poesia é coisa de sentimentalóides – as visitas se sentem ofendidas ou perturbadas. Nenhum vê o mundo com a autenticidade de uma Clarisse...


Faber adverte Montag para não incomodar os anti-livros, que ele deve ter paciência – Faber dá o apoio moral que Montag precisa, ainda mais quando o bombeiro volta ao quartel da salamandra no fogo, onde Beatty o recebe com ironia,


A ovelha voltou ao redil. Somos todos ovelhas que às vezes se extraviam. A verdade é a verdade, até o fim das contas, é o que proclamamos.” (p. 136*)


Aqui o coletivo X indivíduo, tal qual vimos em Brave New World e 1984. Beatty tem segurança, fala com autoridade, pois fala em nome de um coletivo, uma abstração – a Ordem, a Disciplina, a Sociedade – enquanto Montag é frágil pois é apenas um indivíduo contra a multidão, contra a Ordem.


Beatty se dá ao luxo de ser irônico e amargo ao rechear suas falas com citações de livros – ora, Beatty é um leitor? Mas ele lê quais livros? Afinal, ele é o responsável pela queima de livros! (Mas percebemos em Brave New World que Mustapha Mond tem Shakespeare e Blake na biblioteca particular, e O'Brien em 1984 conhece História – a mesma História que ele ajuda a apagar, deturpar...)


Que traidores os livros podem ser! - Beatty tira citações de livros e embaralha todas para dizer o contrário – que os livros se contradizem – assim tirar frases de um contexto : uma técnica que qualquer sofista conhece bem para construir argumentos falaciosos... Faber precisa alertar Montag de que


Lembre-se de que o capitão está alinhado com os inimigos mais perigosos da verdade e da liberdade, com os rebanho impassível da maioria.” (p. 138*)


Mas a sirene ressoa – há um chamado, outra delação! “Aqui vamos nós para manter o mundo feliz, Montag!” (p. 140*) diz o capitão.


Montag não consegue ocultar o mal-estar em continuar no trabalho de bombeiro – então ele percebe que está diante da própria casa! Realmente, a esposa Mildred não demorou a delatar as leituras do marido.


A partir daqui – a Parte 3 – a cronologia do enredo se acelera, se precipita, o protagonista precisa tomar decisões, assumir sua subversão, fugir das autoridades. É o mesmo caminho de John, o Selvagem, em Brave New World, e de Winston Smith, em 1984. o indivíduo encontra-se só contra o governo, contra a sociedade, contra o mundo.


Montag será obrigado a queimar a própria casa! E depois será preso! Mas enquanto incendeia tudo, enquanto apaga o próprio passado, ele precisa suportar as provocações do capitão, que desconfia que Montag não está sozinho na 'subversão' – e para proteger Faber, Montag vira o lança-chamas contra o capitão Beatty. Mas – e somente depois o ex-bombeiro percebe – é como se Beatty QUISESSE que Montag o mata-se, como se Beatty tivesse desistido de também ser queima-livros.


Na fuga, Montag precisa enfrentar o tal cão-robô que injeta entorpecente e mata a vítima de paralisia. O mocinho do romance consegue fugir – ao contrário de John, o Selvagem e de Winston. Mas toda a vida anterior do protagonista está perdida, deletada, literalmente queimada! Ele passa a ser um fugitivo, um marginal. Ele precisa da ajuda de Faber para fugir da cidade, para além do rio.


Ao mesmo tempo a guerra é declarada – e para distrair o povo, a TV transmite a perseguição ao subversivo e assassino Montag! Aqui o romance se torna uma paródia de livro policial, de ação, que a indústria cultural de Hollywood adoraria filmar! E que Truffaut evitou no filme clássico de 1966. Um filme mais lírico do que thriller explosivo.


O mais sensacional e original nesta etapa final não é a fuga, mas o encontro – o encontro com os estranhos andarilhos ao redor de uma fogueira. Poderíamos confundi-los com hippies, hipsters beatniks nas estradas. Mas são literatos, ex-professores, ex-escritores, ex-bibliófilos, poetas do mundo sem-bibliotecas, homens-livros ambulantes!


Eles decoram trechos, ou livros inteiros, e conservam assim a literatura! “Decore o meu poema / livros duram pouco”, escreveu o poeta húngaro György Faludy (1910-2006), lembrando que a literatura não está apenas nos livros – os livros apenas 'armazenam' um texto – que somente ganha vida quando tem um leitor (é a relação texto-leitor que presentifica a obra e ressuscita a voz autoral, segundo podemos ler na “Estética da Recepção”, a escola teórica dos críticos alemães H. R. Jauss e W. Iser) – a ponto de se perguntar, Você, leitor? Que livro você gostaria de ser?

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link para o poema de G. Faludy
http://www.opendemocracy.net/arts/faludy_3872.jsp
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minha tradução em
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/07/decore-este-meu-poema-g-faludy.html
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sobre a Estética da Recepção
http://ptmiriamfajardo.pbworks.com/w/page/19749775/Estética-da-Recepção
http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/imago/site/recepcao/textos/livia2.htm



Realmente vale a pena ler o romance só para encontrar estes homens-livros que resguardam em suas mentes verdadeiras obras-primas da literatura mundial. Montag imagina se não delira! Ele não está num livro, vive uma outra vida realmente! (O que soa no mínimo irônico, pois, afinal, ele é personagem de um romance!)


É a parte mais literária do romance. A fuga de Montag é até poética, ainda que dramática. Mesmo com Montag fora de alcance, a 'caçada continua'. Um desavisado qualquer será preso e/ou morto para salvar a honra da polícia. Um inocente morre no lugar de Montag – que agora está oficialmente morto. Ele adere ao grupo de homens-livros - “Bem-vindo a terra dos mortos!”


Ali perambulam os ex-professores, ex-literatos, reverendos, poetas, eis o que são os hippies, os párias do mundo-anti-livros. Nas margens do rio, fora da cidade – a cidade agora é alvo de bombardeios! - eles vivem, ou sobrevivem, como nômades, fugitivos, a decorarem livros, e depois se livrando das 'provas' que incriminam.


Os homens-livros, ao redor de suas fogueiras, assim se apresentam, entre irônicos e heréticos,


Eu sou a República de Platão. Gostaria de ler Marco Aurélio? O Sr. Simmons é Marco Antonio.” (p. 186*)

Lemos os livros e os queimamos. Guardamos na cabeça. Somos todos fragmentos de obras de história, literatura e direito internacional.” (p. 187*)

Se formos destruídos, o conhecimento estará morto, talvez para sempre.” e “Somos a minoria excêntrica que clama no deserto.” (p. 187*)


Estes verdadeiros João Batistas esperam um Messias no futuro para re-instaurar a cultura letrada. Cada pessoa decorou capítulos, trechos, livros inteiros, e narra estas histórias aos outros, ou espera um momento, no futuro, para reescrever e reeditar os livros, assim como os monges copistas conservaram a literatura clássica (dos gregos, dos romanos) ao longo da Idade Média.


Os marginais exilados do mundo anti-livros formam uma quase comunidade de leitores banidos que somente sobrevivem para conservarem obras literárias. Uma bela metáfora, uma bela fábula do nosso fanatismo da leitura, nós, os leitores compulsivos, que somente ganhamos da leitura a própria leitura – como dizia Virginia Woolf – que somente temos da leitura o prazer de ler, nada mais.


O livro somente é literatura quando aberto pelos leitores e saboreado e deglutido e digerido – pois os leitores, como se fossem boas traças, se nutrem de estórias, histórias, fábulas, parábolas, contos, poemas, romances, baladas, epopeias, em suma, tudo isso revivido enquanto processo de leitura, enquanto re-criação na mente do/a leitor/a daquele universo ficcional – e confessional – criado/a pelo Autor/a.


O recado do autor Ray Bradbury com o seu (já clássico!) “Fahrenheit 451” é a de que os leitores precisam proteger – com seus próprios corpos e mentes, se necessário – os livros que conservam, que dialogam, que transmitem de geração a geração um saber que não é de Direitas ou Esquerdas, de maiorias ou minorias, nem dos autores nem de leitores, mas manifestação da obra de arte enquanto superação, enquanto contestação, enquanto novidade num mundo massificado e alienado. Qualquer censura é apenas a conservação e perenização da mediocridade e da mesmice.



(*)todas as citações são da tradução de Cid Knipel (São Paulo: Globo, 2003)



jun/11



Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com








Referências


BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. tradução: Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2003.



Links

sobre “Fahrenheit 451
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fahrenheit_451
http://www.cliffsnotes.com/study_guide/literature/Fahrenheit-451-Critical-Essays-Dystopian-Fiction-and-Fahrenheit-451.id-106,pageNum-16.html




LdeM


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segunda-feira, 18 de julho de 2011

sobre a distopia '1984' - de G. Orwell (2/2)









sobre “1984” (“1984”, 1949)
romance de George Orwell (Eric Blair, 1903-50)


A denúncia da distopia totalitária




2/ 2




O'Brien ao fazer parte do inner circle do Partido tem alguns privilégios – não é constantemente vigiado, pode desligar a tv-tela quando quiser, em suma, não sofre policiamento como um membro qualquer. Sua liberdade relativa tem relação com as suas responsabilidades – se o Partido não confiasse nele, ele já teria sido 'vaporizado'. Mas as esperanças de Winston levam-no a acreditar mais na Irmandade, assim o protagonista dá o passo fatal, como veremos.


“Ele fez uma pausa, entendendo, pela primeira vez, a vagueza de seus próprios motivos. Desde que ele de fato não sabia que tipo de ajuda ele esperaria de O'Brien, não era fácil dizer porque ele viera até ali. Ele continuou, consciente que o que ele estava dizendo devia soar tanto débil quanto pretensioso:

'Nós acreditamos que há algum tipo de conspiração, algum tipo de organização secreta trabalhando contra o Partido, e que você está involvido nela. Queríamos nos juntar a ela e trabalhar por ela. Somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do Soc.Ing. Somos criminosos-do-pensamento. Somos também adúlteros. Digo isso porque nós queremos nos colocar a sua mercê. Se você quiser nos incriminar de algum modo, estamos prontos.”

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He paused, realizing for the first time the vagueness of his own motives. Since he did not in fact know what kind of help he expected from O'Brien, it was not easy to say why he had come here. He went on, conscious that what he was saying must sound both feeble and pretentious:

'We believe that there is some kind of conspiracy, some kind of secret organization working against the Party, and that you are involved in it. We want to join it and work for it. We are enemies of the Party. We disbelieve in the principles of Ingsoc. We are thought-criminals. We are also adulterers. I tell you this because we want to put ourselves at your mercy. If you want us to incriminate ourselves in any other way, we are ready.'
p. 140, P.II



Uma vez em contato com O'Brien – e um suposto conhecimento que este tem, e que chegará às mãos de Winston – e obviamente saberemos – a narrativa ora adquire panoramas históricos ora prende-se a detalhes de uma vida íntima de casal. É um jogo de 'vida social' versus 'vida pessoal', pois conheceremos um pouco mais de 'História' – sabe-se lá qual versão agora – e um pouco mais dos pensamentos – e atividades – íntimas do protagonista, que torna-se mais corajoso porque não está mais sozinho. (Enquanto leitor até penso que Júlia poderia ser uma ótima delatora...)


No momento Winston só pode mesmo confiar. Acreditar em contato com os discípulos de Emmanuel Goldstein (os trotskistas?), com aqueles que vão derrubar o todo-poderoso Grande Irmão (que não sabemos se existe – pode ser apenas a 'personificação' do Partido...), e acabar com o controle do pensamento e com a História reescrita. Winston está disposto a morrer em luta, disposto a matar, a trair o país, a forjar documentos, etc, ou seja, tudo o que os revolucionários faziam em nome da “Causa” - que levou justamente à ditadura do Partido único e onipotente. Subversão para tirar a subversão oficializada? Novos revolucionários contra os revolucionários-reacionários de hoje? Confusão- eis o que envolve o protagonista (e nós, os leitores).


Winston então recebe um livro – aliás, O livro – como uma bíblia sagrada do movimento anti-Partido – assim como antes o “Manifesto Comunista” era a bíblia oculta dos revolucionários que se encastelam no poder. Para abater o Partido é preciso um livro com revelações? Ou seria um manual de táticas de guerrilha? Como ser um revolucionários bem-sucedido contra aqueles que já foram revolucionários um dia? De qualquer modo, vamos folhear, portanto, “A Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico” (“The Theory and Pratice of Oligarchical Collectivism”), 'coletivismo oligárquico' que poderia ser denominado também como o “socialismo real”, ou o “capitalismo de Estado”.


Mas não se assuste o leitor se ler - de repente - que a Oceânia está em guerra com a Estásia! A guerra é mesmo uma 'caixinha de surpresas'! E Winston vai descobrindo como a História é farsa – mais forjada do que ele imaginava! Teremos uma aula de História – na versão dos subversivos – assim como os Comunistas contam a História ocidental como uma 'luta de classes' – mas cada grupo social cria sua própria História. Os cristãos escrevem a História do pecado e da Redenção, os budistas esperam outra reencarnação de Buda, e os materialistas anotam as safras e entressafras e oscilações das bolsas de Valores. A chamada 'História Oficial' apenas serve aos grupos hegemônicos, os que dominam a máquina de propaganda e oficializam uma versão que é mais conveniente aos seus interesses.


Se a guerra é bom negócio, um modo de manter as massas populares eletrizadas e aceitando as medidas restritivas, então porque parar a guerra? Se a guerra é de interesse do Estado, por que não transformar a guerra numa rotina? Por que não educar as crianças para a economia de guerra? Para a doutrinação de guerra – nós somos os mocinhos e os inimigos são os vilões? Assim é mais fácil dominar – pelo medo e pela doutrinação – quando as populações esperam a qualquer momento uma proclamação de vitória ou um estrondo de bomba ali ao lado. Tanto a vitória quanto a derrota são manipuladas segundo os interesses dos poderosos. O povo sempre perde.


As potências, incapazes de derrotarem definitivamente uma a outra, mantendo-se em conflitos de fronteiras ou 'guerra fria', garantem às suas populações que somente uma medida defensiva ( que poder ser ofensiva...) com exércitos em prontidão, com toda a 'eficiência militar', é possível manter a 'paz' – por isso a confusão guerra = paz. Para manter a paz nós entramos em guerra...!


“Numa combinação ou outra, estas três potências [Oceania, Eurásia e Estasia] estão em guerra permanente, e tem sido assim nos últimos vinte e cinco anos. A guerra, de qualquer modo, não é mais a luta desesperada e aniquilante que foi nas primeiras décadas do século vinte.” (“In one combination or another, these three super-states are permanently at war, and have been so for the past twenty-five years. War, however, is no longer the desperate, annihilating struggle that it was in the early decades of the twentieth century.” p. 153, P.II)


“O objetivo primário da guerra moderna (de acordo com os princípios do duplo-pensar, este objetivo é simultaneamente reconhecido e não-reconhecido pelas mentes dirigentes do Partido Interior) é usar os produtos da maquinaria sem elevar o padrão geral de vida. Mesmo desde o fim do século 19, o problema do que fazer com o excesso de bens de consumo tem estado latente na sociedade industrial. Atualmente, quando poucos seres humanos têm o suficiente para comer, este problema é obviamente não urgente, e nem se tornaria assim, mesmo se nenhuma processo artificial de destruição não estivesse em funcionamento.”
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The primary aim of modern warfare (in accordance with the principles of doublethink, this aim is simultaneously recognized and not recognized by the directing brains of the Inner Party) is to use up the products of the machine without raising the general standard of living. Ever since the end of the nineteenth century, the problem of what to do with the surplus of consumption goods has been latent in industrial society. At present, when few human beings even have enough to eat, this problem is obviously not urgent, and it might not have become so, even if no artificial processes of destruction had been at work. p. 155, P. II



“O essencial do ato de guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. Guerra é um modo de despedaçar, ou espalhar na atmosfera, ou afundar no fundo do mar, materiais que deveriam de outro modo fazer as massas viverem mais confortáveis, e assim mais inteligentemente. Mesmo quando armas de guerra não sejam realmente destruídas, a fabricação delas é ainda um modo conveniente de gastar a força de trabalho sem produzir algo que possa ser consumido.”
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The essential act of war is destruction, not necessarily of human lives, but of the products of human labour. War is a way of shattering to pieces, or pouring into the stratosphere, or sinking in the depths of the sea, materials which might otherwise be used to make the masses too comfortable, and hence, in the long run, too intelligent. Even when weapons of war are not actually destroyed, their manufacture is still a convenient way of expending labour power without producing anything that can be consumed. p. 157 P.II


“A guerra é negociada por cada grupo dirigente contra os seus próprios súditos, e o objetivo da guerra não é conquistar ou defender territórios, mas manter intacta a estrutura da sociedade. A palavra 'guerra', assim, tornou-se enganosa. Seria provavelmente certo dizer que ao tornar-se contínua a guerra deixa de existir.

[…]

A paz que fosse de fato permanente seria o mesmo que uma guerra permanente. Este – apesar de que a vasta maioria dos membros do Partido entendam apenas um sentido raso – é o significado profundo do slogan do Partido: GUERRA É PAZ.”

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The war is waged by each ruling group against its own subjects, and the object of the war is not to make or prevent conquests of territory, but to keep the structure of society intact. The very word 'war', therefore, has become misleading. It would probably be accurate to say that by becoming continuous war has ceased to exist.

[…]

A peace that was truly permanent would be the same as a permanent war. This--although the vast majority of Party members understand it only in a shallower sense--is the inner meaning of the Party slogan: WAR IS PEACE.
p. 164, P. II



As guerras servem aos interesses das oligarquias que conservam privilégios, enquanto deviam as atenções para os inimigos externos. Estes poderosos mantêm todo um sistema de hierarquias, de comando, de senhas e contrassenhas, de arquivos confidenciais, de informações privilegiadas, que mantem sua força justamente com a ignorância das massas. Daí Ignorância = Força, como bem proclama o Partido.


E o Partido impera porque o ser humano tem medo da igualdade, da prosperidade, das utopias, em suma. Durante as revoltas da década de 1930, o pensador alemão Erich Fromm escreveu uma obra com o elucidativo título “Escape from Freedom”, Fuga da Liberdade, ou também “The Fear of Freedom”, pois as pessoas teriam um medo diante da liberdade. É por isso que seguiam slogans, líderes, numa marcha de 'maria-vai-com-as-outras', que desembocou nos movimentos de massas – nacionalismos, bolchevismo, fascismos, nazismo, estalinismo – que eram verdadeiros exemplos do que o pensador francês Étienne de La Boètie chamava de “servidão voluntária”. A obediência ao líder é uma forma de 'doença coletiva'.


“A mutabilidade do passado é o dogma central do Soc.Ing. Acontecimentos do passado, é argumentado, têm nenhuma existência objetiva, mas sobrevivem apenas em registros escritos e nas lembranças humanas. O passado está de qualquer modo em acordo com os registros e lembranças. E desde que o Partido tem pleno controle de todos os registros e igualmente pleno controle das mentes dos membros, segue-se que o passado é de qualquer modo o que o Partido escolher.”
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The mutability of the past is the central tenet of Ingsoc. Past events, it is argued, have no objective existence, but survive only in written records and in human memories. The past is whatever the records and the memories agree upon. And since the Party is in full control of all records and in equally full control of the minds of its members, it follows that the past is whatever the Party chooses to make it. p. 176, P. II



Durante a longa leitura de trechos, e até capítulos inteiros, do livro proibido, podemos pensar numa troca da Narração pela Dissertação, onde o Autor preferiria explicar, tematizar do que tecer figurações. Claro que o Leitor – como indica Wolfgang Iser, em “O Ato da Leitura” - preenche as 'lacunas' – pois se o protagonista lê, ele lê em algum lugar, em algum tempo, sozinho ou acompanhado, em silêncio ou em voz alta (aqui sabemos que ele está com Júlia, e lê para ela em voz alta...), então a seção dissertativa está INSERIDA na teia narrativa.


O que Orwell deseja é fazer uma crítica do Poder – assim como Kant fizera uma Crítica da Razão – pois enquanto socialista-à-la-anarquista, o Autor teme que grupos oligárquicos – sejam revolucionários-profissionais, sejam burocratas-partidários, sejam milícias populares – alcancem o poder e lá se acomodem, perseguindo todos os outros grupos e sub-grupos, que poderiam querer ascender aos núcleos de decisão. É assim que as Elites se mantêm no poder – basta ler “Os Donos do Poder” do sociólogo e historiador Raymundo Faoro (1925-2003), que aborda a formação das Elites brasileiras.


Os burocratas do Partido formam uma 'nova classe' – e não destroem todas as classes, como pregava a Revolução – quando ao modo de uma 'nobreza' ocupam os melhores cargos e usufruem de privilégios. Não exatamente uma hierarquia de nascimento – não há transferência de títulos nobiliárquicos – mas os filhos dos burocratas terão mais chances de ocuparem cargos – assim como nas castas militares, os filhos de militares têm mais acesso à carreira das armas.


“Pois o segredo da dominação é combinar uma crença na própria infalibilidade com o Poder de aprender com os erros do passado. É necessário ser dito que o praticantes mais sutis de duplo-pensar são aqueles que inventaram o duplo-pensar e sabem que é um vasto sistema de dissimulação mental. Em nossa sociedade, que tem o melhor conhecimento do que está acontecendo estão também aqueles que estão longe de ver o mundo tal como é. Em geral, quanto maior o entendimento, maior a ilusão; o mais inteligente, o menos saudável mentalmente.”
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For the secret of rulership is to combine a belief in one's own infallibility with the Power to learn from past mistakes. It need hardly be said that the subtlest practitioners of DOUBLETHINK are those who invented DOUBLETHINK and know that it is a vast system of mental cheating. In our society, those who have the best knowledge of what is happening are also those who are furthest from seeing the world as it is. In general, the greater the understanding, the greater the delusion; the more intelligent, the less sane. p. 177, P.II



Os revolucionários chegam ao poder, atuam para fortalecer o poder, tudo em nome do Socialismo, mas na verdade toda a ação vem a engessar ou destruir as atitudes socialistas – não socializam, mas estatizam; não descentralizam os fóruns de decisão, mas centralizam o poder. Os revolucionários desistiram do socialismo? Os revolucionários foram derrotaram por reacionários dentro do próprio Partido? Houve uma 'quartelada' sem que os não-membros soubesem? Winston entende como o poder se consolidou, mas não entende os motivos. Impossibilidade do socialismo? Desistências e desânimos dos revolucionários? Acomodação e sede de poder?


Já que Winston descobre – e nós sabemos – quais foram os métodos e processos de consolidação do Poder das 'oligarquias coletivistas' que se proclamam 'socialistas', o importante agora é entender as motivações – e é o que nos prende agora ao texto. Afinal, o leitor é uma espécie de investigador; e no caso de '1984', sabemos junto com o protagonista, aprendemos com ele a cada nova fase. Ele desconfia, nós desconfiamos; ele teoriza, nós teorizamos; ele escolhe a subversão, nós acompanhamos sua subversão; ele trai o Partido, e nós também traímos. O que ele sabe é o que nós sabemos, e só sabemos o que ele sabe. Não sabemos se ele sairá vivo dessa aventura.


Winston sabe que até pensar contra o Partido é um crime, aliás, é já estar morto. Mas a segurança que ele imagina ter – num quarto de subúrbio, junto aos proles, longe das telas, monitores, crianças delatoras, etc – pode muito bem ser outra armadilha. Há uma paranoia de conspiração constante aqui. Ele desconfia até de si-mesmo: quando se sente satisfeito tem até momentos de culpa. Ele pode se afastar dos centros do Partido, mas o controle partidário está instilado dentro dele – chega um momento em que não se precisa mais de tv-telas para vigiar o cidadão: o próprio cidadão vigia a si-mesmo.


O quarto que parecia um útero de segurança, uma fuga da padronização, até uma nova oportunidade de vida íntegra, revela-se outra peça do jogo do poder. O que parecia inofensivo pode revelar câmeras ocultas e microfones embutidos. Tudo aquilo que conhecemos dos filmes de espionagem da Guerra Fria. Um casal numa cena de amor, numa quarto em penumbra, e desconhecem que tudo o que fazem e tudo o que dizem está sendo filmado e gravado. Não há mais privacidade no mundo controlado. Vivemos rastreados por câmeras. “Você pode estar sendo filmado”.


Obviamente que o casal é preso e torturado. Estão agora nas mãos da Polícia do Pensamento (Thought Police), uma mistura de Gestapo com KGB e Stasi, a personificação em uniforme do Estado contra o cidadão. De praxe em livros e filmes de totalitarismos. Não há 'habeas corpus', nem 'direitos humanos', nem 'dignidade humana' numa mundo totalitário – apenas o poder do Estado, do Governo, do regime político. O que faz a diferença no '1984' de Orwell é a explicitação das violências antes veladas – tanto físicas quanto psicológicas. Somos convidados a assistir as cenas de tortura e lavagem cerebral. Adentramos as salas abafadas, fétidas, cheias de sangue, onde a individualidade do detento é esmagada, desfigurada, eliminada. Ao fim da tortura ele pode estar ainda vivo – mas não é mais ele mesmo. Está pronto para trair os companheiros e a Causa. Ele é um convertido ao regime que o esmagou.


Na Parte III do romance, o protagonista está face a face com os torturadores nas masmorras do ironicamente denominado Ministério do Amor, mas que poderia ser o Quartel da Gestapo na Prinz-Albrechtstrasse em Berlim ou o prédio da KGB na Praça Lubianka em Moscou. Lugares amaldiçoados por todos os revolucionários e que se tornaram aparatos de poder para os revolucionários no poder, ou para os reacionários. Num movimento de avanço e recuo numa verdadeira estratégica bélica para assegurar as rédeas do poder.


Na prisão – onde os prisioneiros políticos são os mais temerosos – acabam o que restava de dignidade humana, num antro de prostituição, miséria, drogas, subornos, que nada tem de 'ressocializante', ao contrário, somente aumenta a sede de vingança e o instinto assassino dos presos. Há uma atmosfera de medo que já destrói o prisioneiro antes mesmo de ele ser torturado, pisado, quebrado até a medula. Por exemplo, a simplesmente menção de uma sala 101 um curto-circuito de arrepios percorre os presos políticos.


“Mais prisioneiros iam e vinham, misteriosamente. Um, uma mulher, estava indicada para a 'sala 101', e, Winston notou, parecia arrepiar-se e ficar pálida quando ouvia as palavras.” (“More prisoners came and went, mysteriously. One, a woman, was consigned to 'Room 101', and, Winston noticed, seemed to shrivel and turn a different colour when she heard the words.” p. 193, P. III”)


Na sala da prisão, Winston reencontra O'Brien. Também investigado? Também preso? Ou O'Brien apenas apareceu para delatar mais alguns 'companheiros' da tal Irmandade? Neste romance todo muito é suspeito, pois todos desconfiam de todos, todos vigiam todos. O famigerado Grande Irmão é o olhar de cada cidadão ao vigiar o cidadão ao lado – não é uma 'entidade', é um símbolo da não-privacidade.


É de se imaginar porque os torturadores não acabam logo com o serviço. Porque os policiais perdem tanto tempo em destruir um homem. Por divertimento? Por sadismo? Para sentirem o gosto do poder? Por que O'Brien perde tanto tempo em extrair os pensamentos de Winston? Por que explica e revela os fatos que tanto ele – quanto nós – desconhecemos? É para esclarecer ao protagonista – ou aos leitores? O papel de O'Brien aqui é o mesmo do Grande Inquisidor no romance “Os Irmãos Karamázovi” de Dostoiévski. É o mesmo papel de Mustapha Mond em “Admirável Mundo Novo” e do Capitão Beatty em “Fahrenheit 451” - eles têm o poder de eliminar o 'subversivo' mas ainda se dão ao trabalho de conversar com o condenado, explicar tudo, revelar tudo, justificar-se.


No interrogatório de Winston há toda uma paródia dos Expurgos de Moscou, durante os anos de 1930, quando Stalin limpava os quadros do Partido, expulsando os velhos bolcheviques, para instalar os novos burocratas. Os condenados, em verdadeiras exibições, os julgamentos públicos, confessavam até o que nunca poderiam ter feito. Crimes que sequer poderiam cometer! (Talvez até quisessem, mas só pensar em cometer um crime – é um crime?)


“Ele [Winston] confessou que durante anos ele estivera em contato pessoal com Goldstein e fora membro de uma organização secreta que incluía quase todas as pessoas que ele conhecera. Era mais fácil confessar tudo e implicar todos. Além disso, em certo sentido era tudo verdade. Era verdade que ele fora o inimigo do Partido, e aos olhos do Partido não havia distinção entre o pensar e o agir.”
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He confessed that he had murdered his wife, although he knew, and his questioners must have known, that his wife was still alive. He confessed that for years he had been in personal touch with Goldstein and had been a member of an underground organization which had included almost every human being he had ever known. It was easier to confess everything and implicate everybody. Besides, in a sense it was all true. It was true that he had been the enemy of the Party, and in the eyes of the Party there was no distinction between the thought and the deed. p. 200, P.III

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mais sobre os Expurgos de Moscou – 1934-39
http://www.coladaweb.com/historia/revolucao-russa-parte-2
http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Expurgo
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Novamente, no momento da tortura, O'Brien surge como o que sabe-demais, o que pode conduzir tanto à libertação quanto à prisão – ele pode ser mesmo o líder de um 'grupo de resistência', mas apenas para atrair os 'resistentes' para as redes de vigilância da 'Polícia do Pensamento'. O'Brien pretende extrair os pensamentos criminosos de Winston – ora o torturador se mostra irascível, ora mostra-se 'camarada', alterna ira com piedade, confunde as percepções do prisioneiro, destrói toda a resistência física e mental.


“Ele [Winston] estava se erguendo da cama de tábua na semi-certeza que ele ouvira a voz de O'Brien. Durante todo o seu interrogatório, apesar de nunca tê-lo visto, ele [Winston] sentira que O'Brien estava junto, fora de vista. Era O'Brien quem estava dirigindo tudo. Fora ele quem enviara os guardas até Winston e quem impedira-os de o matarem. Fora ele quem decidira quando Winston deveria gritar de dor, quando dar uma pausa, quando alimentá-lo, quando ele devia dormir, quando injetar os entorpecentes. Era ele [O'Brien] quem fizera as perguntas e sugerira as respostas. Ele era o torturador, ele era o protetor, ele era o inquisidor, ele era o amigo. E certa vez – Winston não podia se lembrar se era num sono entorpecido, ou num sono normal, ou mesmo num momento de vigília – uma voz murmurara em seu ouvido: 'Não se preocupe, Winston; você está sob a minha guarda. Durante sete anos eu observei você. Agora o ponto decisivo chegou. Eu salvarei você, eu farei você perfeito.' Ele não esta certo se fora a voz de O'Brien; mas fora a mesma voz que dissera a ele, 'Nós nos encontraremos no lugar onde não há escuridão,' naquele outro sonho, sete anos antes.”
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He was starting up from the plank bed in the half-certainty that he had heard O'Brien's voice. All through his interrogation, although he had never seen him, he had had the feeling that O'Brien was at his elbow, just out of sight. It was O'Brien who was directing everything. It was he who set the guards on to Winston and who prevented them from killing him. It was he who decided when Winston should scream with pain, when he should have a respite, when he should be fed, when he should sleep, when the drugs should be pumped into his arm. It was he who asked the questions and suggested the answers. He was the tormentor, he was the protector, he was the inquisitor, he was the friend. And once--Winston could not remember whether it was in drugged sleep, or in normal sleep, or even in a moment of wakefulness--a voice murmured in his ear: 'Don't worry, Winston; you are in my keeping. For seven years I have watched over you. Now the turning-point has come. I shall save you, I shall make you perfect.' He was not sure whether it was O'Brien's voice; but it was the same voice that had said to him, 'We shall meet in the place where there is no darkness,' in that other dream, seven years ago. p. 201, P. III


O'Brien tortura e, paternalmente, ministra explicações, dá aulas tal um professor atencioso, “Quando ele falava sua voz era gentil e paciente. Ele tinha o ar de um doutor, um professor, ou mesmo um padre, ansioso para explicar e persuadir mais do que punir.” (“O'Brien's manner became less severe. He resettled his spectacles thoughtfully, and took a pace or two up and down. When he spoke his voice was gentle and patient. He had the air of a doctor, a teacher, even a priest, anxious to explain and persuade rather than to punish.” p. 203, P. III)


A imagem do torturador se confunde com a do professor que conversa com aluno indisciplinado, “O'Brien olhava-o com atenção. Mais do nunca ele tinha o ar de uma professor se esforçando com uma criança teimosa, mas promissora.” (“O'Brien was looking down at him speculatively. More than ever he had the air of a teacher taking pains with a wayward but promising child". p. 204, P. III)


A necessidade da mutabilidade do passado – o mudar da memória – para se manter o poder. O partido deve ser infalível – mesmo que para isso os acontecimentos históricos tenham que ser mudados. Ou melhor, os registros dos acontecimentos históricos. “Nós, o Partido, controlamos todos os registros, e nós controlamos todas as lembranças. Então controlamos o passado, não é?” ( “We, the Party, control all records, and we control all memories. Then we control the past, do we not?'” p. 205, P. III )


Assim os governos controlam os registros, decretam 'top secret' e ninguém sabe o que acontece nos bastidores das políticas, das diplomacias. Mas, ainda bem que hoje temos o Wikileaks para adentrar arquivos confidenciais e disponibilizar tudo na rede mundial de computadores.


Para o inquisidor, o crime de Winston : não disciplinar-se, não controlar a própria memória. “Você não fez o ato de submissão que é o preço da sanidade. Você preferiu ser um lunático, uma minoria de um apenas. Apenas a mente disciplinada pode ver a realidade, Winston.” ( “You would not make the act of submission which is the price of sanity. You preferred to be a lunatic, a minority of one. Only the disciplined mind can see reality, Winston.” p. 205, P. III)


Aqui, O'Brien atua como um inquisidor-psicanalista ao declarar que Winston é louco, não o mundo em que ele vive. A Realidade existe deformada nos cidadãos deformados – e Winston é louco porque não é suficientemente deformado!


A mente solitária de Winston é rotulada de louca, pois a sanidade é estar de acordo com os ditames do Partido. A mente do Partido é coletiva e imortal! Não pode errar – e caso ocorrer erro, é o evento que é apagado, deletado, do arquivo) O Partido diz que 2 + 2 = 5, então o cidadão deve aceitar que 2 + 2 = 5, sem pestanejar.


O'Brien, paternalista e inquisidor, é amado e temido, é admirado e demonizado por Winston – uma verdadeira 'síndrome de Estocolmo' que se estabelece entre a vítima e o carrasco.

“Ele [Winston] abriu os olhos e observou O'Brien com gratidão. À visão da pesada e delineada face, tão feia e tão inteligente, seu coração parecia revirar. […] Ele nunca o amou tão profundamente como neste momento, e não apenas porque ele fez cessar a dor. O velho sentimento, que jazia fundo que não importaria se O'Brien era um amigo ou um inimigo, voltou. O'Brien era uma pessoa com quem ele poderia conversar.”
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[…] He opened his eyes and looked up gratefully at O'Brien. At sight of the heavy, lined face, so ugly and so intelligent, his heart seemed to turn over. If he could have moved he would have stretched out a hand and laid it on O'Brien's arm. He had never loved him so deeply as at this moment, and not merely because he had stopped the pain. The old feeling, that at bottom it did not matter whether O'Brien was a friend or an enemy, had come back. O'Brien was a person who could be talked to. p. 208, P. III


O Ministério do Amor não apenas faz confessar sob torturas, não apenas ministra dor e punição, mas sobretudo CONVERTE os 'subversivos', os 'não-adaptados' “Nós não meramente destruímos os nossos inimigos; nós os convertemos. (“We do not merely destroy our enemies, we change them.” p. 209) Converter aqui significa 'reajustar', isto é, reintegrar, curar, submeter à terapia. O Partido não pretende criar 'mártires', mas convertidos.


Aqui a ficção faz referência à realidade histórica – a mesma que o Partido 'modifica'. O'Brien faz menção aos regimes totalitários do passado, “Os nazistas alemães e os comunistas russos.” (“German Nazis and the Russian Communists”. p. 209) Os Comunistas julgavam as vítimas em público, mas antes retiravam toda a dignidade do preso – não criavam 'mártires'. Os presos se auto-acusavam!


No mais, a posteridade nada saberá dos 'subversivos' . Aqueles que se rebelaram – e que forem convertidos - serão 'vaporizados' – deletados fisicamente e da memória.


“A posteridade nunca ouvirá sobre você. Você será apagado do fluxo da História. Nada restará de você: nem nome num registro, nem memória num cérebro vivo. Você será aniquilado no passado e também no futuro. Você nunca terá existido.” (“Posterity will never hear of you. You will be lifted clean out from the stream of history. We shall turn you into gas and pour you into the stratosphere. Nothing will remain of you, not a name in a register, not a memory in a living brain. You will be annihilated in the past as well as in the future. You will never have existed.'” p. 210, P. III)


Então por que todo esse interrogatório, toda essa tortura? Objetiva uma lavagem cerebral, uma reconversão do inimigo político.


No cinema podemos nos lembrar de dois subversivos. Ambos em distopias totalitárias, o Neo de “Matrix” (1999) e o John Preston de “Equilibrium”(2002) que se rebelam contra suas vidas controladas por regimes totalitários.


“Nós convertemos [o herético], nós capturamos uma mente mais íntima, nós o reformamos. Nós queimamos todo mal e toda ilusão dele; nós o trazemos para o nosso lado, não em aparência, mas genuinamente, coração e mente. Nós o transformamos em um de nós, antes de o matarmos.” (“We convert him, we capture his inner mind, we reshape him. We burn all evil and all illusion out of him; we bring him over to our side, not in appearance, but genuinely, heart and soul. We make him one of ourselves before we kill him." p. 210, P. III)


A vítima morre amando o Grande Irmão, é portanto uma vítima morta-viva. O'Brien não é hipócrita, ele crê fanaticamente no Partido (outro exemplo de 'lavagem cerebral', a mocinha no filme “V de Vingança” (2006). Ela foi torturada pelo próprio 'mocinho', o tal mascarado V a la 'Guy Fawkes'. No filme, baseado nos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd, o lema era “Strength through Unity – Unity through Faith”, ou seja, “Força através da Unidade – Unidade através da Fé”. E há até uma espécie de 'grande irmão', um tal de Alto Chanceler Adam Sutler (no filme, ou Adam James Susan, no HQ dos anos 1980).

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mais sobre o V de Vendetta
http://pt.wikipedia.org/wiki/V_for_Vendetta
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O'Brien, além do partidário, representa o fanático, o que crê que os métodos são justificados pelos fins, pelos objetivos: criar cidadãos disciplinados e cooperativos. Mas é de se perguntar se O'Brien não seria um dos grandes do Partido. Afinal, o Grande Irmão existe? Existe, porque o Partido existe, e o Big Brother é a corporificação do Partido. Existe até mais do que o próprio Winston – que não existe. “'Ele [Grande Irmão] existe do mesmo modo que eu existo? 'Você não existe – disse O'Brien.'”(“'Does he exist in the same way as I exist?' 'You do not exist,' said O'Brien.” p. 214)


De fato, no coletivismo o indivíduo é o que menos importa – o indivíduo existir ou não é apenas em função do Estado, do coletivo. (É nesse ponto que o anarquismo individualista do Autor se revela – e seu 'socialismo libertário' evidencia ter muito do individualismo iluminista-liberal do Ocidente. Para os Estatismos orientais – ver Arábia, Rússia, Índua, China – o indivíduo é o que menos interessa, pois o idolatrado é o 'bem estar coletivo' (desde que de acordo com os interesses dos líderes, do Partido, do Estado, etc)


A Irmandade existe? Nenhuma resposta é dada – pode ser que sim, mas é logo exterminada pelo regime; pode ser que sim, uma 'resistência' montada pelo próprio regime, para acima trair e neutralizar os subversivos; pode ser que não, ser apenas uma fábula, uma quimera, para desorientar os subversivos. Por exemplo, o tal livro escrito pelo proscrito Goldstein tem trechos escritos pelo próprio O'Brien – o livro é uma farsa montada pelo Partido!


O'Brien – isto é, o Partido – não crê na revolta dos proletários. E realmente nas revoltas bolcheviques, fascistas, hitleristas, as massas proletárias foram instrumentalizadas por vanguardas, partidos, revolucionários profissionais, golpistas – mas as decisões não foram compartilhadas, mas centralizadas nas mãos das novas oligarquias. “Os proletários nunca se revoltarão, nem em mil anos nem em um milhão. Eles não podem.” (“The proletarians will never revolt, not in a thousand years or a million. They cannot.” p. 216, P. III)


Então o Partido governa para o bem do próprio povo? A nova Elite faz tudo em interesse do povo fraco e desprotegido? Ora, o Partido quer o poder pelo próprio poder! É melhor governar do que ser governado! O Partido quer o poder, 'apenas o poder, o poder puro.' não por luxo ou felicidade.


“Somos diferentes de todas as oligarquias do passado pois sabemos o que fazemos. Todas as outras, mesmo as que se assemelham a nós, foram covardes e hipócritas. Os nazis alemãs e os russos comunistas se aproximaram de nós em seus métodos, mas ele nunca tiveram coragem de reconhecer seus próprios motivos.” (“We are different from all the oligarchies of the past, in that we know what we are doing. All the others, even those who resembled ourselves, were cowards and hypocrites. The German Nazis and the Russian Communists came very close to us in their methods, but they never had the courage to recognize their own motives.” p 217) e conclui, “Poder não é um meio; é um fim em si-mesmo.” (“Power is not a means, it is an end.”)


O'Brien não se preocupa consigo mesmo – mas com a Oligarquia. Como um papa da nova Igreja,

“Nós somos os padres do Poder. Deus é o Poder. […] a primeira coisa que você deve entender é o que o poder é coletivo. O indivíduo apenas tem o poder na proporção em que ele deixa de ser um indivíduo. […] Sozinho – livre – o ser humano é sempre derrotado. Mas se ele pode fazer-se completo, sob submissão, se ele pode escapar de sua identidade, se ele pode fundir-se no Partido então ele é o Partido, então ele é todo-poderoso e imortal.”
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“'We are the priests of power,' he said. 'God is power. But at present power is only a word so far as you are concerned. It is time for you to gather some idea of what power means. The first thing you must realize is that power is collective. The individual only has power in so far as he ceases to be an individual. […] Alone--free--the human being is always defeated. But if he can make complete, utter submission, if he can escape from his identity, if he can merge himself in the Party so that he IS the Party, then he is all-powerful and immortal. p. 218, P. III


O Partido cria a realidade: “ A Realidade está dentro do crânio”, cada mente lavada pela propaganda, claro. “Nós fazemos as leis da Natureza” pois o Partido controla até o Saber, crente de que “Nada além da consciência humana”. O totalitarismo está justamente na fusão do indivíduo no todo do regime que se intromete em tudo – fundindo vida particula e vida pública.


Podemos comparar esse poder coletivo com a Nova Classe dos Burocratas, dos Administradores que não possuem os bens de produção, mas administram, controlam. Basta lermos os livros de Milovan Djilas, “A Nova Classe”, 1957, e de Michael Voslensky, “A Nomenklatura”, 1984. ambos os autores trabalharam em sistemas ditos 'comunistas' e sabem do que estão falando. As promessas do comunismo não se realizaram. (Culpa dos Partidos? Culpa do ser humano? Mas, os líderes do Partido não são humanos?)


O sistema do Partido é praticamente 'religioso' – não apenas pela hierarquia de castas – quase 'católico' ao ser universal, com sua crença total, fé na infalibilidade do Grande Líder, submissão islâmica às regras partidárias, etc – nada diferente dos sistemas que rotulamos de 'fundamentalismos'.


“O poder verdadeiro, o poder pelo qual lutamos noite e dia, não é poder sobre coisas, mas sobre homens.”( "The real power, the power we have to fight for night and day, is not power over things, but over men.'" p. 219)


“Poder é despedaçar as mentes humanas e reajuntá-las em novos formatos à sua própria escolha. […] É o exato oposto das estúpidas Utopias hedonistas que os velhos reformadores imaginaram.” (“Power is in tearing human minds to pieces and putting them together again in new shapes of your own choosing. […] It is the exact opposite of the stupid hedonistic Utopias that the old reformers imagined.” p. 220, P. III)

“Progresso em nosso mundo será progresso rumo a maior sofrimento.” (“Progress in our world will be progress towards more pain.” p. 220 )

“O instinto sexual será erradicado. Procriação será formalidade. Aboliremos o orgasmo. Lealdade apenas ao Partido. Amor apenas ao Grande Irmão. Nada de riso, apenas gozo com a derrota do inimigo. Não haverá arte, nem literatura, nem ciência.” (“The sex instinct will be eradicated. Procreation will be an annual formality like the renewal of a ration card. We shall abolish the orgasm. […] There will be no loyalty, except loyalty towards the Party. There will be no love, except the love of Big Brother. There will be no laughter, except the laugh of triumph over a defeated enemy. There will be no art, no literature, no science.” p. 220 )


Aqui as três distopias se assemelham – a dignidade humana é abolida, e tanto artes quanto ciência são instrumentalizadas ou abolidas. O sofrimento e a guerra são usados como métodos de terror e submissão visando maior obediência e idolatria das massas populares – sempre afastados dos centros decisórios. As oligarquias – o Partido, os Burocratas – instauram a dominação permanente em nome da infalibilidade partidária, ou melhor, dos privilégios da 'nova classe'. Aos não-privilegiados somente resta o Terror.


“Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando uma face humana – para sempre.” ( “If you want a picture of the future, imagine a boot stamping on a human face--for ever.” p. 220)


A imagem aqui é a apoteose do romance distópico de Orwell. Nada mais precisaria ser acrescentado – se Winston sobrevive ou não, se reencontra a amante Júlia ou não, se será vaporizado em breve ou não. Temos aqui a imagem do totalitarismo: uma bota a esmagar uma face. Nada mais precisa ser dito. O recado está dado. O Autor faz sua opção por um socialismo desde que libertário – o que o aproxima dos anarquistas, dos libertários anti-estatistas, dos arautos da autogestão. Que ainda sobrevivem enquanto Utopia – até que uma distopia da autogestão venha a ser escrita algum dia.



jun/11


Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com






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sábado, 9 de julho de 2011

sobre a distopia '1984' - de George Orwell (1/2)









sobre “1984” (“1984”, 1949)
romance de George Orwell (Eric Blair, 1903-50)


A denúncia da distopia totalitária

1:2


Os terrestres estão acostumados a destruir coisas grandes e belas”, diz o renegado Spender (nas “Crônicas Marcianas” de Bradbury), e podemos parafrasear com um “Os terrestres estão acostumados a deturpar ideias grandes e belas”. As utopias sempre soam maravilhosas nas ideias, mas quando são colocadas em práticas sempre criam monstruosidades, sociedades-frankenstein, sistemas totalitários erguidos em nome da justiça ou da liberdade.


Desde o século 19 – e na primeira metade do século 20 - várias utopias foram experimentadas no sentido de trazer mais liberdade, fraternidade e igualdade. Líderes se apresentaram para guiar as massas populares rumo ao paraíso terrestre, rumo ao Império de Mil anos, rumo à hegemonia mundial. Mas todos fracassaram e os capitalistas e financistas continuam no poder, com democracia formal e governo corrupto, que serve aos privilegiados.


A Comuna de Paris – de março a maio de 1871 – foi uma das primeiras experiências coletivas de um comunismo. Antes os socialistas utópicos implantavam falanstérios, cooperativas, fazendas coletivas, mas eram porjetos pontuais, movidos por alguns senhores paternalistas bem-intencionados, mas sem alcance social. Sem mudar as estruturas de exploração não se pode mudar a sociedade. O experimento do comunismo de guerra na Europa durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e na Rússia durante a Guerra Civil (1918-21) foi inspiração para os sistemas centralizados e controlados do Fascismo, do Nazismo (ou Hitlerismo) e do Bolchevismo (ou Leninismo - depois radicalizado no reacionário Estalinismo).


Depois do fascismo, do nazismo, do estalinismo, tendo em comum o centralismo partidário, vários autores digeriram suas desilusões com a criação de distopias totalitárias. O que seria perfeito numa Utopia, com controle e administração coletiva, tornara-se pesadelo numa Distopia, com centralismo e terror policial. Dentre estes autores se destacam o russo Yevgeny Zamyatin (1884-1937), autor de “Nós” ( Мы/Mii), de 1921, o inglês Aldous Huxley (autor de “Admirável Mundo Novo”), o também inglês George Orwell (autor de “Animal Farm” e “1984”), e o norte-americano Ray Bradbury (com o incendiário “Fahrenheit 451”)


Como se trata aqui de Meu Cânone, das minhas leituras, considerarei os títulos lidos, o que exclui o livro “Nós” do autor russo, sendo que desconheço tanto obra quanto autor. Sabemos apenas que a obra de Zamyatin inspirou de certa forma o romance 1984, mas não sabemos o quanto. Também o romance “O Zero e o Infinito” (“Darkness at Noon”, ou “Sonnenfinsternis”, 1941) do jornalista judeu anglo-húngaro Artur Koestler (1905-83) serviu como base para alguns contextos de 1984, como as discussões políticas, a questão do 'renegado' que se torna 'inimigo do povo' para os burocratas, as lutas pelo poder dentro do partido centralizador, a formação de nova casta de poder (ver o conceito de “Nova Classe” na obra homônima do socialista iugoslavo Milovan Dilas (1911-95) a denunciar os dirigentes burocratas do Capitalismo de Estado, ou 'Socialismo Real')


Muitas destas questões (centralismo X autogestão, Partido X povo, hierarquia X poder coletivo) estão presentes nos argumentos e contra-argumentos de 1984. É claramente perceptível que a crítica do Autor se dirige contra as deturpações do ideal socialista, e não contra o Socialismo. As preocupações de Orwell mostram que o pouco havia de soviet (conselho de poder coletivo) nas chamadas 'repúblicas soviéticas', pois quem controlava era o Partido centralizador (dito 'comunista').


Ressaltamos que Orwell é anti-estalinista, não anti-socialista, nem liberal, pois para ele o estalinismo não é socialismo, nem um socialismo deformado (como dizia Trotski) mas uma forma de capitalismo totalitário estatal com militarismo e controle do pensamento. Socialismo para Orwell é do tipo autogestão, com poder compartilhado, mais próximo do Anarquismo do que do centralismo bolchevista.


O poder centralizador é justamente 'personificado' por um grande Líder (que assim se proclama) que tem em mãos todos os dispositivos (militar, econômicos, políticos, midiáticos) para fazer valer seus interesses – e tudo em nome do povo, da 'sociedade do futuro'. Este líder é visto como um grande pai ou um camarada, ou iluminado messias, que sempre sabe quais as decisões mais acertadas. As massas populares nada podem opinar, jamais são consultadas, e apenas obedecem aos ditames que vem de cima-para-baixo.


Onipresente, a personificação da Autoridade instila a culpa até no subconsciente dos subordinados. Pois até pensar contra o regime é um crime. Pensamentos subversivos são passíveis de morte. E não há como fugir, pois 'O Grande Irmão observa você' (Big Brother is watching you). Há um novo sistema totalitário em constante guerra, assim a unir a população contra inimigos externos. E proclama o próprio regime como INGSOC, isto é, SOC.ING, 'socialismo inglês'.


Socialismo aqui figurado como um regime mais próximo do 'socialismo real' da URSS, pois temos vários paralelos. O Grande Irmão é o Camarada Stálin, há um renegado (seria Trotski), há uma Polícia do Pensamento (Thought Police) tipo uma NKGB (a Polícia Secreta da URSS), há uma economia planificada, com planos centralizados – assim como existiam na URSS e no III Reich – por exemplo, um Three-Year Plan , Plano Trienal. Também os nome dos Ministérios são reduzidos a siglas, tal qual a conhecida 'nomenclatura soviética' (lembrar que Nomenklatura significa mais restritamente os próprios burocratas, a Elite administrativa).


Mas o Autor não se limitou a 'parodiar' o socialismo real (ou estalinismo) e o hitlerismo, mas criou outros controles. Por exemplo, o totalitarismo é tão profundo que atua até sobre a própria linguagem. O sistema se dedica a criar uma língua eficiente, a chamada Nova-Língua (Newspeak) no continente ao qual então pertenceria a Inglaterra socialista', chamado Oceania. (Percebemos que há toda uma geopolítica no romance, as alianças políticas e militares não são exatamente as que conhecemos, mas ao mesmo tempo fazem um sentido dentro do contesto ficcional. E no mais, os inimigos podem mudar...)


A nova linguagem confunde os conceitos que temos atualmente, advindos do Liberalismo (uma das ideologias divulgadas durante o Século das Luzes), pois uma vez destruído o regime liberal nada mais resta do que palavras que podem ser manipuladas e atreladas a novos campos semânticos. Assim é que “Guerra é paz – liberdade é escravidão – ignorância é força” (War is peace – freedom is slavery – ignorance is strength) e é preciso viver sob tais contradições. Não aceitar a lavagem cerebral da propaganda é crime-pensar, thoughtcrime. Assim os totalitarismos dominam. Um exemplo? Quando os nazistas perdiam a guerra em 1944-45, o povo ainda sofria com a propaganda constante de 'Vitória Final'. Quando as bombas atingiram o próprio solo da pátria, o povo percebeu que não haveriam mais vitórias, apenas a derrota total.


Pois bem, como resistir ao pensamento massificado, fruto de intensa propaganda? Em 1984, o protagonista Winston Smith escreve um diário, onde dá vazão à sua crítica contra o governo, única forma de desabafar, mas mesmo assim ele comete um crime – o pensar-duplo, doublethink. É a partir da mente de Winston que o Narrador nos conduz dentro do universo ficcional. Estamos na Inglaterra em 4 de abril de 1984, quando o protagonista vive entre comícios, trabalho estressante, repressões instintivas.


Aprendemos o que são os “minutos de ódio” (“Two Minutes Hate”), aprendemos que há uma reescrita da História – a guerra é contra quem?, conhecemos uma personalidade marcante, O'Brien , membro do Inner Party, o círculo interno do Partido, conhecemos uma bela jovem que em público reprime a sexualidade exuberante que exerce entre quatro paredes, sendo ela uma filiada a 'Liga Anti Sexo', que dedica-se a implantar a 'repressão sexual'.


Diferente de Brave New World , Admirável Mundo Novo , onde há um incentivo a promiscuidade sexual, em 1984 toda libido deve ser destinada ao esforço partidário, a organização de comícios, ações bélicas, tal como acontecia no hitlerismo e no estalinismo. Sem na distopia de Huxley temos até condições mais próximas ao consumismo e a propaganda erotizada no capitalismo ocidental, dito liberal, na distopia de Orwell só há lugar para a repressão política e individual. Sexo é uma das experiências que mais empolga os humanos, logo deve ser controlado, antes que possa fugir ao controle dos ditadores.


Para reforçar o poder é necessário inimigos. Os externos, são os nacionalistas de outros países, e os internos são os ex-partidários que querem uma 'revolução constante'. Temos em 1984 a figura do Inimigo, do Renegado, ao Apóstata, em Goldstein, o membro do Partido que se tornou-se (é assim declarado pela propaganda oficial) Inimigo do Povo, o bode expiatório, o mesmo papel do porco Bola de Neve em Animal Farm (Revolução dos Bichos), o mesmo papel de Trotski no governo de Stalin.


Assim o Big Brother, o Grande Irmão, é uma paródia do próprio Stalin, em seu megalomaníaco 'culto a personalidade', enquanto Goldstein é a imagem do líder de uma irmandade (aqui os trotskistas?) que se diz a verdadeira herdeira da Revolução, em contraponto ao centralismo usurpador (que seria uma onda reacionária camuflada de revolução...). Realmente é difícil saber quem está mais perto da verdade, até porque a verdade pode ser fabricada. (Goebbels, o propagandista nazista, dizia que uma mentira muito repetida acaba por tornar-se uma verdade...).


A militarização e o ódio está presente quando o estalinismo pretende uma estabilidade social por meio do controle centralizado e do terror. Não apenas o subversivo é 'caçado', mas o cidadão comum que não se adapta. No Terror generalizado qualquer um é suspeito – as prisões na Sibéria precisam gerar produção na forma de 'trabalhos forçados', em campos de concentração – chamados Gulags – que nada diferem dos assemelhados nazistas (estes seriam mais hediondos pois construíram verdadeiras indústrias da morte, os campos de extermínio).


No Terror institucionalizado, quando a vítima se sente culpada, até pensar é crime, é crime-pensar, thoughtcrime. Para melhor exercer controle sobre os membros, o Partido incentiva a delação. A espionagem é comum – é normal e até incentivado que os filhos denunciem os próprios pais – fato comum nos Totalitarismos ( seja fascismo, nazismo, ou estalinismo), pois precocemente as crianças são agregadas em exércitos mirins – temos assim o Komsomol, a juventude leninista, a Hitlerjugend, a juventude hitlerista, por exemplo. E desde cedo as crianças são submetidas as exibições de imagens de batalhas, de prisioneiros de guerra, de cidades em chamas. Elas aprendem a revanche, a vingança, a desforra, a humilhação dos inimigos (externos e internos!).


Não se admira então que os inimigos do governo são 'vaporizados' – no estalinismo, vão para os Gulags ; no nazismo, para os KZ, Konzentration Lager, ou somem 'na noite e na neblina' (“Nebel und Nacht”) sem deixar vestígios – corpo e identidade são cuidadosamente 'deletados'. (Nada diferente do que aconteceu com os revolucionários na Espanha, no chile, na Argentina, no Paraguai, no Uruguai e no Brasil. São 'desaparecidos políticos' que as famílias procuram até hoje... )

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A ordem nazista para o sequestro
e eliminação de inimigos políticos
http://es.wikipedia.org/wiki/Decreto_Nacht_und_Nebel
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É difícil saber o que foi pior: o hitlerismo (nazi-fascismo) ou o estalinismo. Temos muitas coisas em comum – cada regime copiava o que havia de pior no outro! Pois o que desejavam os novos líderes? Nada mais do que manter os dominados passivos. Nada mais do que deseja o Administrador em Brave New World, quando não hesita em elogiar o excesso de entretenimento e livre distribuição de drogas sintéticas.


A violência que tais regimes geraram interna e externamente é impressionante! Basta ver a crueldade e a barbárie da Frente oriental na Segunda Guerra Mundial (ou a Grande Guerra Patriótica, para os russos) onde tanto alemães quanto russos – cidadãos modestos em seus respectivos países - mostraram medonho desrespeito por civis, violentaram mulheres e crianças, queimaram aldeias e até cidades, completamente.


“Winston arrotou novamente. O gin estava perdendo efeito, deixando uma ressaca. A tv-tela – talvez a celebrar a vitória, talvez a abafar a lembrança do chocolate perdido – irrompeu num hino, “Oceânia, isto é para ti”. Era suposto que você devia prestar atenção. De qualquer modo, nesta posição de agora ele estava invisível.

'Oceânia, isto é para ti' deu lugar a uma música mais leve. Winston caminhou até a janela, de costas para a tv-tela. O dia ainda estava frio e límpido. Em algum lugar bem distante um foguete explodia com um estrondo abafado e reverberante. Cerca de vinte a trinta deles caiam por semana em Londres atualmente.

Abaixo na rua o vento fazia oscilar pra lá e pra cá um pedaço rasgado de um poster, e a palavra SOC.ING [INGSOC] completamente aparecia e desaparecia. Soc.Ing. Os princípios sagrados do socialismo-inglês. Nova-Língua, duplo-pensar, a mutabilidade do passado. Ele sentia como se estivesse caminhando nas florestas do fundo do mar, perdido num mundo monstruoso onde ele mesmo era um monstro. Ele estava sozinho. O passado estava morto, o futuro era inimaginável. Que certeza ele teria de que uma simples criatura humana agora estaria ao seu lado? E que modo de saber se o domínio do Partido não duraria PARA SEMPRE? Como uma resposta, os três slogans na face branca do Ministério da Verdade lhe ocorreram: GUERRA É PAZ – LIBERDADE É ESCRAVIDÃO – IGNORÂNCIA É FORÇA

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Winston belched again. The gin was wearing off, leaving a deflated feeling. The telescreen--perhaps to celebrate the victory, perhaps to drown the memory of the lost chocolate--crashed into 'Oceania, 'tis for thee'. You were supposed to stand to attention. However, in his present position he was invisible.

'Oceania, 'tis for thee' gave way to lighter music. Winston walked over to the window, keeping his back to the telescreen. The day was still cold and clear. Somewhere far away a rocket bomb exploded with a dull, reverberating roar. About twenty or thirty of them a week were falling on London at present.

Down in the street the wind flapped the torn poster to and fro, and the word INGSOC fitfully appeared and vanished. Ingsoc. The sacred principles of Ingsoc. Newspeak, doublethink, the mutability of the past. He felt as though he were wandering in the forests of the sea bottom, lost in a monstrous world where he himself was the monster. He was alone. The past was dead, the future was unimaginable. What certainty had he that a single human creature now living was on his side? And what way of knowing that the dominion of the Party would not endure FOR EVER? Like an answer, the three slogans on the white face of the Ministry of Truth came back to him:

WAR IS PEACE - FREEDOM IS SLAVERY - IGNORANCE IS STRENGTH

pp. 25-26, P.I



Por todos os lados – ainda mais dentro da consciência de cada cidadão – estavam os olhos imensos e profundos do Grande Irmão, Big Brother,


“Lá, também, em letras pequenas e claras, os mesmos slogans estavam inscritos, e na outra face da moeda a efígie do Grande Irmão. Mesmo na moeda os olhos te perseguiam. Em moedas, em estampas, nas capas dos livros, nas flâmulas, nos pôsters, e nas embalagens de cigarros – em todo lugar. Sempre os olhos te observando e a voz te envolvendo. Seja dormindo ou acordado, trabalhando ou comendo, para dentro e para fora das portas, no banheiro e na cama – sem escapatória. Nada era seu exceto os poucos centímetros cúbicos dentro de seu cérebro.”
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There, too, in tiny clear lettering, the same slogans were inscribed, and on the other face of the coin the head of Big Brother. Even from the coin the eyes pursued you. On coins, on stamps, on the covers of books, on banners, on posters, and on the wrappings of a cigarette packet--everywhere. Always the eyes watching you and the voice enveloping you. Asleep or awake, working or eating, indoors or out of doors, in the bath or in bed--no escape. Nothing was your own except the few cubic centimetres inside your skull. p. 26, P.I


O amado e temido (um maquiavélico Príncipe?) Grande Irmão hoje vulgarizado na TV na forma de reality show! Uma casa cheia de gente vazia, com sexo livre e difamações, para dar audiência. Alienação ao alcance do controle-remoto. Diante do poder do Grande Irmão não há perdão. Pensar de forma não padronizada já é crime. Thoughtcrime, crime-pensar não é crime, é a morte.


Partido Interior? Partido Exterior? Sistema de Castas? Enquanto em Brave New World temos os Alfas, os Betas, os Gamas, os Deltas e os Ípsilons, em '1984' temos essa distinção de Inner Party e Outer Party ambos sobre a população que deve apenas obedecer as diretivas. Temos hierarquias tanto no fascismo e nazismo quanto no estalinismo – sempre alguém (um grupo de dirigentes) que dá ordens e outros que devem obedecer (os subordinados).


Uma disciplina militar mantida em sociedade e na vida particular (aliás, pode-se falar em vida particular numa regime totalitário?). Exercício físico obrigatório, ginástica regulada, militarização (com o excesso das Brigadas Populares, quando cada cidadão passa a ter adestramento militar) pois desde criança, o cidadão é doutrinado para servir às forças armadas e denunciar os inimigos do regime (mesmo os próprios familiares).


Enquanto no 'Admirável Mundo Novo' o obrigatório é o lazer, a diversão, o cinema-interativo, o sexo livre, tudo de modo a 'anestesiar' o cidadão condicionado igual a uma cobaia de laboratório, em '1984' todas as energias devem se voltar para a prática política, organização partidárias de comícios.


Enquanto na distopia de Huxley os cenários são artificiais, tecnológicos, interativos, na distopia de Orwell as cenas mostram um mundo decadente, em ruínas de batalhas, em tons sombrios, coercivos, claustrofóbicos.


Ambas as distopias estavam no futuro próximo em relação aos autores. Um futuro 'alternado' ou 'paralelo' onde a História sofreria um desvio, uma deformação, com a civilização apagada e reescrita em novos moldes, até novas línguas. Nada de um futuro glorioso, mas a realização dos pesadelos anti-iluministas. De fato, uma História sempre reescrita – em que tempo estamos realmente: 1984? Em 1984 (“se era mesmo 1984”) o país em guerra contínua somente muda de inimigos. A guerra passa a ser necessária para manter o regime opressor, garantir a produção e venda de armamentos.


“Desde aquela época, guerra havia sido literalmente contínua, apesar de estritamente dizendo não havia sido sempre a mesma guerra. Por muitos meses durante sua infância [de Winston] tinha havido confusas lutas de rua na própria Londres, algo do que ele se lembrava vividamente. Mas traçar a história de todo o período, dizer quem estava lutando com quem em dado momento, haveria de ser de todo impossível, desde que não havia registro escrito, e nada dito, mesmo alguma menção a algum outro alinhamento que o existente. Neste momento, por exemplo, em 1984 (se era mesmo 1984), Oceânia estava em guerra com a Eurásia e em aliança com a Estásia. Em nenhuma declaração pública ou particular era sequer admitido que as três potências tinham estado agrupadas em diferentes alianças em algum momento. Realmente, como Winston bem sabia, apenas quatro anos antes Oceânia estiver em guerra com a Estásia e em aliança com a Eurásia. Mas era meramente um fragmento de conhecimento furtivo que ele possuía pois sua memória não estava satisfatoriamente sob controle. Oficialmente a troca de parcerias nunca tinha acontecido. Oceânia estava em guerra com a Eurásia: assim a Oceânia sempre estivera em guerra com a Eurásia. O inimgio do momento sempre representava o mal absoluto, e disso seguia que todo acordo com ele, no passado ou no futuro, era impossível.”

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Since about that time, war had been literally continuous, though strictly speaking it had not always been the same war. For several months during his childhood there had been confused street fighting in London itself, some of which he remembered vividly. But to trace out the history of the whole period, to say who was fighting whom at any given moment, would have been utterly impossible, since no written record, and no spoken word, ever made mention of any other alignment than the existing one. At this moment, for example, in 1984 (if it was 1984), Oceania was at war with Eurasia and in alliance with Eastasia. In no public or private utterance was it ever admitted that the three powers had at any time been grouped along different lines. Actually, as Winston well knew, it was only four years since Oceania had been at war with Eastasia and in alliance with Eurasia. But that was merely a piece of furtive knowledge which he happened to possess because his memory was not satisfactorily under control. Officially the change of partners had never happened. Oceania was at war with Eurasia: therefore Oceania had always been at war with Eurasia. The enemy of the moment always represented absolute evil, and it followed that any past or future agreement with him was impossible. pp. 31-32, P.I


Quem é o inimigo? Na Segunda Guerra Mundial temos a quase união dos ingleses e alemães contra os russos, mas aconteceu a união dos russos com os alemães – que possibilitou estes se voltarem contra os ingleses – e os franceses, e depois – quando Hitler ordenou a invasão da URSS em 1941 – os russos (com apoio inglês e norte-americano) ficaram contra os alemães. Uma radical troca de inimigos em menos de três anos! E Stalin dizia que os soviéticos jamais tinham feito aliança com os fascistas - na mesma época em que fazia aliança com os capitalistas ocidentais!


O inimigo de ontem é amigo hoje... o amigo de hoje pode ser o inimigo de amanhã... Como o Partido consegue explicar tal fenômeno para os cidadãos? Como explicar a guerra constante? Simples: o Partido passa a controlar a escrita da História. É slogan do Partido : “Quem controla o passado, controla o futuro: quem controla o presente controla o passado.


“O Partido dizia que a Oceania nunca havia estado em aliança com a Eurásia. Ele, Winston Smith, sabia que a Oceânia havia estado em aliança com a Eurásia a menos de quatro anos atrás. Mas onde estaria este conhecimento? Apenas em sua própria consciência, que em todo caso poderia ser logo aniquilada. E se todos os outros aceitavam a mentira que era imposta pelo Partido – se todos os registros contavam a mesma fábula – então a mentira integrava a História e tornava-se verdade. 'Quem controla o passado,' dizia o slogan do Partido, 'controla o futuro: quem controla o presente controla o passado.' E ainda o passado, apesar de sua natureza inalterável, nunca havia sido alterado. De qualquer forma o que era verdadeiro agora era verdadeiro para todo o sempre. Era bem simples. Tudo o que era preciso era uma infinda série de vitórias sobre sua própria memória. 'Controle da realidade', eles assim denominavam: em Nova-Língua, 'pensar-duplo'.

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The Party said that Oceania had never been in alliance with Eurasia. He, Winston Smith, knew that Oceania had been in alliance with Eurasia as short a time as four years ago. But where did that knowledge exist? Only in his own consciousness, which in any case must soon be annihilated. And if all others accepted the lie which the Party imposed – if all records told the same tale – then the lie passed into history and became truth. 'Who controls the past,' ran the Party slogan, 'controls the future: who controls the present controls the past.' And yet the past, though of its nature alterable, never had been altered. Whatever was true now was true from everlasting to everlasting. It was quite simple. All that was needed was an unending series of victories over your own memory. 'Reality control', they called it: in Newspeak, 'doublethink'. p.32, P.I


O pensar diferente do oficial já é 'doublethink', pensamento-duplo. Mesmo entender a palavra 'doublethink' envolve o uso do duplipensar (“Even to understand the word 'doublethink' involved the use of doublethink.” p. 33)


No Ingsoc – English Socialism – o trabalho de Winston Smith é alterar notícias, é 'mudar' o passado. Eis o motivo para que o protagonista saiba tanto sobre a alteração do passado – afinal, ele é um dos agentes da deturpação. No plano da realidade, lembramos que na URSS a História era reescrita, fotos eram modificadas, pessoas tão eliminadas fisicamente quanto da memória coletiva. Em '1984' os dissidentes são 'vaporizados', tornam-se 'unpersons', ou seja, não-pessoas. As não-pessoas são eliminadas e esquecidas – fisica e historicamente.


Quando o Governo escreve a História ele quer que haja sempre sucesso, vitória, superávit, controle das pessoas e do ambiente, em suma, tudo o que o povo espera – e que os governantes apenas prometem. Kurz: O Partido cria a verdade - a verdade que interessa ao próprio Partido.


“Winston não sabia porque Withers se disgraçara. Talvez fosse por corrupção ou incompetência. Talvez o Grande Irmão estivesse simplesmente se livrando dos subordinados muito populares. Talvez Withers ou alguém próximo a ele tivesse sido suspeito de tendências heréticas. Ou talvez – o que era mais verossímil – a coisa acontecera simplesmente porque expurgos e vaporizações eram uma parte necessária do maquinismo do governo. O único indício estava nas palavras 'ref. não-pessoa', que indicava que Withers já estava morto. Você não poderia invariavelmente assumir que fosse este o caso quando a pessoa era presa. Às vezes eram libertadas e permitidas a ficarem em liberdade por um ano ou dois anos antes de serem executadas. Ocasionalmente muitas pessoas que poderia crer que haviam sido executadas faziam uma espectral reaparição em algum julgamento público onde ele implicaria centenas de outros por seu testemunho antes de desaparecer, desta vez para sempre. Withers, de qualquer forma, já era uma não-pessoa. Ele não existia: nunca existira. Winston decidiu que não seria suficiente simplificar ao reverso a tendência de discurso do Grande Irmão. Era melhor fazê-lo combinar com algo totalmente sem relação com o assunto original.”

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Winston did not know why Withers had been disgraced. Perhaps it was for corruption or incompetence. Perhaps Big Brother was merely getting rid of a too-popular subordinate. Perhaps Withers or someone close to him had been suspected of heretical tendencies. Or perhaps --what was likeliest of all-- the thing had simply happened because purges and vaporizations were a necessary part of the mechanics of government. The only real clue lay in the words 'refs unpersons', which indicated that Withers was already dead. You could not invariably assume this to be the case when people were arrested. Sometimes they were released and allowed to remain at liberty for as much as a year or two years before being executed. Very occasionally some person whom you had believed dead long since would make a ghostly reappearance at some public trial where he would implicate hundreds of others by his testimony before vanishing, this time for ever. Withers, however, was already an UNPERSON. He did not exist: he had never existed. Winston decided that it would not be enough simply to reverse the tendency of Big Brother's speech. It was better to make it deal with something totally unconnected with its original subject. pp. 40-41, P.I



Neste mundo em guerra constante onde as frentes de batalha são alteradas, os dados – de feridos e mortos – são alterados, a propaganda – de auto-elogio e difamação do oponente – é, de fato, onipresente. A linguagem então é logo ajustada para permitir apagar camadas de significação, reduzindo a capacidade de reflexão, e de discernimento entre o que é fato e o que é versão.


Temos ao longo do romance vários exemplos da Nova-Língua, a Newspeak, com a simplificação da linguagem, numa fala telegráfica, quase monossilábica (e o inglês já é uma língua farta em monossílabos), repleta de siglas, abreviaturas de órgãos administrativos, burôs sobre burôs numa hierarquia burocrática que parece mais um labirinto kafkaniano.


Pensemos mais sobre a questão 'linguagem e visão de mundo'. Enquanto a linguagem culta, dos bacharéis e dos doutores, se torna mais complexa, embolada, floreada, cheia de vocábulos de museu, com etimologias greco-latinas, orações adjetivas explicativas, períodos compostos por subordinação, etc, a linguagem dos jovens, dos usuários de internet, dos manos de tribos urbanas, se torna mais reduzida, simplificada, cheia de reducionismos, frases feitas monossilábicas, com preconceitos passados de geração a geração. Aliás, as novas gerações de classe média pouco entendem da fala de classe baixa, e esta nada compreende da fala culta.


A linguagem de uma classe superior é incompreensível para os dominados, que precisam recorrer a extratos serviçais dos dominantes ou entre as classes (por exemplo, advogados e defensores públicos que são das classes altas ou advém das classes baixas, por meritocracia ou cooptação). Uma linguagem que é opaca aos dominados, assim como o paciente pouco entende os códigos de um médico, ou um réu compreende a fala de um juiz de direito.


Syme é um especialista em Newspeak, estuda o método para simplificar ainda mais o já simplificado. Vejamos um trecho do diálogo entre Winston e o linguista Syme,


“'Como está ficando o dicionário?' disse Winston, em voz alta para superar o barulho.

'Devagar', disse Syme. 'Estou nos adjetivos. É sensacional!.'

Ele se empolgara imediatamente à menção da Nova-Língua. Ele afastou a caneca, pegou o pedaço de pão com uma mão e o queijo com a outra, e inclinou-se sobre a mesa para ser capaz de falar sem gritar.

'A Décima Primeira Edição é a edição definitiva,' ele disse, 'Estamos colocando a linguagem em sua forma final – a forma que terá quando ninguém falará de outro modo. Quando tivermos completado o trabalho, pessoas iguais a você deverão aprender tudo de novo. Você pensa, ouso dizer, que nosso principal trabalho é inventar novas palavras. Mas nada disso! Estamos destruindo palavras – listas delas, centenas delas, a cada dia. Estamos aparando a linguagem até o osso. A Décima Primeira Edição não conterá uma simples palavra que se tornará obsoleta antes do ano 2050.' ”

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'How is the Dictionary getting on?' said Winston, raising his voice to overcome the noise.

'Slowly,' said Syme. 'I'm on the adjectives. It's fascinating.'

He had brightened up immediately at the mention of Newspeak. He pushed his pannikin aside, took up his hunk of bread in one delicate hand and his cheese in the other, and leaned across the table so as to be able to speak without shouting.

'The Eleventh Edition is the definitive edition,' he said. 'We're getting the language into its final shape – the shape it's going to have when nobody speaks anything else. When we've finished with it, people like you will have to learn it all over again. You think, I dare say, that our chief job is inventing new words. But not a bit of it! We're destroying words--scores of them, hundreds of them, every day. We're cutting the language down to the bone. The Eleventh Edition won't contain a single word that will become obsolete before the year 2050.'
p. 45, P.I



Afinal, o simplificar a linguagem é simplificar o pensamento. As categorias de pensamento – tanto análise quanto síntese – precisam lidar com camadas de significação e distinção, ou multiplicidades de sinônimos e antônimos, para aproximar ou diferenciar as reflexões sobre os fenômenos. (Pois, desde Kant, sabemos que não temos acesso às coisas tais como elas são, ou Nômenos) A partir da linguagem conseguimos meditar sobre o mundo e como este se apresenta à nossa consciência. O filósofo da linguagem Wittgenstein: “os limites da minha linguagem marcam os limites do meu mundo”.


“Syme mordeu outro fragmento do pão preto, mastigou brevemente e continuou:

'Não percebe que o objetivo completo da Nova-Língua é estreitar o alcance do pensamento? No fim nos faremos o crime-pensar literalmente impossível, pois não haverá palavras para expressá-lo. Cada conceito que for necessário será expressado por exatamente uma palavra, com seu sentido rigidamente definido e todos os outros sentidos subsidiários serão agados e esquecidos.'”

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Syme bit off another fragment of the dark-colored bread, chewed it bruefly, and went on:

'Don't you see that the whole aim of Newspeak is to narrow the range of thought? In the end we shall make thoughtcrime literally impossible, because there will be no words to express it. Every concept that can ever be needed wil be expressed by exactly one word, with its meaning rigidly defined and all its subsidiary meanings, rubbed out and forgotten.'
p. 46, P.I


e mais,


“Mesmo a literatura do Partido mudará. Mesmo os slogans mudarão. Como você terá um slogan assim 'Liberdade é escravidão' quando o conceito de liberdade for abolido? Toda a forma de pensar que será diferente. De fato, não haverá pensamento, como entendemos agora. Ortodoxia significa não pensar – não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência.'

Qualquer dia destes, pensava Winston, com súbita e profunda convicção, Syme será vaporizado. Ele é muito inteligente. Pode ver claramente e fala francamente. O Partido não gosta de gente assim. Um dia ele vai desaparecer. Está na cara.”

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[…] Even the literature of the Party will change. Even the slogans will change. How could you have a slogan like "freedom is slavery" when the concept of freedom has been abolished? The whole climate of thought will be different. In fact there will be no thought, as we understand it now. Orthodoxy means not thinking--not needing to think. Orthodoxy is unconsciousness.'

One of these days, thought Winston with sudden deep conviction, Syme will be vaporized. He is too intelligent. He sees too clearly and speaks too plainly. The Party does not like such people. One day he will disappear. It is written in his face.
p. 47, P.I


O (anti)lexicólogo Syme tem razão, ele até sabe demais - Winston prevê que o colega em breve será 'vaporizado'. A linguagem é simplificada para reduzir a capacidade de pensamento. Por isso os dominados não têm uma linguagem que consiga desvelar a dominação. Por isso os advogados dominam, ao usarem um vocabulário que somente eles compreendam, assim como os sacerdotes usam um conhecimento litúrgico que não é acessível aos leigos, e assim por diante.


Mas Orwell não é linguista, ou filósofo da linguagem, ele é um socialista que acredita mais no individualismo do que no coletivismo, ou um coletivismo que preserve o indivíduo, assim pretende, através da ficção, abrir os olhos dos cidadãos livres – no capitalismo liberal onde até a subversão vira mercadoria – que a dominação não se faz apenas pela repressão, mas pela narrativa deformada, pela linguagem contraditória, pelos mecanismos da lavagem cerebral – tudo sutilmente.


Começamos a 'individualizar' o protagonista Winston quando ele se percebe um contestador (pratica o crime-pensar) e se sente sexualmente atraído por uma moça da Liga Anti-Sexo (outra barreira às suas satisfações eróticas). A miséria da vida do intelectual-proletário Winston nos atrai – enquanto leitores – quando ele, devido ao pensamento crítico e a repressão sexual, tem consciente de si mesmo em contraponto a alienação e ao terror ao redor.


Winston é obviamente o mocinho, atrai simpatias com seu sofrimento e contestação, mas não tem consciência, nem sabe o que realmente ocorre. Somente quando o camarada O'Brien entrar em cena teremos uma personagem com consciência suficiente para apresentar um panorama do que realmente ocorre (se é que isso é possível num sistema de propaganda e controle social).


Ao mesmo tempo em que Winston encontra uma mulher que lhe dá atenção – nem que seja inicialmente só sexual – ele descobre uma 'luz no fim do túnel' – alguém que sabe o que ele não sabe, com uma resposta possível para a questão 'será que o Partido vai governar para sempre?', será que não haverá um modo de fazer política anti-partidária? Não haveria um grupo de resistentes – a Irmandade existe mesmo?


As duplas relações de Winston – com Júlia, a moça nada puritana da Liga Anti-Sexo e o possível subversivo O'Brien com informações sigilosas – são um ponto de virada no romance '1984', pois o protagonista não está mais sozinho, ele tem interlocutores e saberemos em que nível eles são confiáveis – quem vai trair quem? Antes da sensual Júlia e do sisudo O'Brien, em dados momentos, Winston até se sentia como um lunático, acreditando em coisas e eventos nos quais ninguém mais acreditava.


A prática livre do sexo é crime contra o Partido, a prática da literatura é crime contra o Partido, pensar livremente é crime contra o Partido – então a única liberdade possível – limitada e risível – é fora do Partido, é no mundo dos 'proles', em nome de quem o Partido fizera a 'revolução'; os proles que sobrevivem nas margens da oligarquia partidária. Winston consegue um quarto nos subúrbios, adere ao mercado-negro de bens de consumo – mercado sempre atuante em tempos de guerra.


Na Parte II do livro, Winston luta por sua individualidade – ou vida pessoal – que é crime no totalitarismo, onde o coletivo esmaga o subjetivo, o Estado usa e abusa do cidadão. Ter uma vida pessoal é, por exemplo, poder marcar encontros íntimos com uma mulher numa quarto de subúrbio. Winston não pode esperar muito: liberdade para ele é poder afirmar que 2 mais 2 são 4 - e não ser preso. (“Freedom is the freedom to say that two plus two make four. If that is granted, all else follows." p. 69)


Enquanto Winston luta por liberdade de pensamento, Júlia luta por liberdade sexual. Ela não acredita que o sexo seja para a reprodução, para dar ao Partido filhos robustos para as guerras infindáveis. Ao contrário, o sexo é uma forma de libertação, de encontro com o próprio corpo em conto com o corpo do outro. De nada adianta uma revolução que cuide de política e economia e esqueça – ou pior, reprima – a questão da sexualidade.


A contracultura – com seu discurso de 'sexo livre' – se colocava contra a hipocrisia da sociedade capitalista e contra a diretriz repressora do sistema dito socialista. Os beatniks, os hippies, os anarquistas, os punks, todos estes queriam a libertação do sexo, não apenas da mais-valia. E a 'revolução sexual' aconteceu, com todos os costumes (uso de anticoncepcional, uso de mini-saia, mulher no mercado de trabalho, etc), mas a 'revolução social' não, pois continua aí o antagonismo de classe e a exploração da mais-valia.


“Ela tivera seu primeiro caso amoroso aos dezesseis anos, com um membro do Partido de sessenta anos, que depois cometera suicídio para evitar a prisão. 'E foi um bom lance também,' Julia disse, 'de outro modo eles teriam o meu nome caso ele confessasse.' Desde então houveram vários outros. A vida que ela via até parecia simples. Você queria se divertir; eles, aqui significava o Partido, queriam que você não tivesse diversão; então você quebra as regras o melhor que pode. Ela parecia pensar que é natural que 'eles' gostariam de roubar seus prazeres o quanto você quereria evitar de ser preso. Ela odiava o Partido, e dizia isso em palavras as mais cruéis, mas ela não fazia qualquer crítica geral. Exceto no que tocava à sua própria vida ela não tinha interesse nas doutrinas do Partido.


Ele notou que ela nunca usava palavras da Nova-Língua, exceto aquelas que passaram ao uso diário. Ela nunca ouvira falar sobre a Irmandade, e recusava acreditar em sua existência. Qualquer tipo de revolta organizada contra o Partido, estava destinada a ser um fracasso, coisa estúpida. Era mais esperteza quebrar as regras e ficar viva com tudo o mais. Ele gostaria de saber vagamente como muitos outros como ela haviam na geração mais jovem que cresceram no mundo da Revolução, sabendo nada mais, aceitando o Partido como algo inalterável, igual ao céu, sem rebelar-se contra sua autoridade mas simplesmente se evadindo, como um coelho despista um cão.”

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She had had her first love-affair when she was sixteen, with a Party member of sixty who later committed suicide to avoid arrest. 'And a good job too,' said Julia, 'otherwise they'd have had my name out of him when he confessed.' Since then there had been various others. Life as she saw it was quite simple. You wanted a good time; 'they', meaning the Party, wanted to stop you having it; you broke the rules as best you could. She seemed to think it just as natural that 'they' should want to rob you of your pleasures as that you should want to avoid being caught. She hated the Party, and said so in the crudest words, but she made no general criticism of it. Except where it touched upon her own life she had no interest in Party doctrine. He noticed that she never used Newspeak words except the ones that had passed into everyday use. She had never heard of the Brotherhood, and refused to believe in its existence. Any kind of organized revolt against the Party, which was bound to be a failure, struck her as stupid. The clever thing was to break the rules and stay alive all the same. He wondered vaguely how many others like her there might be in the younger generation people who had grown up in the world of the Revolution, knowing nothing else, accepting the Party as something unalterable, like the sky, not rebelling against its authority but simply evading it, as a rabbit dodges a dog. p. 109, P.II


Assim, Winston se envolve no crime sensual da jovem libertina. Pouco depois Syme desaparece, tal como Winston previra. Afinal, o lexicólogo sabia demais, era um 'homem que sabia demais', e o Partido não se pode dar ao luxo de manter tais pessoas circulando por aí – daí os expurgos ocasionais, para eliminar os possíveis 'infiéis', que revelaria os top secret aos não-iniciados fora-do-Partido. Ninguém, no departamento de Winston, se preocupa. Afinal novos comícios – em breve a 'Semana do Ódio' (Hate Week) – precisam ser coordenados, novas passeatas, novos desfiles de fanfarras e novas fileiras de prisioneiros para serem cuspidos.


Winston precisa fingir que nada mudou na própria vida – nada de perguntar sobre Syme, ou faltar aos eventos do Partido, ou trocar olhares com Júlia em público. Mas seja por desconfiança ou para testar a 'fidelidade' de Winston, um membro do Partido, o tal O'Brien, entra em contato com o protagonista. Será uma ponte com os que 'pensam diferente'? Ou ele, O'Brien, não passa de um delator? (Como a narrativa segue os passos - e a mente – do protagonista, o leitor sabe tanto quanto o protagonista. O Narrador não adianta nenhum lance, então o leitor precisa se enquadrar na perspectiva do protagonista e seguir para a 'próxima fase.)


Ao entrar em contato com O'Brien – ou aceitar o contato – Winston não sabe se chamou a atenção de um figurão do Partido Interno ou um membro da Irmandade. É como andar numa corda esticada sobre um abismo. Mas de todo modo O'Brien sabe muito do que Winston apenas desconfia – assim o protagonista é atraído para as redes do contato – para a libertação ou para a prisão – ainda não sabemos.









continua...









jun/11






Leonardo de Magalhaens


















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