quarta-feira, 22 de junho de 2011

sobre 'Admirável Mundo Novo' (2/2) - de A. Huxley









sobre “Admirável Mundo Novo” (“Brave New World”, 1932)
romance de Aldous Huxley (UK, 1894-1963)



Quando a literatura expõe o pesadelo distópico






2 : 2


Voltemos ao Sr. Bernard Marx. O que Bernard não encontrava nos rituais comunais – uma espécie de religião, de um culto pagão, ou um comício doutrinário, um 'minuto de ódio' (em '1984' de Orwell) – o que ele não encontrava no trabalho – desprezado pelos colegas e pelas colegas, vigiado pelo Diretor – o que ele não encontra no mundo de diversões, ele tem agora ao lado do Selvagem. Todos querem agradá-lo para poderem visitar o ser exótico que nasceu de mulher, que despreza a tecnologia e recita poemas e peças dramáticas de William Shakespeare.


Sim, Shakespeare é um exótico no mundo tecnológico. Um bardo a declamar poemas não autorizados, não hipnóticos, é um subversivo. Deve ser logo anestesiado, drogado, enjaulado. O Selvagem faz com que o leitor compreenda que nós somos os 'selvagens' do mundo tecnológico de amanhã (isso não sofrermos uma 'Terceira Guerra Mundial' e a humanidade regredir uns mil anos...) , que somos nós, os leitores de poemas e peças teatrais, que somos os espectadores em proto-ensaios de um mundo de cinema interativo. Começaremos com filmes inspirados e adaptados de Shakespeare e depois dispensaremos a própria Obra do Bardo britânico.


John o selvagem, é aquele que cultiva o 'amor romântico' – que ele aprendeu ao ler 'Romeo and Juliet' – que acredita na virtude e na pureza, que prefere o sofrimento do que a comodidade, que prefere a vida frugal do que o consumismo, que prefere ler um livro do que ir ao cinema. O Selvagem é um tipo de cidadão em extinção. Talvez seja uma imagem meio tosca de nós, os Leitores. Somos nós os que apreciamos Shakespeare e preferimos ler “Macbeth” do que ir ao shopping fazer compras.


As cenas em Malpaís – a tal reserva nativa onde hoje é a fronteira entre o México e os Estados Unidos – mostram o 'choque cultural' entre os civilizados e os nativos, como cada um organiza uma 'cosmogonia' que deriva de seus modos de vida – é a partir das condições de vida que as sociedades criam suas explicações e sentidos de existência. Vivo assim, logo que deve ser por isso e por aquilo. Não se questiona o porquê de se viver assim: poderia ser diferente? Não, ao contrário, o ritual, a doutrinação, sempre presentifica o passado, sempre explica a tradição, sempre mantem o mesmo. Comunidades indígenas que vivem assim milênios do mesmo modo, fazendo o que os antepassados sempre fizeram. O 'passado não passa' (vide o que o poeta Octavio Paz fala sobre este tema na obra do filósofo Walter Benjamin).

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Link para texto sobre W. Benjamin
http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/98600
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Para o selvagem John – mais culto que a maioria, com exceção, claro, de Mustapha Mond – a relação com o mundo é intermediada pela cosmogonia cristã meio pagã do meio cultural – os rituais da tribo – e a cosmogonia do mundo de William Shakespeare. O bardo traz todos os ecos de um mundo passado que sobrevive pela força da escrita. A poesia nos sonetos e nas peças dramáticas apresentam um testemunho do que viveram os homens e mulheres do mundo anglo-saxão, e nórdico, dos séculos 11 ao 16, além das vicissitudes do mundo romano (vide as peças cujo contexto é o Império Romano).


Então realmente vem soar tragico-cômico as citações constantes de Shakespeare no mundo artificial, duplamente artificial, de Brave New World, 632 da Era Ford. Tudo que seja obra de arte ou poesia é voltado para o entretenimento, nunca para o pensamento autônomo ou auto-conhecimento, ou crítica (e auto-crítica). Não, tudo deve servir ao plano, ao condicionamento que tem início lá no útero artificial.


O romantismo de John o selvagem é um anacronismo no mundo da promiscuidade. O amor de cavalheiro espera que a dama idealizada e adorada seja conquistada pela admiração após um longo período de flerte, conquista, sedução, desilusão amorosa, reconquista, ou seja, tudo que cria o conteúdo, o tema, dos romances românticos. Como pode haver romantismo se a mulher vai para a cama do homem logo após o primeiro jantar, ou após a primeira sessão de cinema? A mulher que se entrega facilmente no primeiro encontro só quer mesmo o ato sexual – no que iguala aos interesses masculinos.


Para o amor romântico a mulher é conquistada, e não espera que ela se entregue ao homem, tão facilmente, caso contrário seria igualada a uma prostituta, ou seja, a mulher sem virtude. A mulher ideal é aquela que rejeita todos os outros homens e é conquistada apenas pelo homem valoroso – o cavalheiro que conquista o coração da dama. A castidade e depois a fidelidade são os valores supremos.


Pois no mundo promíscuo de 600 Era Ford as coisas são bem diferentes. As mulheres tanto quanto os homens têm plena liberdade sexual, podem ir para cama com quem quiserem, e quando quiserem. Sem qualquer afeição um pelo outro, apenas desejo sexual. Uma vez satisfeito o desejo eles se afastam. Não se criam laços afetivos, nem se formam famílias. E é até 'reprovável' que uma mulher se entregue mais de uma vez ao mesmo homem, ao contrário, ela deve diversificar o máximo que puder os tipos e quantidades de parceiros. A boa garota é justamente a mais promíscua, a mais libertina.


E é justamente por uma mulher assim que Bernard – e depois John, o selvagem – se apaixonam. Uma mulher sem qualquer brilho, ou talento, além dos atributos físicos. Parece mais uma Marylin Moore, uma personagem que o autor não esboça com maior profundidade, que fica sempre na superfície, visto que é a representação da beleza medíocre e até vulgar. Lenina Crowne é mais uma anti-heroína do que uma 'mocinha' da história. Ela nada tem que nos pareça memorável ou citável. É o lugar-comum em pessoa.


Com a súbita fama de Bernard é fácil para ter qualquer mulher que ele deseje, não apenas a frívola Lenina. Fama que o antes rejeitado Bernard deve agora ao exótico Selvagem, que não consegue se adaptar ao mundo de artificialidades.


“Os dias passaram. O sucesso foi um novo sopro para Bernard, e no processo o reconciliou completamente (como um bom tóxico pode fazer) com o mundo que, até então, ele achara insatisfatório. Desde que o mundo o reconhecesse enquanto importante, estava bem a ordem das coisas. Mas, reconciliado por seu sucesso, ele ainda se recusava a abandonar o privilégio de criticar esta ordem. Pois o ato de criticar aumentava seus senso de importância, fazia com que se sentisse maior. Além disso, ele acreditava sinceramente que haviam coisas para serem criticadas. (Ao mesmo tempo, ele sinceramente gostava de ter sucesso e ter todas as mulheres que ele desejava.) Diante daqueles que agora, graças ao Selvagem, o cortejavam, Bernard ostentava-se como um crítico pouco ortodoxo. Ele era educadamente ouvido por todos eles. Mas quando ele passava as pessoas inclinavam as cabeças com reprovação. 'Esse moço vai se dar mal', elas diziam, profetizando quanto mais confiavam que eles mesmos se assegurariam pessoalmente em ver que ele acabaria mal, 'Ele não achará outro Selvagem para ajudá-lo numa segunda vez,' elas diziam. Enquanto isso, de qualquer modo, eram educados, assim Bernard se sentia realmente o maioral – gigantesco e ao mesmo tempo sentia-se leve com a exaltação, mais leve do que o ar.”
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“The days passed. Success went fizzly to Bernard's head, and in the process completely reconcilied him (as any good intoxicant should do) to a world which, up till then, he had found very insatisfactory. In so far as it recognized him as important, the order of things was good. But, reconcilied by his success, he yet refused to forgo the privilege of criticizing this order. For the act of criticizing heightened his sense of importance, mad him feel larger. Moreover, he did genuinely believe that there were things to criticize. (At the same time, he genuinely liked being a success and having all the girls he wanted.) Before those who now, for the sake of the Savage, paid their court to him, Bernard would parade a carping unorthodoxy. He was politely listened to. But behind his back people shook their heads. 'That young man will come to a bad end,' they said, prophesying the more confindently in that they themselves would in due course personally see to it that the end was bad, 'He won't find another Savage to help him out a second time,' they said. Meanwhile, however, there were polite, Bernard felt positively gigantic – gigantic and at the same time light with elation, lighter than air.” pp. 126-127, cap. 11

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Quando John, o Selvagem, desiste do convívio com os demais civilizados, quando Bernard programa outra recepção para os convidados conhecerem a exótica criatura, quando o Selvagem se ausenta, todo o prestígio que Bernard conquistara mostra-se inútil, ilusório. Ele nunca tivera realmente amigos. Claro, exceto Helmholtz e o Selvagem. Bernard é socialmente desmoralizado, enquanto John continua mergulhado na leitura de obras de Shakespeare – achando uma citação para cada desgosto amoroso ou absurdo do mundo admirável – aliás “brave new world” é tirado de uma fala de Miranda, em “The Tempest”, peça shakespeariana.

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Sobre The Tempest
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/04/sobre-tempestade-w-shakespeare.html
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“'Eles leem Shakespeare?' perguntava o Selvagem enquanto caminhavam, no caminho para os Laboratórios Bioquímicos, ao passar junto a Biblioteca Escolar.

'Certamente não,' disse a mestra, corando.

'Nossa biblioteca,' disse o Dr. Gaffney, 'que contem apenas livros de referência. Se nossos jovens precisarem de distração, eles podem se divertir no cinema interativo. Não incentivamos os alunos a se dedicarem a qualquer entretenimento solitário.'

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“'Do they read Shakespeare?' asked the Savage as they walked, on their way to the Biochemical Laboratories, past the School Library.

'Certainly not,' said the head Mistress, blushing.

'Our Library,' said Dr Gaffney, 'contains only books of reference. If our young people need distraction, they can get it at the feelies. We don't encourage them to indulge in any solitary amusements.'

p. 131, cap. 11

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Pois bem, o Selvagem lê obras de Shakespeare, enquanto o superdotado intelectual Helmholtz declama poesia com o execrado tema 'solidão', e Bernard sabe que nada mais pode salvá-lo de uma punição vinda dos superiores. Afinal, não se pode criticar um mundo de 'estabilidade'. Em suma, temos aqui um grupo muito 'subversivo' para os padrões da Era Ford. Ao mesmo tempo, a volúvel Lenina está apaixonada pelo exótico Selvagem – que corresponde à paixão, mas é tímido e romântico demais para se declarar – enquanto a mãe biológica do 'bárbaro' está à morte no hospital.


É justamente a morte da mãe que causa o transtorno, a crise final do Selvagem, que chora publicamente diante do leito da falecida, num atitude reprovável !, e enfurecido ele decide jogar fora a droga sintética soma dos grupos trabalhadores, verdadeiros robôs programados, que nada entendem com a palavra 'liberdade' proclamada pelo revolucionário 'bárbaro'. De repente o Selvagem delira achando que pode obrigar os robôs-humanos a serem livres! “Vou ensinar a vocês! Vou libertá-los caso queiram ou não!” (“I'll teach you; I'll make you free whether you want to or not”) Os amigos Bernard e Helmholtz bem que tem diminuir os efeitos de tal rebelião, mas acabam por serem envolvidos e imediatamente levados à presença do todo-poderoso Administrador.


Como já escrevemos antes, o Administrador Mustapha Mond é certamente a personagem mais interessante deste livro “Admirável Mundo Novo”, tanto pela 'erudição' quanto pela 'ironia'. Ele destila um humor sarcástico contra as eras pré-Era Ford, e assegura que nada deve ser mantido se de algum modo ameaça a estabilidade sacrossanta. Arte, Literatura, Poesia, Música, tudo isso é preservado, mas nunca deve ser acessível. As pessoas têm todo tipo de divertimento justamente para não terem que pensar, raciocinar, meditar, e ouvir música, ler livros, cultivar atividades artísticas. Tudo deve apenas divertir, e pronto.


Com uma ironia e superioridade sádica – que encontramos no O'Brien de “1984” e amarga – que encontramos no Capitão Beatty, de “Fahrenheit 451” - Mustapha Mond mostra-se como um professor decepcionado com seus alunos que pouco entenderam da lição : é impossível ir contra a estabilidade da sociedade regulada. Os subversivos raramente conseguem mudar algo: apenas trocam um controle A por outro controle, do modelo B, para que a gerência da ordem – em nome de quem? - possa continuar.


Mustapha Mond é até simpático e condescendente com os 'subversivos' – afinal de contas, eles não oferecem qualquer ameaça ao poder estabelecido. O poder é soberano e se sente total a ponto de reescrever a História. O que é considerado 'antigo' é simplesmente banido em nome da modernidade (pois os modernistas, os surrealistas, os futuristas, não queriam até queimar as bibliotecas? Pois os nazistas acharam interessante.... E na ficção temos o caso emblemático de “Fahrenheit 451”, onde os bombeiros causam incêndios, queimam livros, ao contrário de apagarem as chamas.


Semelhante ao Capitão Beatty, o Administrador também é dado a leituras. Antes de banir os livros, ou queimá-los, ou sepultá-los num museu secreto, ele lê as obras de Shakespeare, lê as peças proscritas pelo sistema. Leituras para aguçar seu sarcasmo e crueldade contra a Arte, essa 'coisa' que ameaça a estabilidade.


“A face do Selvagem se iluminou com um prazer súbito. 'Você já leu isso [as obras de Shakespeare] também? Ele perguntou. 'Pensei que ninguém soubesse sobre aquele livro aqui, na Inglaterra.'

'Quase ninguém. Sou um dos poucos. É proibido, você sabe. Mas como eu faço as leis aqui, eu posso também quebrá-las. Com impunidade, Sr. Marx,' ele acrescentou, voltando-se para Marx, 'O que, temo dizer, o você não pode fazer.

Bernard caiu numa espécie de mais desesperada miséria.

'Mas por que é proibido? Perguntou o Selvagem. Na excitação de encontrar um homem que havia lido Shakespeare, ele tinha esquecido momentaneamente tudo o mais.

O Administrador encolheu os ombros. 'Porque à antigo; eis a principal razão. Nós não temos utilidade para coisas velhas aqui.'

'Mesmo quando elas são belas?'

'Particularmente se elas são belas. Beleza é atrativa, e nós não queremos que as pessoas sejam atraídas por coisas velhas. Queremos que elas gostem das coisas novas.'

[…]

'Por que não?'

'Sim, por que não?' Helmholtz perguntou. Ele também tinha esquecido as desagradáveis realidades da situação. Verde de ansiedade e apreensão, apenas Bernard se lembrava; os outros o ignoravam. 'Por que não?'

'Porque nosso mundo não é o mesmo de Otelo. Você não pode fazer carros sem aço – e você não pode escrever tragédias sem instabilidade social. O mundo é estável agora. Pessoas são felizes; elas conseguem tudo o que querem, e elas nunca querem o que elas não conseguem. Estão bem, estão a salvo, nunca doentes, não têm medo da morte, são felizes ignorantes sobre qualquer paixão ou envelhecimento; não se preocupam com pais e mães, não têm esposas, nem filhos, ou amantes por quem devam sofrer; elas são assim condicionadas para praticamente não deixar de se comportar como elas devem se comportar. E se ainda algo der errado, há o soma. O mesmo que você vai e joga pela janela em nome da liberdade, Sr. Selvagem. Liberdade!' Ele ria. 'Esperando que Deltas saibam o que seja liberdade! E agora a esperar que eles entendam Otelo! Ó meu caro jovem!”


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“The Savage's face lit up with a sudden pleasure. 'Have you read it [Shakespeare's works] too?' he asked. 'I thought nobody knew about that book here, in England.'

'Almost nobody. I'm one of the very few. It's prohibited, you see. But as I make the laws here, I can also break them. With impunity, Mr Marx,' he added, turning to Bernard. 'Which I'm afraid you can't do.'

Bernard sank into a yet more hopeless misery.

'But why is it prohibited?' Asked the Savage. In the excitement of meeting a man who had read Shakespeare he had momentarily forgotten everything else.

The Controller shrugged his shoulders. 'Because it's old; that's the chief reason. We haven't any use for old things here.'

'Even when they're beautiful?'

'Particularly when they're beautiful. Beauty's attractive, and we don't want people to be attracted by old things. We want them to like the new ones.'

[…]

'Why not?'

'Yes, why not?' Helmholtz repeated. He too was forgetting the unpleasant realities of the situation. Green with anxiety and apprehension, only Bernard remembered them; the others ignored him. 'Why not?'

'Because our world not the same as Othello's world. You can't make flivvers without steel – and you can't make tragedies without social instability. The world's stable now. People are happy; they get what they want, and they never want what they can't get. They're well off; they're safe; they're never ill; they're not afraid of death; they're blissfully ignorant of passion and old age; they're plagued with no mothers or fathers; they've got no wives, or children, or loves to feel strongly about; they've so conditioned that they practically can't help behaving as they ought to behave. And if anything should go wrong, there's soma. Which you go and chuck out of the window in the name of liberty, Mr Savage. Liberty!' He laughed. 'Expecting Deltas to know what liberty is! And now expecting them to understand Othello! My good boy!'”


pp. 172-73, cap. 16

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O paternalismo de Mustapha Mond é evidente, diante da exaltação estética do Selvagem e do encanto intelectual de Helmholtz, enquanto o leitor fica a pensar, como um ser condicionado pode saber tanto? Saber mais do que está no próprio condicionamento? Ou o Administrador não foi um 'bebê de proveta'? No texto não fica claro. Mond sabe até demais, e por isso não é tão alienado e feliz quanto os outros. Alguém teria que ser pensativo e cínico num mundo de beleza e felicidade – ainda que artificiais. Este é o preço que ele deve pagar pelo poder? Ser ele um dos únicos com olho numa terra de cegos alegremente dopados?


O próprio Administrador até concede muita atenção e conta muita da própria biografia para os 'subversivos', como se precisasse desabafar, e é assim que os leitores sabem um pouco sobre este 'observador em terra de cegos', que tem tanta consciência para manter os demais em completa ignorância – tal qual o Cientista, o inventor Rotwang no filme “Metropolis” (1927) de Fritz Lang (1890-1976), e também semelhante ao Arquiteto no filme “Matrix” (1999) dos irmãos Wachowki – seres que sabem que vivem na coordenação de seres que vegetam inconscientes, mas contentes de entorpecimento e comodismo.


Tudo deve ser controlado para manter a ignorância. Consciência, Individualidade, Arte, Religião, até a Ciência. Muito avanço científico também causaria instabilidade. Então o jeito é controlar até os experimentos científicos. Se um cientista inventar um carro movido a água, ele deve ser afastado das pesquisas, deve ser exilado, ou eliminado. O progresso no Admirável Mundo Novo não é tão 'progresso' assim: em dado momento ele é engessado pelo planejamento. O Conselho Supremo pode mandar parar a 'roda da História', ao limitar o avanços das pesquisas científicas.


Diz o Administrador, que abandonou a carreira científica por ser demasiadamente talentoso, tal qual o brilhante Helmholtz, “Sinto muito quanto a Ciência. A Felicidade é um mestre severo – particularmente a felicidade dos outros. Um mestre ainda mais severo do que a verdade, quando não se está condicionado a aceitá-la sem questionar. Ele suspirou, ficou silencioso, então continuou num tom mais animado. 'Bem, o dever é o dever. Não se pode consultar as próprias preferências. Interesso-me pela verdade. Gosto da Ciência. Mas a verdade é uma ameaça, a ciência é um perigo público. É perigosa tanto quanto tem sido benéfica. Ela concedeu-nos o mais estável equilíbrio na História. […] Mas não podemos permitir que a Ciência desfaça o próprio bem que fez. Eis porque nós cuidadosamente limitamos os alcances de suas pesquisas – eis porque eu quase fui enviado para uma ilha. [...]”
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“I rather regret the science. Happiness is a hard master – particularly other people's happiness. A much harder master, if one isn't conditioned to accept it unquestioningly, than truth.' He sighed, fell silent again, then continued in a brisker tone. 'Well, duty's duty. One can't consult one's own preferences. I'm interested in truth. I like science. But truth's a menace, science is a public danger. A dangerous as it's been beneficient. It has given us the stablest equilibrium in history. […] But we can't allow science to undo its own good work. That's why we so carefully limit the scope of its researches – that's why I almost got send to an island. [...]” p. 178, cap. 16


O Selvagem acha que muito se perdeu da cultura (isto é, nossa cultura, claro, que o Narrador, através da personagem, vem defender. Os selvagens, afinal de contas, somos nós, os que vivemos antes o apogeu científico da Era Ford) em prol de uma felicidade artificial, controlada, dopada. “Arte, ciência – vocês parecem ter pago um preço muito alto pela sua felicidade,' disse o Selvagem, quando eles estavam sozinhos, 'O que mais?'

'Bem, religião, claro,' replicou o Administrador. 'havia algo chamado Deus – antes da Guerra dos Nove Anos. Ms eu me esquecia: você sabe tudo sobre o Deus, eu suponho.'

'Bem...' O Selvagem hesitava. Ele adoraria dizer algo sobre a solidão, sobre a noite, a sobre o platô pálido sob a lua, sobre o precipício, o mergulho nas trevas densas, sobre a morte. Ele teria gostado de falar; mas as palavras não surgiam. Nem mesmo inspiradas em Shakespeare.”

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“'Art, science – you seem to have paid a fairly high price for your happiness,' said the Savage, when they were alone. 'anything else?'

'Well, religion, of course,' replied the Controller. 'there used to be something called God – before the Nine Year's War. But I was forgetting; you know all about God, I suppose.'

'Well...' The Savage hesitated. He would have liked to say something about solitude, about night, about the mesa lying pale under the moon, about the precipice, the plunge into shadowy darkness, about death. He would have liked to speak; but there were no words. Not even in Shakespeare.”
p. 180

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Deus seria desnecessário num mundo efêmero, prêt-à-porter, pronto para o consumo eu descarte. A Religião é reduzida ao básico: torpor, comunhão e irracionalismo. Eruditas explicações. Parece que Mustapha Mond sabe tudo e tem argumento para tudo. Ele é a onisciência aqui. Por isso o melhor personagem do romance não tem qualquer verossimilhança. Ele é demasiadamente acima dos níveis de compreensão dos 'subversivos' – e até do leitor, que sem uma boa base filosófica não poderia entender a profundidade da discussão. É como se o Autor discutisse consigo mesmo ao dividir em argumentos e contra-argumentos do Selvagem e do Administrador.


O Autor – e nós leitores – estamos no mesmo plano argumentativo (e semântico) do Selvagem, vivemos algo semelhante ao que ele viveu – o abstrato, o espiritual, o erro-e-acerto -, enquanto o mundo futuro é justificado pela voz do Administrador, que é fruto do mundo artificial e usa todo o poder intelectual para justificar o mundo tal como é. Ou seja, ambos os lados usam argumentos, todos se proclamam como racionais – ainda que o Selvagem seja demasiadamente místico, espiritualista, amante do sofrimento e esperançoso da redenção. Mas se um dos lados não argumentasse – usasse a força ou a alucinação – não haveria a interessante cena do debate. (O filósofo Habermas que o diga com a sua 'ação comunicativa'.)


Em nome da estabilidade, do conforto, da felicidade, do entretenimento, do consumo, da 'produção em massa', outros valores como dignidade, conhecimento, livre-arbítrio, livre expressão, livre pesquisa, livre individualidade, heroísmo, solidão, são imediatamente 'cassados', restringidos e eliminados. A civilização opera tal qual uma 'linha de montagem' magistral. Afinal, diz o Administrador, saber para que? Importa que cada um seja condicionado a gostar de uma determinada função e seja treinado para desempenhar somente esta tarefa imediata – sem qualquer angústia quanto a uma outra vida. 'O que eu seria se eu não fosse arquiteto? Seria músico?', tais dúvidas sequer existem. E se um ou outro começar a esboçar uma angústia ou frustração é imediatamente cercado pelos divertimentos, pela promiscuidade e pelas drogas sintéticas.


Após a audiência concedida aos 'subversivos', o Administrador é até cordial com o Selvagem, que terá o direito de ser 'deixado em paz', enquanto os dois amigos – Bernard e Helmholtz vão para um ilha distante, onde poderão conviver com outros Alfas intelectualmente avançados. Mas a paz do Selvagem não haverá de durar muito – o livro ainda reserva uma apoteose final. Não se é impunemente um selvagem, um ser exótico, num mundo padronizado, num mundo artificial de seres artificiais criados em úteros artificiais. A singularidade do Selvagem precisará pagar um preço. Preço este que o leitor logo descobrirá.




Jun/11


Leonardo de Magalhaens

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quinta-feira, 16 de junho de 2011

sobre 'Admirável Mundo Novo' - de A. Huxley (1/2)









sobre “Admirável Mundo Novo” (“Brave New World”, 1932)
romance de Aldous Huxley (UK, 1894-1963)



Quando a literatura expõe a pesadelo distópico


1:2


Vimos na Introdução as preocupações do pensador e ficcionista Aldous Huxley com o mundo tecnológico que continua a incentivar o militarismo, o controle social e o genocídio. Nada adianta ter a melhor tecnologia em século e a mente de bárbaros da Idade da Pedra. Ao contrário, teremos apenas uma Barbárie movida a energia nuclear, uma máquina de guerra ainda mais eficiente, isto é, assassina e genocida.


O avanço científico não significa avanço psicológico, nem avanço social, ainda mais se os inventos técnicos forem apropriados por uma minoria no poder – ou em conluio com o poder – em nome de uma eficiência bélica – vide a relação Ciência e Indústria armamentista - e não democratizados para o uso da população. Alguns detêm os poderes técnicos e intelectuais enquanto os outros sobrevivem nas penumbras da ignorância e da superstição.


Surge a dicotomia entre tecnologia e tradicionalismo, onde os adeptos do primeiro se julgam no direito de 'educar' sistematicamente os segundos, que então reagem com um excesso de conservadorismo suicida. Ambos os lados se deformam e são superados por 'marés revolucionárias' que ocorrem em dado momento, até serem substituídas por outros regimes reacionários. E assim por diante.


Encontramos estes contrapontos em Admirável Mundo Novo onde é evidente o antagonismo entre o mundo civilizado, técnico, controlado, estável e artificial e o mundo selvagem, indígena, espontâneo, instável. O artificial versus o natural (ou mais próximo do natural, digamos, pois toda cultura humana é artificial em relação a vida natural).


O que se proclama civilizado que continuar progredindo cientificamente com tecnologias e aparatos, enquanto os tradicionalistas se apegam ao prazer e ao sofrimento mais visceral, e vivem em ambientes nada 'assépticos', nada artificias, desprezando todo avanço tecnológico, ou agricultura mecanizada, ainda a acreditarem em deidades naturais e rituais de fertilidade. São sociedades 'estáveis' ao seu modo.


Estabilidade que é a obsessão do mundo controlado, planejado. Nada pode mudar. Nada pode sair dos planos. Por isso as massas populares são condicionadas por propaganda e policiamento constante. Os governantes querem suas políticas seguidas em cada detalhe e não aceitam discussão ou divergências. Os tradicionalistas usam seus líderes e pajés, enquanto os cientificistas usam seus técnicos, seus especialistas. Ambos se perdem, fechados em seus 'ghettos', e dispensam o diálogo.


Pensemos: o que causa instabilidade? O que causa medo aos dominantes? O progresso? Então, passam a controlar a 'marcha' da ciência, da técnica, da sustentabilidade. As revoltas populares? Então a polícia secreta investiga os subversivos e elimina, sob torturas, os líderes populares nos porões. A obra de Arte causa instabilidade? Então, deve ser queimada. Assim pensam os mandatários em “Fahrenheit 451” e no filme “Equilibrium”. Mas a estabilidade deve ser mantida ainda que o preço seja uma felicidade alienada, artificial, mantida por diversão constante e drogas sintéticas.



No mundo de tecnologia e controle em “Admirável Mundo Novo” os cidadãos são treinados (ou melhor: condicionados) para determinadas funções desde o momento da fecundação. São apenas células reprodutoras submetidas a várias divisões celulares – meioses e mitoses – a produzir gêmeos idênticos, num método de manipulação genética chamado “Processo de Bokanovsky”.

“Um zigoto, um embrião, um adulto – é normal. Mas um zigoto que sofreu o processo de Bokanovsky irá germinar, proliferar, se dividir. De oito a noventa e seis brotos, e cada broto até ser um embrião perfeitamente formado, e cada embrião será um adulto plenamente formado. Fazendo noventa e seis seres humanos crescerem onde antes apenas crescia um. Eis o progresso.”
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(One egg, one embryo, one adult – normality. But a bokanovskified egg will bud, will proliferate, will divide. From eight to ninety-six buds, and every bud will grow into a perfectly formed embryo, and every embryo into a full-sized adult. Making ninety-six human beings grow where only one grow before. Progress. p. 17, cap. 1)


Há toda uma 'linha-de-produção' de seres humanos, controlados desde a inseminação, passando pelo estado embrionário, quando recebem vacinas e substâncias sintéticas em verdadeiros 'úteros artificiais', em centros especiais de reprodução assistida.


Assim a população é controlada, cada cidadão é destinado a uma profissional, uns para o pensamento, e muitos para a labuta. E todos felizes em servirem à sociedade. Feliz em ser intelectual, e feliz em ser faxineiro. Uma felicidade artificialmente mantida e reproduzida. Desde que tudo mantenha-se sobre controle. Eis o progresso para o empolgado Diretor.


“O Processo de Bokanovsky é um dos maiores instrumentos da estabilidade social!' […] Homens e mulheres padronizados; em grupos uniformes. Toda a equipe de uma pequena fábrica sendo o produto de um único zigoto submetido ao processo de Bokanovksy.

'Noventa e seis gêmeos idênticos trabalhando em noventa e seis máquinas idênticas!' A voz quase tremia com entusiasmo. 'Vocês realmente sabem quem são. Pela primeira vez na História.' Ele citava o lema planetário. 'Comunidade, Identidade, Estabilidade.' Grandes palavras. 'Se pudéssemos submeter ao processo de Bokanovsky de modo contínuo então todo o problema estaria resolvido.'”
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Bokanovsky's Process is one of the major instruments of social stability!' […] Standard men and women; in uniform batches. The whole of a small factory staffed with the products of a single bokanovskified egg.

'Ninety-six identical twins working ninety-six identical machines!' The voice was almost tremulous with enthusiasm. 'You really know where you are. For the first time in history.' He quoted the planetary motto. ' Community, Identity, Stability.' Grand words. 'If we could bokanovskify indefinitely the whole problem would be solved
.' p. 18, cap. 1


O Narrador, quando se cansa da própria ironia, entrega a função explicativa, doutoral, ao Diretor em retórica palestra durante uma aula aos jovens estudantes no centro de reprodução assistida. Tudo o que soaria absurdo e mesmo risível na Narração, é explicado de modo professoral pelo Diretor, pelo Administrador e outros experts, os especialistas em Reprodução que pouco compreendem da totalidade sociológica na qual vivem. Vive-se, depois se tenta racionalizar, justificar. Aqui tudo em nome da Estabilidade.

“'E eis', o Diretor desenvolveu isso de modo sentencioso, 'eis o segredo da felicidade e da virtude – gostar do que você é obrigado a fazer. Todo o objetivo do condicionamento é este: fazer as pessoas gostarem de seus inescapáveis destinos sociais.” (“'And that', put in the Director sententiously, 'that is the secret of happiness and virtue – liking what you've got to do. All conditioning aims at that: making people like their unescapable social destiny.' p. 24)


Assim o intelectual é condicionado a amar a Ciência e a Erudição, do mesmo modo que o faxineiro é condicionado a amar a labuta de limpeza, de remoção de detritos, de serviços 'degradantes' aos intelectuais. Cada pessoas é destinada a uma função social desde o útero artificial – até porque nem sequer mães e pais existem como família. Tudo é inseminação artificial, reprodução em proveta. Ao contrário das esperanças de Gramsci (e do próprio Huxley) no sentido de que a Educação fosse cada vez mais generalizada e geral, sem especialistas em demasia, ao contrário sendo o ensino técnico aliado ao intelectual, de modo a não criar experts e técnicos, nem uma classe intelectual e uma classe operária.


No mundo admirável da distopia as crianças são condicionadas ao modo pavloviano, em sofisticados aprendizados behavioristas, in utero ou em classe, sendo que os destinados ao trabalho com o calor sofrem níveis altos de temperatura até se adaptarem, e os que devem ser trabalhadores braçais devem odiar os livros e os estudos, e assim por diante. A pessoa é criada, condicionada, programada para gostar de ser intelectual, engenheiro, faxineiro, etc, durante toda a vida – e feliz em ser o que é (ou seja, não há escolha). O progresso, a estabilidade aqui significa : fim do livre-arbítrio. A relação indivíduo-função social é dada desde a concepção. Uns nascem para pensar, outros para carregarem pedra.


As 'castas' superiores' devem amar os livros – serão os intelectuais – do mesmo modo que as 'castas inferiores' devem detestar os livros – serão os trabalhadores braçais que se vangloriam de sua ignorância, 'Ler? Estudar? Coisa de gente grã-fina, de gente molenga!'. Cada um vai aceitar desde a infância um locus social previamente demarcado. É o apogeu do pensamento parcial – um especialista que vive um seu próprio 'mundinho', alienado quanto ao resto.

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Sobre o condicionamento em Pavlov
mais info em
http://www.cerebromente.org.br/n09/mente/pavlov.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Reflexo_condicionado
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ivan_Pavlov
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Os desejos - tanto quanto os slogans - são instilados via recursos mnemônicos, como se fossem aprendizados de línguas estrangeiras em períodos de pré-sono, como se fossem revelações da verdade absoluta durante os sonhos. Tudo o que cada pessoa julga como o mais íntimo pensamento individual ou gosto pessoal já foi programado por repetições contínuas de frases feitas, conhecimentos que não passam de ladainhas hipnóticas.


O que o cidadão julga ser o que ele quer é ilusão – já se espera que ele queira isso ou aqui – ele quer o que as Elites desejem que ele queira. As Elites, o Estado, o Partido, quem quer que seja o mandatário do momento. Toda escolha já é previamente escolhida, o jogo é inteiramente jogado com cartas marcadas. A Estabilidade é o planejamento e o controle em escala total – da concepção até a incineração.


As castas são bem demarcadas e nenhuma 'ascensão social' é possível. Alfas serão sempre Alfas porque foram condicionados e educados para serem Alfas. E assim os demais – Betas, Gamas, Deltas, Ípsilons – cada um será durante toda a vida mantido no mesmo locus social. Um Alfa sempre pensará como um alfa, um Beta verá o mundo da perspectiva de um Beta, um Gama sentirá tudo como um Gama deve sentir, e assim por diante. Não há qualquer crítica sobre o 'sistema de castas', uns mandam e outros obedecem. E se algum desconforto aparecer – seja físico ou emocional – há uma droga sensacional : sintética e sem contra-indicações: o soma.


A droga sintética soma aliada ao entretenimento constante e alienado cria uma realidade de entorpecimento e conformismo onde a ausência de um dos itens causa verdadeiro pânico. Todos querem drogas, todos querem se divertir. Ora, 'pão e circo' é o que as Elites jamais negam aos dominados: há melhor modo de dominar do que 'divertindo' o dominado? Nem se precisa de coerção, força policial, etc. Basta dar diversão, dar adrenalina, filmes violentos, novelas sentimentalóides, reality shows com direito a 'eliminação' ao vivo.


É preciso aumentar o consumo? É preciso incentivar as viagens turísticas? É preciso divertir aqueles com tendências solitárias? É preciso condicionar as novas gerações? É preciso isolar os desadaptados? Tudo é providenciado em nome da Estabilidade. As engrenagens se movem e a Máquina segue adiante, com slogans, campanhas publicitárias hipnóticas, filmes com sensações, helicópteros disponíveis para os casais sobrevoarem o mar durante a lua cheia. Tudo está ao alcance na mão – menos o pensamento crítico.


Aliás, para quê o pensamento crítico num mundo de plena felicidade? Ninguém questiona a felicidade, aceita-a. Ninguém quer saber se a felicidade mascara uma dominação, uma vida alienada e drogada. Eis a ironia do mundo admirável – tudo é tão perfeito que não se precisa pensar, meditar, raciocinar. Somente um mundo injusto exige uma forma de crítica. O mundo da 'utopia' é inatacável? Ao atingirmos uma certa 'perfeição' então seremos a-críticos?


Pensamos tudo isso diante da figura do Administrador. Ele é o personagem mais interessante: Mustapha Mond, o erudito governante que sabe do mundo antigo e do mundo civilizado. Ele que tece ironias sobre as condições pré-históricas (onde nos incluímos, vivendo cinco séculos antes do apogeu da Era de Ford). Mustapha Mond é o diretor, o todo-poderoso, por que é um dos únicos com olhos numa terra de cegos?


Para estabelecer um contraponto entre a fala do Administrador e as ações dos demais cidadãos, a Narração utiliza o recurso de múltiplas perspectivas, com o narrador em vários lugares ao mesmo tempo – a simultaneidade – a registrar as várias camadas de perspectividade, como se fosse uma técnica cubista, com cena dentro de cena, repletas de referências ao nosso tempo – a produção do automóvel modelo T, pelo engenheiro Henry Ford (EUA, 1863-1947), em linha-de-montagem-em-série, é um marco para a civilização e o calendário 'fordista', estamos no início da fictícia Era Ford.

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Sobre o Ford modelo T
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ford_Model_T
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Temos, simultaneamente, uma cena figurativa, com tom descritivo, situacional, com as personagens atuando, enquanto a voz do Administrador ecoa, em eruditas explanações sobre o mundo civilizado em superação ao mundo pré-fordista, de produção ineficiente e instável (referência aos ciclos de expansão e retração do capitalismo, evidente com a crise mundial de 1929, depois da qual muitos economistas passaram a apoiar o planejamento, a economia planificada). A cena figurativa 'ilustra' a cena retórica, discursiva, dissertativa, quando somente vozes se apresentam tal qual uma cena teatral.


As figuras dos Alfa, dos Betas, dos Gamas, dos Delta e dos Ípsilons se movimentam como fantoches enquanto o Administrador expressa sua sabedoria e confiança, a justificar o mundo tecnocrata e obcecado por estabilidade. Em sua 'erudição', Ford se confunde com Freud, enquanto a família e a monogamia são execradas, o consumo e o controle de natalidade são elogiados. Qualquer coisa chamada 'democracia' ou qualquer outro fenômeno denominado 'liberalismo' não passam de palavras ou peças de um museu. Coisa do passado. Assim como a Arte, a Literatura, a História.


“Vocês todos se lembram,' disse o Administrador, com sua voz forte e profunda, 'Vocês todos se lembram, eu suponho, aquele dito belo e inspirado de Nosso Ford: A história é uma farsa, A história', ele repetia lentamente, 'é uma farsa'.

Ele agitou a mão; e era como se, com um espanador invisível, ele estivesse espanado um pouco de poeira, e a poeira era Harappa, era Ur da Caldeia; algumas teias-de-aranha, e estas eram Tebas e Babilônia, e Cnossos e Micenas. Uma espanadela, e outra – e onde estava Ulisses, onde estava Jó, onde estavam Júpiter e Gautama e Jesus? Espanadela – e aquelas nódoas de sujeira antiga chamada Atenas e Roma, Jerusalém, e o Império do Meio – tudo já era. Espanadela – e se esvaziava o lugar onde ficava a Itália. Espanadela – já eram as catedrais; espanadela e mais outra, já eram o Rei Lear e Os Pensamentos de Pascal. Espanadela, a Paixão; espanadela, Réquiem; outra, já era a Sinfonia; e ainda outra espanadela...”
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“'You all remember,' said the Controller, in his strong deep voice, 'you all remember, I suppose, that beautiful and inspired saying of Our Ford's: History is bunk, History', he repeated slowly, 'is bunk'.

He waved his hand; and it was as though, with an invisible feather whisk, he had brushed away a little dust, and the dust was Harappa, was Ur of the Chaldees; some spider-webs, and they were Thebes and Babylon and Cnossos and Mycenae. Whisk, whisk – and where was Odysseus, where was Job, where were Jupiter and Gotama and Jesus? Whisk – and those specks of antique dirt called Athens and Rome, Jerusalem, and the Middle Kingdom – all were gone. Whisk – the place where Italy had been was empty. Whisk, the cathedrals; whisk. Whisk, King Lear and the Thoughts of Pascal. Whisk, Passion; whisk, Requiem; whisk, Symphony; whisk...”
p. 38, cap. 3


Podemos estabelecer uma perspectiva de leitura a partir de certas personagens que sabem, que conservam certo saber numa sociedade de alienados. Assim podemos seguir o foco de Mustapha Mond em Admirável Mundo Novo, e o de O'Brien em 1984, e o Capitão Beatty em Fahrenheit 451. Estes antagonistas são mais interessantes que os protagonistas – os quase-heróis – pois os reacionários são aqueles que sabem, que têm olhos para ver onde todo mundo está mergulhado na cegueira.


Mas como eles vivem, seguem com suas vidas, sabendo? Eles não morrem de sofrimento? Afinal, a alienação, que é condição básica da 'felicidade' ou 'entorpecimento' dos outros, não teme feito sobre eles. Tanto Mustapha quanto O'Brien adquirem um caráter cínico e até sádico, enquanto Beatty é um ironista amargo (que por fim se deixa queimar diante da vingança do protagonista).


Os governantes, as Elites, sempre sabem mais? O se enganam nas mesmas ilusões que inventam para os dominados? Até onde o Administrador acredita no que diz? Afinal, ele também foi condicionado! Ele pode saber comparativamente um pouco mais – contudo seu saber é viciado, é programado. Ele somente saberá justificar o mundo que é – nunca defenderá o mundo que foi. Foi superado? A distopia é superação ou regressão? Se considerarmos a tecnologia e a eficiência, então eis um avanço. Mas consideremos o livre-arbítrio, o livre pensamento, a Arte, em suma, a criatividade, tudo isso perdido, então estamos num retrocesso.


Em comparação a Mustapha Mond temos duas outras personagens, dois Alfas, que se destacam um pelo complexo de inferioridade e o outro pelo complexo de superioridade. Um a sentir-se não plenamente adaptado o mundo dos Alfas, sente-se rejeitado por seu físico, seu olhar inquieto sobre o mundo. Nem ele sabe por que não se 'encaixa' no ritmo – será álcool em demasia que injetaram em seu sangue no útero artificial? Este é o Bernard Marx.


O desassossegado e reflexivo Bernard Marx lembra muito o desadaptado John Flory do romance “Burmese Days” (1934) de George Orwell. É o jovem que não sabe como se comportar numa sociedade de classes. Como tratar com os inferiores, como bajular os superiores? Como ser superior e dar ordens aos inferiores? Afinal de contas, numa sociedades de classes, ou mesmo de castas, ou um sistema fascista, tudo se move como um conjunto de engrenagens numa hierarquia, onde um manda e outro obedece.


Bernard seria um indivíduo B numa série A – B – C, onde B suporta receber ordens de A apenas porque pode dar ordens a C. O problema seria ser um indivíduo do tipo C, um subordinado, um soldado raso, um pária, por exemplo. Quem tem autoridade nem precisa mandar, exagerar o poder. Basta se posicionar quanto a um tema, e outros o seguirão. Demonstra poder justamente quem precisa se afirmar diante dos outros (o famoso 'eu mando aqui' do patrão inseguro).

O outro personagem é um talentoso Alfa que sempre ousa um pouco mais, é demasiadamente criativo, inteligente até demais para os padrões que são esperados para os intelectuais Alfa. É um homem igualmente sedutor diante dos desejos volúveis das mulheres – sempre promíscuas, sempre disponíveis. Por seus excessos – tanto físicos quanto intelectuais – este Helmholtz Watson passa a ter uma certa 'noção de si mesmo', fenômeno não programado. O que nele é uma auto-afirmação do Ego, em Bernard Marx é uma necessidade de ser aceito pelos Egos alheios.

Entre Bernard e Helmholtz surge uma amizade meio simbiótica: um ouve os elogios, os desconfortos, as lamúrias, e o outro ouve as frases geniais, os pensamentos ousados que não são de 'bom-tom' na sociedade estabilizada – qualquer novidade, qualquer mudança pode 'desestabilizar'. A distopia é o reino do conservadorismo – até a Ciência deve ser controlada, confinada. Um gênio tal como Helmholtz é olhado com desconfiança pelos Administradores.

“'Capaz.' era o veredicto de seus superiores. 'Talvez' (e eles sacudiriam a cabeça, e abaixariam suas vozes) 'um pouco capaz demais'.

Sim, um pouco capaz demais. Eles estavam certos. Um excesso mental produzira em Helmholtz Watson efeitos muito similares àqueles que, em Bernardo Marx, eram resultado de um defeito físico. Ossos e músculos frágeis tinham isolado Bernard de seus colegas, e o senso deste isolamento, sendo, de acordo com os padrões correntes, um excesso mental, tornou-se, por sua vez, uma causa de maior separação. Pois o que fizera Helmholz assim tão desconfortavelmente consciente de ser ele-mesmo e tão sozinho fora a sua excessiva habilidade. O que os dois homens compartilhavam era o conhecimento de que eles eram indivíduos. Mas quando o fisicamente defeituoso Bernard sofrera a vida toda com a consciência de ser separado, esta apenas recentemente, com o crescente despertar de seu excesso mental, Helmholtz Watson ficara consciente de sua diferença diante das pessoas que viviam ao seu redor.”
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“'Able.' was the verdict of his superiors. 'Perhaps' (and they would shake their heads, would significantly lower their voices) 'a little too able.'

Yes, a little too able; they were right. A mental excess had produced in Helmholtz Watson effects very similar to those which, in Bernard Marx, were the result of a physical defect. Too little bone and brawn had isolated Bernard from his fellow men, and the sense of this apartness, being, by all the current standards, a mental excess, became in its turn a cause of wider separation. That which had made Helmholtz so uncomfortably aware of being himself and all alone was too much ability. What the two men shared was the knowledge that they were individuals. But whereas the physically defective Bernard had suffered all his life from the consciousness of being separate, it was only quite recently that, grown aware of his mental excess, Helmholtz Watson had also become aware of his difference from the people who surrounded him.”
p. 62, cap. 4


Bernard quer ser livre, ainda que saiba bem o seja 'liberdade'. Ele quer se livrar de uma 'escravização' causada pelo 'condicionamento', e ser assim, digamos, espontâneo, não determinado. Enquanto Helmholtz quer criar algo sensacional – seria Arte? - algo que seja inusitado, não determinado. Bernard quer ser aceito pelos colegas e pelas colegas, quer ser ouvido a admirado, enquanto Helmholtz já tem tudo isso, é idolatrado pelas colegas e admirados pelos colegas, mas quer algo mais – o quê? Quer criar Arte? Quer ser um artista? É um indivíduo insatisfeito com seus sucessos e quer sempre mais. Não apenas ser o melhor do quarteirão, mas do bairro, e depois da cidade, e depois do país, e então ser o melhor do mundo.


Digamos que tanto Helmholtz Watson quanto Bernard Marx são indivíduos porque são flutuantes. O que seria 'flutuante'? Um indivíduo que se destaca consciente de si-mesmo em relação ao demais padronizados. O primeiro personagem se destaca da multidão por ser acima da média com um Q.I. superior, enquanto o segundo se destaca porque tem um físico inferior aos de mesma classe. A diferença cria uma flutuação – 'eu que não sou igual ao/s outro/s – ora por superioridade ora por inferioridade, em relação ao padrão comum.


Os diferentes – posto que personalidades conscientes - são vistos então como excêntricos. E os excêntricos, em reação, passam a pensar e criticar o mundo dos padronizados – dos normalpatas. O flutuante passa a pensar: por que sou superior? Por que sou inferior? Enquanto os normais seguem seu caminho de mediocridade sem qualquer pensamento crítico. É mais fácil e cômodo ser mediano, medíocre, igual na multidão.


Certo. Porém a história aqui não sofreria qualquer, digamos, inflexão, qualquer superação se não fosse a entrada de outra personagem, John, ou o Selvagem, que é o filho indesejado, posto que não esperado (numa sociedade de 'bebês de proveta'), de uma mulher civilizada que se perdera numa reserva nativa (ou indígena) quando em visita com um civilizado (justamente o Diretor, o superior de Bernard). O Selvagem faz uma entrada, digamos, triunfal, tal um deus ex-machina de teatro clássico. Ele entra e a história ganha um fôlego.


Voltamos a enfatizar o contraponto: civilização versus tradição. Os cidadãos do mundo civilizado descobrem que há outro modo de vida, e encaram esta situação como um museu de culturas passadas, como um objeto de turismo. Com o mesmo encanto com o qual vamos ao zoológico ver os macacos. O civilizado se sente superior – e se justifica – porque se sente acima dos povos tradicionais. 'O índio, o selvagem, o bárbaro – é o outro.'


Quando Bernard descobre que pode 'tirar vantagem' – destruir a imagem e a carreira do Diretor que o persegue – da presença do Selvagem no mundo civilizado, ele, o bom mocinho até então, torna-se um subversivo, a questionar – agora com nova popularidade meio aos colegas, uma fama advinda da presença do exótico Selvagem. Pois a excentricidade do Selvagem acaba apenas por reforçar a superioridade auto-aclamada dos civilizados – 'Vejam! Somos civilizados! Não somos iguais a esse bárbaro! Este nascido de ventre de mulher! Somos bons bebês de proveta!'


A exceção de alguma regra apenas reforça a regra. Os normais se apegam ainda mais a sua normalidade, ao seu padrão de conduta, quando encontram um diferente, um exótico. Este será exposto em vitrine, em show, em museu de freaks. O show de monstruosidades apenas apresenta a sublimidade da beleza, assim como a exibição de inteligência mostra as vantagens conformistas da ignorância.






continua...







por

Leonardo de Magalhaens







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quinta-feira, 9 de junho de 2011

Literatura enquanto Distopia








Literatura enquanto Distopia


Introdução - Utopia X Distopia


O que é utopia?


Situado em local não definido, seja nas brumas do passado ou nos vislumbres do futuro, a 'utopia' é um sonho de mundo igualitário e justo, uma sociedade que encontrou o equilíbrio e não se desgasta em conflitos de classes, guerras civis e guerras globais. A 'utopia' é um fruto dos sonhos de pensadores que viviam (e sobreviviam) numa época de Absolutismo – após o Renascimento e antes do Iluminismo. Uma época que pensava profundamente o que seria 'civilização', o que seria uma 'sociedade', quando da crise do chamado 'antigo regime'.


Utopia: palavra, ainda que não conceito, “tenha sido proposta apenas no século XVI, quando um inglês, Thomas More, faz publicar em latim, em 1516, um livro onde se relata a vida melhor levada pelos habitantes de uma ilha situada em algum lugar, a ilha de Utopia, de ou-topos, o não-lugar, lugar nenhum, nenhures. Não deixa aliás de ser curioso, e de ter um certo sabor amargo, que a designação daquela vontade de uma vida melhor, que sempre esteve e está espalhada por toda parte, acabasse fazendo referência exatamente a parte alguma, a lugar algum. No entanto, não foi por acaso que isso aconteceu, e o motivo da escolha dessa palavra já mostra como desde sempre os adversários da plena realização do homem, os poderes constituídos (por natureza conservadores e, mesmo, reacionários), procuraram reprimir e esmagar a imaginação utópica.”

(O que é Utopia, Teixeira Coelho, Brasiliense, 1985, pp. 16 e 18)


As utopias – e os utópicos – são progressivas ou regressivas? O melhor está ainda no futuro, ou a humanidade já passou por eras de ouro as quais devemos voltar? Devemos voltar a um modo de produção artesanal, em pequena escala? Ou procurar conservar o melhor, o mais dinâmico e eficiente, do mundo industrial mecanizado?


Consideramos as Esquerdas como progressistas, desenvolvimentistas, mas muitas ambições de Esquerda são vontade de retorno a um mundo pré-capitalista, comunal e menos individualistas. Um mundo sem o consumismo que leva a um excesso de produção que leva a mais consumismo. Como romper o círculo vicioso? Adotando medidas anti-capitalistas, ou pré-capitalistas. Muitos falam em até acabar com as máquinas! Como poderemos viver sem as máquinas? Outros esperam que as máquinas trabalhem de acordo com novos paradigmas de cooperação e sustentabilidade.


“Estes dois exercícios da imaginação utópica [a República, de Platão, e Utopia, de More] constituem, de certo modo, aquilo que se poderia chamar de arquétipo da utopia política, do qual derivam uma série de outros. Estes apresentarão variações, diferenças, penetrarão em campos não explorados por aqueles e irão mais longe, eventualmente; mas a estrutura básica é a que vem figurada na República e na ilha de Utopia.



Sob alguns aspectos, ambos os programas são regressivos, defendem o retorno a uma situação ideal ou idealizada que teria ocorrido nos primórdios da humanidade e que o homem teria perdido. Esta tendência para o passado é, também ela, um traço próprio da imaginação utópica, por mais que alguns pretendam renegá-lo por reacionário, e pode ser tomado como uma vontade de apreender e integrar esse passado à vida do homem e do grupo a fim de evitar que percam suas amarras e se alienem.


Mas ambos são também aquilo sem o que a imaginação utópica declina: emblemas do futuro, que arrancam soluções do passado para projetá-las, jogá-las para a frente, reformuladas. Sob este aspecto, são exemplos daquele utópico-concreto, distinto do sonho abstratamente utópico porque leva em consideração as possibilidades históricas de realização. De fato, a sociedade concretizou ou continua mostrando uma tendência para concretizar várias das proposições desses e de outros programas. Estes servem como exercícios de sonho, mas são igualmente forças contraditórias da realidade, muito concretas. Que o diga a vontade reacionária, sempre vigilante no sentido de impedir que aquelas se realizem.”


(O que é Utopia, Teixeira Coelho, Brasiliense, 1985, pp. 33-34)



O que é distopia?



Para Teixeira Coelho, as distopias são utopias 'declaradamente 'más''. “É o caso do Admirável Mundo Novo e 1984. Em ambas, o Estado não oculta sua vocação totalitária, e tanto uma como outra são, no fundo, a República levada a suas últimas consequências. No mundo novo temido por Huxley, o indivíduo está condenado desde a infância. Habituado a não pensar por conta própria, a sempre seguir seu líder, esse indivíduo sem livre arbítrio e sem consciência revela-se perfeitamente adaptado a suas funções ('cada um ocupa-se de suas coisas') e sente-se, assim 'feliz'. É um indivíduo programado, mas está erra do dizer que o é desde a infância: está programado desde a concepção, já que é um bebê de proveta. E as coisas não são nada melhores em 1984, com seus minutos de ódio programado, seu Grande Irmão que tudo guarda e observa, seus copistas encarregados de mudar o passado que não se adapta às palavras do Estado (intolerado e condenado não é apenas o indivíduo que se opõe ao Estado; condenada e eliminada é a própria História), seus processos de tortura psicológica capazes de fazer o melhor dos seres humanos renegar aquilo que lhe é mais vital. Um mundo cujo totalitarismo se infiltra na própria linguagem, regido que é por três palavras de ordem: 'A guerra é a paz', 'A liberdade é a escravidão', 'A ignorância é a força'.”


(O que é Utopia, Teixeira Coelho, Brasiliense, 1985, pp. 44-45)



O pensador revolucionário Karl Marx proclamava a revolução e não a utopia (ou as utopias dos 'socialistas utópicos') que poderiam ser bons projetos, mas não passavam de paternalismo, filantropia e fantasia. Utopias que serviam como uma crítica ao sistema vigente absolutista e mercantilista da época (séculos 16 e 17), enquanto as críticas de Marx atacavam os modos de produção pós-Revolução Industrial (séculos 18 e 19), com a utilização da mão-de-obra de adultos e crianças que se amontoavam nas cidades devido ao êxodo rural.

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Sobre os socialistas utópicos
http://www.citi.pt/cultura/temas/frameset_utopico.html
http://pt.wikibooks.org/wiki/Socialismo_no_Século_XXI/Capítulo_1/Socialismo_Utópico
http://pt.wikipedia.org/wiki/Socialismo_utópico
http://mrh1.sites.uol.com.br/mrhsocial5.htm
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Tanto Marx quanto seu discípulo Lênin eram homens práticos, pragmáticos, não sonhadores, não ficcionistas. Viam a sociedade e pretendiam iniciar uma revolução com o poder popular, não sobre o povo, não de cima-para-baixo como queriam os reformistas filantropos. Não devia ser um projeto que os bondosos reformadores implantariam para 'salvar' o povo, mas um novo modo de produção criado pela força popular para o bem-estar do povo. E Marx nunca explicou bem como seria tal sociedade socialista, nunca entregou uma forma pronta, como faziam os utopistas com riquezas de detalhes.


A importância tanto da utopia quanto do socialismo é a de criticar as injustiças sociais, as explorações das classes dominantes sobre as classes dominadas, a de proclamar que a História é um processo de lutas e que todo conformista torna-se um conservador. As classes privilegiadas impedem mudanças que possam 'subverter' o sistema de domínio, a hegemonia do lucro e da mais-valia, onde poucos ganham e a maioria recebe migalhas do banquete social.


Os estudantes subversivos de Maio de 1968 eram mais utopistas do que os revolucionários dos anos 1920, pois lutavam contra os controles tanto capitalista quanto estalinista (ou Capitalismo de Estado). Tanto Direita quanto Esquerda eram rótulos que pretendiam superar.

Atualmente os projetos utópicos sequer são considerados (ou são interesse de uma minoria de desadaptados) depois de tantas desilusões (e traições) com os movimentos socialista, anarquista, hippie. Algumas comunidades ainda existem, mas sem qualquer apelo popular, sem objetivo de mudança social. São iguais aos mosteiros medievais, com grupos de pessoas que se isolam da sociedade. Pessoas que se voltam para um passado idealizado de misticismo, esoterismo, paganismo, rituais folclóricos, sagas épicas e magias xamânicas.

“Depois das três primeiras décadas, alimentadas pelo sonho do milenarismo comunista tentado na Rússia, surgiu a produção utopista por muitos considerada como típica de nossa época: a distopia, configurada em 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley – resultantes de um ceticismo quanto às possibilidades de reforma, para melhor, da sociedade, em ambos as obras pintada como o lugar da repressão máxima.

A desilusão, de fato, tende a se instalar. Após a transformação da União Soviética em distopia burocrática, como dizia Lênin, duros golpes foram o fracasso da guerrilha de Che Guevara, os acontecimentos no Vietnã após o conflito com os EUA e as escaramuças militares entre países comunistas; Cuba, apesar de tudo, perde parte de seu carisma e o mesmo, relativamente, acontece com a China. Mas, diante desse quadro, não se legrem rápido demais dos ideólogos do capitalismo neoliberal ou neo-outros-rótulos: mesmo para aqueles que insistiam em não admiti-lo, a máscara deste regime terminou de cair definitivamente.”

(O que é Utopia, Teixeira Coelho, Brasiliense, 1985, pp. 86-87)



O contexto – a época


As obras de Sci Fi (ficção científica) e distopias aqui analisadas (no Meu Cânone Ocidental) foram escritas nas décadas de 1930 a 1950, ou seja, num período de turbulência econômica e política, quando as economias desenvolvidas europeias precisavam decidir qual seria o sistema a adotar: ou as democracias liberais, de livre-mercado, ou os totalitarismos, sejam de esquerda ou de direita, onde havia controle e planejamento, repressão e propaganda.


Os povos precisavam lidar com novos dirigismos, uniformizações, tentativas de eugenia, caça aos intelectuais, lutas de classes, revoluções e contra-revoluções. O conflito econômico e ideológico levou a uma guerra a mais longa e total que já se abatera sobre a raça humana, guerra global entre 1940 e 1945, que terminou deixando conflitos que poderia gerar outra. As duas superpotências vencedoras – Estados Unidos e URSS – quase se enfrentaram após derrotarem os nazi-fascistas. Iniciava-se o período da “Guerra Fria” até o final da década de 1980.


Num momento de crise econômica e de crise política das ditas democracias, quando estas foram ameaçadas por regimes de extrema direita e extrema esquerda (aqui é de se perguntar se o 'estalinismo' não era uma espécie de contra-revolução, ou seja, direita, camuflada de esquerda...), que deixaram os democratas numa crise de identidade, de como se situar num mundo entre conflitos – guerras civis, guerras globais – e de como conservar a democracia formal em seus próprios países.


Vários pensadores nos regimes formalmente democratas tentaram imaginar modos de reformar o capitalismo liberal em crise, através de planejamento, através de políticas trabalhistas – até populistas, de demagogias de esquerdas, mas com práxis de direita, vide o getulismo no Brasil...), de modo a impedir um 'conflito de classes' e acomodar os interesses de patrões e empregados em prol de uma abstração política-ideológica, o Nacionalismo. Várias nações passaram a proclamar suas peculiaridades nacionais, na exaltação de um passado épico, de uma tradição sacrossanta que deveria ser mantida a todo custo. A Itália fascista mirava-se no Império Romano, a Alemanha nazista admirava o Império Germânico, os norte-americanos redescobriam os 'pais fundadores', o 'destino-manifesto', a livre-iniciativa anglo-saxã.


Em reação ao internacionalismo socialista, e também anarquista, as classes dominantes passaram a integrar (daí integralismo, aqui no Brasil) os vários grupos sociais em redor de um totem (que se passava por a-político) de um símbolo aglutinador, a figura da Pátria, a Nação todo-poderosa, uma espécie de 'corpo nacional' a integrar todos os 'órgãos', ou seja, os que pensam e os que labutam, os que lutam e os que administram. Este nacionalismo exaltado era uma forma de fazer esquecer os antagonismos internos e desviar os ódios de classes para agredir os países vizinhos – de modo que proletários de vários países não se uniram, como desejava o internacionalismo, mas, ao contrário, mataram-se uns aos outros.



Pensando a Utopia


Numa época de crise e pensamento sobre a crise, o autor de “Admirável Mundo Novo” (Brave New World, 1932), Aldous Huxley (1864-1963) foi um grande pensador sobre as possibilidades utópicas, sob quais condições poderíamos construir uma sociedade mais justa e equilibrada.


Convenhamos que Aldous Huxley é um dos grandes intelectuais 'generalistas' da primeira metade do século XX, que tratavam de filosofia, sociologia, psicologia, etc, por isso chamados de 'polímatas', que seriam contrapontos aos atuais especialistas, experts em pulmão que pouco sabem sobre os rins, ou que acessam programas mas nada entendem de chips na placa-mãe. Especialistas que não sabem pensar holisticamente, em totalidade, numa plano mais geral.


Assim, ao lado de mentes privilegiadas, tais como Erich Fromm (alemão, 1900-80) e Bertrand Russell (britânico, 1872-1970), Huxley pensou e repensou sobre as questões humanas, nas buscas de relações de vários eventos, na integração diante da multiplicidade de categorias, rumo a uma 'coerência' intelectual.


Em 1937 Huxley publicou um livro de ensaios “Ends and Means” (no Brasil traduzido como “Despertar do Mundo Novo”) onde discute as questões já tratadas figurativamente em “Admirável Mundo Novo”. Nos ensaios ele tematiza, ele aborda sociologia, psicologia e ideologias de forma explícita, se posiciona sobre as tentativas de implantação de utopias – que sempre acabam deformadas pelos próprios 'vanguardistas' ou demolidas por forças reacionárias – internas ou externas.


Huxley discute a questão do desapego (ou altruísmo) em relação ao sistema de egoísmo e competição no qual vivemos. Discute a questão levantada pelos iluministas – que acreditavam na razão, na racionalidade – que é uma regra reforçada por dois pensadores enquanto 'exceção', Marquês de Sade e Friedrich Nietzsche.


Sade é um individualista hedonista, enquanto Nietzsche odeia a 'moral do rebanho', ou seja, a civilização cristã ocidental e seus moralismos hipócritas. Moral que para Huxley não pode ser totalmente desprezada. Afinal, podemos concluir, Huxley não é um revolucionário, mas um reformista. Como um bom britânico não pretende demolir a 'ordem social', mas 'reformá-la'.


meu ensaio sobre a presença incômoda do Marquês de Sade
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/08/sobre-obra-do-marques-de-sade.html


Com o abandono do 'culto a Deus', num momento de perda do 'sentido', em plena crise de identidade, os povos adotaram outros ídolos, tais como a classe revolucionária, a nação, o grande líder, o dinheiro (=prosperidade, conforto), grandes temas (e lemas) para justificarem suas ações – guerrear em nome do Estado, da Nação, do Partido virou lugar-comum.


Os partidaristas, os nacionalistas, os comunistas, enfim todos os que se reúnem em torno de uma ideologia ou luta, justificam suas ações – seus meios nada morais – com a finalidade de um mundo melhor, a defesa dos direitos, ou das famílias, acham assim que os 'fins' legitimam os 'meios'. E suas lutas empregam os meios mais violentos, com os armamentos que os Estados acumulam em suas 'corridas armamentistas'.


De modo que o progresso técnico-científico não é acompanhado de um progresso mental-social, antes poderíamos viver plenamente numa barbárie hightech. Uma alta tecnologia à serviço de interesses de dominação, hegemonia, poderio hierárquico, num vetor oposto ao de libertação do ser humano.


O Autor ataca os comunistas, os fascistas, os nacionalistas, os conservadores das 'democracias', o sistema de competição e militarismo. Acusa os fanáticos de todos os campos: afinal de contas, os vanguardistas ou os reacionários visam determinados fins, objetivos, e não hesitam em usar meios, métodos, imorais. Em nome de uma causa ou de uma tradição toda a dignidade humana é violada, execrada.


Aqui há uma voz humanista tal qual notamos em Russell, Fromm e Thomas Mann. A defesa do indivíduo em nome da 'dignidade humana' como se esta fosse dada a priori e não uma construção da civilização ocidental. Pois exitindo civilizações onde não há o 'indivíduo' – esta categoria, digamos – mas o 'coletivo', não faz sentido universalizar a categoria 'dignidade humana', que somente faz sentido para nós que somos individualistas e não coletivistas. Somos fruto de uma série de 'revoluções liberais' que proclamaram a liberdade da livre iniciativa burguesa e a valorização da individualidade (desde que 'útil' ao sistema de produção e troca, claro).


Huxley seria mais um liberal de esquerda (num espectro político) visto que prefere a cooperação e o auto-governo do que a hierarquia, a competição e o militarismo – as 'verdades' absolutas dos fascistas. Mas ele critica a Esquerda no poder que deformou-se no estalinismo hierárquico, burocrático, repressor, militarista. Os reformadores foram digeridos pela própria reforma, acredita-se.

Afinal temos a prioridades? O que o humanista espera do ser humano? A busca do autoconhecimento ou da eficiência? Mas o que é 'autoconhecimento'? O que pode saber o indivíduo (que é um 'produto social') ? Mas espera-se que o autoconhecimento não leve ao egoísmo, individualismo, mas ao desapego e a solidariedade. Em contraponto ao militarismo que leva ao imperialismo, a exploração e escravidão de outros (e de nós mesmos, vide a relação Senhor – Escravo em Hegel e Nietzsche)


Para alcançarmos objetivos altruístas, os meios devem ser altruístas, como numa rebelião pacífica, numa desobediência civil (ver os exemplos de Thoreau, Gandhi, Martin Luther King Jr.), numa vida comunitária, em auto-gestão. Pois a revolução armada é violência que causa mais violência, seja o 'controle partidário', a 'vigilância vanguardista' (vide a 'patrulha ideológica'), seja a 'ditadura do proletariado', formas/meios que geram mais hierarquia e tirania (bolchevismo levou ao estalinismo, por exemplo)


Que os fascistas declarem o fanatismo militarista é uma posição que adotaram desde o início anti-liberal, mas que as democracia adotem métodos fascistas contra o fascismo isso seria um golpe contra os ideais democráticos. Para enfrentar os ditadores passaremos a utilizar métodos autoritários e centralistas? Como manter o 'livre-comércio' numa era de planejamento econômico e militar, de 'arsenal da democracia', como Roosevelt proclamou a posição norte-americana no início da Segunda Guerra Mundial.

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Ver sobre as democracias em guerra
http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com/2010/12/roosevelt-declara-eua-o-arsenal-das.html
http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com/2011/03/eua-congresso-aprova-lend-lease-act.html
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A solução – se é que podemos dizer assim – é apresentada como uma nova organização social baseada no cooperativismo, na produção coletivizada, mas sem a estatização, sem o Estado-produtor, e sem a propriedade privada. Afinal, socialização dos meios-de-produção não é estatização.


Para que exista este cooperativismo é preciso uma mudança no sistema de Educação, não uma revolução. Afinal de contas, a Educação atual – e mais ainda na época de Huxley, início do século 20 – visa a obediência do cidadão domesticado ao poder do Estado, a entidade paternal e punitiva. A educação para a cooperação visa a descentralização e ao auto-governo, em grupos e comunidades de no máximo 30 cidadãos. E que não precisam abolir a produção, destruir indústrias e máquinas, mas controlar coletivamente a produção para o bem-estar de todos.


Como tal comunitarismo seria possível nas grandes cidades? Ou seria um fenômeno rural, semelhantes as comunidades hippies? Ou inserir o modelo comunitarista nas cidades? Como manter o moral dos comunitaristas? Como impedir a competição e a administração? Como evitar a raça de parasitas chamados 'burocratas', chamados 'intelectuais', chamados 'militares' ?


A solução é a educação para o pacifismo, para a prática de esportes e jogos, sem visar qualquer 'eficiência bélica' ou 'guerra imperialista', sem anestesiar o corpo com meditações, mas congregando o trabalho e o pensamento. As crianças tendo acesso ao conteúdos humanistas, a filosofia, a literatura, e ao mesmo tempo tendo um trabalho artesanal, técnico, produtivo. A cooperação ensino-trabalho asseguraria a disciplina. E não o trabalho regido por 'princípios militaristas', com controle, ordem, hora de entrar e sair, hora do almoço, o que cria um verdadeiro 'exército de mão-de-obra'.


A disciplina deve ser antes o resultado de Responsabilidade compartilhada, igual para todos, não de imposição de uma classe sobre outras – aliás, nenhuma utopia poderia sobreviver algum tempo num sistema de classes. Um condição utópica seria a igualdade de condições – ainda que não de talentos. Huxley trata esta questão quando aborda os tipos humanos (o mental – cerebrotônico, o emocional – viscerotônico, muscular – somatônico) que se adaptariam a cada tipo de atividade, uns mais para o esporte, outros mais para a meditação. A disciplina é gerada pela cooperação entre os talentos, em livre-associação, com acesso igualitário às informações, em trabalho educativo, não alienado.


Pois desigualdade existe. Os seres humanos não são iguais, vejamos os critérios de psicologia, tais como talento, inteligência, aptidão profissional. É preciso talento para ser músico, é preciso pensamento abstrato para ser filósofo ou escritor. O que deve ser evitado é a extrema desigualdade, uns com acesso ao ensino e outros excluídos. A criança com talento para música e que nunca terá acesso a um instrumento musical, ou uma criança com talento para as matemáticas mas que jamais terá um livro de álgebra em mãos. Quantos talentos e potenciais são desperdiçados em nosso sistema educacional.


Afinal, a Educação deve aproveitar as potencialidades de cada um, uns para o pensamento e outros para a atividade técnica, mas sem excluir a priori, como um pré-determinismo: o rico pensa e o pobre labuta, o pequeno-burguês cuida do comércio e o nobre será o oficial do exército. Tanto que Gramsci, o pensador italiano, aconselha a educação tanto técnica quanto intelectual. Mas como romper os 'círculo vicioso' da educação? Quem educará as próximas gerações para o autogoverno e para a cooperação?


Outro item no debate: a Arte. A quem serve a Arte? Deve servir a alguém, ou a algum propósito? Tanto as Esquerdas como as Direitas desejam um 'padrão artístico' e desprezam/perseguem os que são rotulados de 'subversivos' ou 'inimigo de classe'. A Arte seria um espaço de livre criação per excellence. Uma forma de emancipação, não uma mera distração ou entretenimento. Mas o que vemos? A Arte sendo utilizada e deturpada para fins de propaganda!


Huxley mais se aproxima de um cristianismo otimista, a la Tolstoi, Gandhi, Martin Luther King, Madre Teresa – um cristianismo não religioso, ritualista, mas de solidariedade. Por isso o Autor condena os amorais tais como Sade e Nietzsche. Ambos seriam anti-éticos. Pensemos: Sade com certeza é anti-ético, pois não considera o Outro, mas o prazer do Eu. Mas Nietzsche não é meramente um imoral, é um Amoral, ou seja, propõe a superação da moral, 'criar novos valores', não é um arauto do Niilismo, mas clama pela superação do 'sem-sentido' da vida. Infelizmente, o pensador alemão não teve tempo de criar uma obra, digamos, construtiva, tendo apenas tempo de escrever a fase destrutiva – a 'filosofia com o martelo' - antes do crepúsculo nas sombras da loucura.


Assim, Huxley aceita a Religiosidade (não as religiões organizadas) e despreza o materialismo e o racionalismo, além do niilismo. Ele imagina um religiosidade com devoção cristã e meditação budista. Uma busca na mística oriental – daí o irracionalismo, o acesso às 'portas da percepção' – que já encontramos em Schopenhauer, Nietzsche, Hermann Hesse (autor de “O Lobo da Estepe”), como modo de superação e encontro com o Sentido do viver.


Os modelos judaico-cristãos devem ser superados – até porque a Bíblia não é modelo de conduta, mas o altruísmo e tolerância que nasce da meditação, um momento de desapego, de autoconhecimento, de transcendência para nos livrarmos da neurose civilizatória, daí a volta ao misticismo dos povos tradicionais, como encontramos nos movimentos new age, onde se acentua a necessidade de uma cooperação do ser humano com a Natureza, uma sociedade com sustentabilidade ecológica. Muitos vanguardistas desiludidos com os desenvolvimentismos de Esquerda passaram a se filiar aos partidos verdes, e a hoje a Ecologia é assunto em pauta.


É interessante comparar os pensamentos de Huxley, Fromm e Marcuse (autor de “Eros e Civilização”, 1955) quando tratam das questões de liberdade e sexualidade. Fromm discute com profundidade o mesmo 'medo à liberdade' que tanto inquietou La Boètie, pensador francês do século 16, amigo e interlocutor de Montaigne, que escreveu o “Discurso da Servidão Voluntária”, em 1552-53, sobre o fenômeno social da dominação: uma minoria (na época a nobreza e o clero) a dominar uma maioria, que não se rebelava. Seriam os dominados umas ovelhas conformadas? Não conseguiam perceber a própria miséria? Ou aceitavam 'seu lugar no mundo' porque também se sentiam fascinadas pelo poder?


Quando na época dos fascismos e do estalinismo, Fromm se perguntava por que as pessoas abriam mão de suas individualidades para seguirem padrões e líderes carismáticos, por que tinham tanto medo da liberdade, tanto receio de pensarem por conta própria sem seguirem slogans e palavras de ordem, as preocupações de La Boètie voltaram a ser debatidas: seja no conceito de hegemonia em Gramsci ou de repressão libidinal em Marcuse. Até porque política e sexualidade eram esferas submissas às mesmas coerções, como já escrevia Wilhelm Reich, autor de “As Origens da Moral Sexual” (1932), onde reencontramos algo pensado por Nietzsche e Freud.


Tanto para Freud quanto para Marx uma das causas do 'mal-estar na civilização' era a repressão sexual, a contenção da energia libidinal, na proibição do incesto, na formação da família. O ser humano seria naturalmente inclinado a plena satisfação de seus impulsos, assim a promiscuidade sexual seria uma das mais fortes tendências humanas, que seria reprimida quando os cidadãos eram obrigados a serem monogâmicos, fiéis provedores do lar. Para que ocorresse uma plena revolução – e não apenas política – era preciso liberar a libido, fazer prevalecer o domínio de eros, não da eficiência e do controle.


A chamada 'revolução sexual' ocorreu nas décadas de 1970 e 1980, no mundo burguês ocidental, a partir de protestos estudantis em Paris e outras capitais europeias, além de centros metropolitanos nos Estados Unidos e no México. Depois se espalhou hegemonicamente. Houve certo relaxamento da repressão sexual, mas se mantendo a instituição do matrimônio, ainda que arranhada pela possibilidade do divórcio. A libido se libertou, mas a mais-valia continua. As classes trabalhadoras continuam servindo aos burgueses, produtores e financistas.


Na questão do controle/repressão dos impulsos instintivos podemos comparar Brave New World e 1984. Como cada sociedade distópica encarava a sexualidade? Que métodos usaram para incentivá-la ou reprimi-la?


Vejamos a repressão. Conter os instintos violentos e sexuais exigem força, coerção, violência. Por isso o ódio latente nos personagens de '1984', e a violência 'disciplinada' no filme 'Equilibrium' (2002) (com visível influência de '1984' e 'Fahrenheit 451'). A sexualidade não despertada e não desfrutada cria um excesso de energia que é prontamente desviada para outros fins, por exemplo, a militância política, a guerra imperialista, a militarização em geral.


Agora a promiscuidade. Já em 'Brave New World' os instintos – principalmente os de dominação sexual – têm livre expressão. Se um homem deseja levar uma mulher para a cama, nada mais fácil. Basta que ele a convide para ir ao cinema, ou a um jantar, e depois subirem ao apartamento dele ou dela. A promiscuidade sexual é socialmente aceitável e incentivada. Em '1984', a sexualidade é reprimida, é socialmente condenada.


Quanto a nós, cidadãos ocidentais do século 21, estamos mais próximos de Brave New World – até porque nos livramos dos totalitarismos de direita e de esquerda – fascismos, nazismo, estalinismo – que adoram proclamar uma moral sexual puritana. Repressão sexual esta que foi criticada não só pelos direitistas reacionários, mas também por outros socialistas (vide Marcuse, Reich) além de anarquistas, hippies, adeptos da new-age, ou seja, a libertação não seria 'apenas' política, mas sexual.


Nos livramos de '1984' para melhor chegarmos ao Admirável Mundo Novo onde se libera a livre-fluição da libido, mas se mantem a divisão do trabalho, a propaganda hipnótica, a exploração da mais-valia, o trabalho e o divertimento alienados. A burguesia, os gerentes da produção em série, os burocratas, apenas alargaram as dimensões das rédeas, não liberaram o gado.



(fim da Introdução)


jun/11

por Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com





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