sábado, 26 de fevereiro de 2011

sobre "O Retrato de Dorian Gray" (2/2)




sobre “O Retrato de Dorian Gray
(The Picture of Dorian Gray, 1890/91)
do poeta e escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900)
.
Quando a Escrita simboliza o psiquismo narcisista


2 / 2

É com a visita de Harry, a trazer a notícia do suicídio de Sibyl – a morte de Ophélia? - que Dorian entende a consequência de seu impulso de crueldade – bem próximo ao 'impulso de perversidade', descrito nos contos terror-psicológico de Edgar Allan Poe. Dorian é uma personagem complexa pois dividida entre o narcisismo (a Beleza em si-mesmo) e a auto-consciência (que o atormenta tal qual um Hamlet, um Faust, um Manfred)

Para Dorian, o retrato seria a marca da 'consciência', visible emblem of conscience, além de 'consciência' que poderia substituir o 'temor de Deus' que Dorian não tinha. Ele se culpa pela morte da jovem – mas o quanto isto é sincero? O quanto é autêntico? Quanto tempo dura o remorso?

Estes mergulhos no psiquismo – tão abundantes nas obras românticas e ultra-românticas – está presente nas obras 'simbolistas', em contraponto as preocupações objetivas e coletivas do Realismo, mas atento ao que está fora da personagem do que os volteios da vida psíquica – e ainda nem falemos de 'inconsciente', em plena gestão na obra freudiana!

Há algo aqui das personagens autoconscientes de tragédias shakespearianas – além de metalinguagem. O que é lido nos romances emociona, mas a realidade não! É justamente a ironia em “Northanger Abbey”, de Jane Austen. Acontece que Dorian – assim também Catherine Morlay – são protagonistas de obras literárias!
O que Lorde Henry pensa disso? “Frequentemente acontece que as tragédias reais da vida ocorrem em tal maneira nada artística que nos ferem com crua violência, e absoluta incoerência, em absurdo falta de significação, em completa falta de estilo. As tragédias reais nos afastem tanto quanto a vulgaridade.” (It often happens that the real tragedies of life occur in such an inartistic manner that they hurt us by their crude violence, their absolute incoherence, their absurd want of meaning, their entire lack of style. They affect us just as vulgarity affects us. p. 73, c.8)

Mas, realmente, Dorian sente a perda de Sibyl – agora a representar a morte - “Você me dizia que Sibyl Vane representava para você as heroínas do romance – que ela era Desdêmona numa noite, e Ophelia na outra; que se ela morria no papel de Julieta, ela ressuscitava no de Imogen.” “Ela nunca voltará à vida de novo”, murmurou o rapaz, com o rosto oculto nas mãos.”

"You said to me that Sibyl Vane represented to you all the heroines of romance – that she was Desdemona one night, and Ophelia the other; that if she died as Juliet, she came to life as Imogen."
"She will never come to life again now," muttered the lad, burying his face in his hands.
p. 75

E o quanto a conclusão da vida imitou a atuação artística, “Pobre Sibyl! Que romance foi tudo isso! Ela tão frequentemente imitava a morte no palco. Então a Morte a envolveu e carregou com ela. Como ela atuou na última cena? Terá ela me amaldiçoado, quando ela morreu?” (Poor Sibyl! What a romance it had all been! She had often mimicked death on the stage. Then Death himself had touched her and taken her with him. How had she played that dreadful last scene? Had she cursed him, as she died? p. 77)

Mas, em seguida, no Capítulo 9, com a visita de Basil, Dorian demonstra apatia, mesmo frieza, e até ironia, e parece citar trechos da 'filosofia' de Lorde Henry (Harry) Que se 'deve dominar as emoções' e não ser dominado...

“Apenas as pessoas frívolas demoram tempo para se livrar de uma emoção. Um homem que é dono de si-mesmo pode acabar com uma mágoa tão facilmente quanto inventar um novo tipo de prazer. Não quero ficar à mercê de minhas emoções. Quero usá-las, gozá-las, e dominá-las.”
[...] It is only shallow people who require years to get of an emotion. A man who is master of himself can end a sorrow as easily as he can invent a pleasure. I don't want to be at the mercy of my emotions. I want to use them, to enjoy them, and to dominate them. p. 79

O pintor então percebe o quanto Dorian mudou. Aquele que era o seu modelo ideal, a inspiração para a sua obra-prima! Agora, um jovem cínico e egocêntrico. Um jovem a destilar toda a filosofia do hedonista, “Todas as renúncias às quais os homens imprudentemente chamaram virtudes, tanto quanto aquelas revoltas naturais às quais os sábios ainda chamam pecados.” (“[...] those renunciations that men have unwisely called virtue, as much as those natural rebellions that wisemen still call sin.” p. 91)

Basil quer rever a própria obra – aquela que antes ele não deseja expor (pois seria SE expor!) Há qualquer coisa de 'íntimo' na obra – talvez a confissão do desejo de Basil. Um afeto homossexual? Ora, trata-se de uma obra simbolista – sugerir e nunca explicitar, eis uma das regras do estilo. (Inclusive as adaptações para o cinema sempre deixam a desejar quanto ao aspecto 'simbolista' – explicam, explicitam demais!) Porém, Dorian não permite ao pintor ver a própria obra!

Ao temer que vejam sua 'verdadeira alma', Dorian oculta o quadro no sótão. Ele passa a viver numa 'duplicidade' – a vida pública, de glamour e diversão, e uma vida íntima, inquieto quanto a 'confissão' que se revela no retrato. Ele passa a abafar sua angústia com prazeres e sensações estéticas, salões e exposições artísticas.

Ele recebe um livro, enviado por Lorde Henry, parece ser um livro simbolista francês (qual autor?) que passa a interessar o rapaz, como se a narrativa sobre a vida dele mesmo. Sim, um livro dentro do livro – o livro que fascina Dorian a ponto dele acreditar que lê a própria vida no livro!

Podemos 'rastrear aqui' a influência francesa no Autor. Aliás, uma 'rede de influências'! Se Oscar Wilde foi influenciado por Baudelaire e Gautier, lembrar que os franceses simbolistas foram influenciados por Edgar Allan Poe, após a tradução/divulgação de poemas do poeta e contista norte-americano feita pelo próprio Baudelaire.
Ao preocuparem-se com o irracionalismo – os lados sombrios da alma humana – os simbolistas voltam ao ultra-romantismo de um Byron, de um Shelley. Podemos então sugerir paralelos entre Dorian Gray-Wilde e Don Juan-Byron, na exaltação da individualidade, da busca de prazeres, na vida de aventuras.

Os estilos apresentam explorações sonoras (musicalidade, em assonâncias e aliterações), sinestesias, estados alterados de consciência, onde o mundo externo se apresenta tal qual sentido no psiquismo da personagem – aspecto que será ainda mais ressaltado no psicologismo de uma Virginia Woolf (e Clarice Lispector no Brasil) e no 'fluxo de consciência' extrapolado na obra de James Joyce.

Não estamos numa obra de realismo. Aqui importam os simbolismos. Não é científico que uma face num retrato envelheça. Mas, aqui, o retrato envelhece, a figura pintada se deforma, enquanto o tempo passa e Dorian se diverte sem limites e sem consequências, entorpecido no narcisismo, na auto-contemplação da própria beleza,

“e permanecia, com um espelho, diante do retrato que Basil Hallward havia pintado para ele, olhando agora a malévola e envelhecida face na tela, e então a bela face jovem que ria no vidro polido. A brutalidade do contraste atiçava o seu senso de prazer. Ele ficava cada vez mais enamorado da própria beleza, cada vez mais interessado na corrupção da própria alma. Ele examinaria com apurado cuidado, e às vezes com um monstruoso e terrível prazer, as rugas medonhas que marcavam a testa ou se insinuavam nos cantos dos lábios sensuais, a pensar às vezes no que seria mais horrível, os sinais do pecado ou os sinais do envelhecer.”
.
[...] and stand, with a mirror, in front of the portrait that Basil Hallward had painted of him, looking now at the evil and aging face on the canvas, and now at the fair young face that laughed back at him from the polished glass. The very sharpness of the contrast used to quicken his sense of pleasure. He grew more and more enamoured of his own beauty, more and more interested in the corruption of his own soul. He would examine with minute care, and sometimes with a monstrous and terrible delight, the hideous lines that seared the wrinkling forehead or crawled around the heavy sensual mouth, wondering sometimes which were the more horrible, the signs of sin or the signs of age. [...] p. 93

Dorian segue a estética simbolista, a filosofia hedonista, o modo de vida dândi – a busca da beleza e do prazer, a elegância e as futilidades. Para ele as virutdes nascem do medo. “Têm sido loucas e voluntariosas renúncias, formas monstruosas de auto-tortura e auto-negação, que se originam do medo” (“there had been mad wilful rejections, monstrous forms of self-torture and self-denial, whose origin was fear, [...]” p. 95)(2)

E ele mantém, depois de orgias e bacanais, a mesma aparência aristocrática, impecável, como apenas um bom hipócrita é capaz. “seria nunca aceitar alguma teoria ou sistema que envolveria o sacrifício de algum tipo de experiência passional.” (“it was never to accept any theory or system that would involve the sacrifice of any mode of passionate experience.” p. 95)

Para Dorian não existia teorias sobre a existência que realmente tivesse alguma importância diante da própria existência – o importante não é pensar sobre a vida, mas viver. Ele então se entrega às pluralidades de sensações, ao interessar-se por perfumes, música, instrumentos musicais, pedras preciosas, bordados, tapeçarias, também ornamentos eclesiásticos.

Ele justifica a livre vazão aos impulsos instintivos como um 'novo Hedonismo', contra o ascetismo e diverso da libertinagem – porém, nada mais que uma reação ao moralismo e ao racionalismo da Era Vitoriana. Afinal, até eles mesmo reconhecem, o ser humano é um ser de paixões, em conflito com os deveres, em renúncias instintivas e aspirações idealistas, sem qualquer coerência – esta não passa de uma 'racionalização' após a paixão. Não somos seres racionais.

“Ele costumava questionar a superficial psicologia daqueles que concebiam o Ego do homem como algo simples, permanente, confiável, e de apenas uma essência. Para ele, o homem era um ser com miríades de vidas e miríades sensações, uma complexa criatura multiforme que abriga em si estranhos legados de pensamento e paixão, e cuja carne foi maculada com as monstruosa doenças dos mortos.”
.
He used to wonder at the shallow psychology of those who conceive the Ego in man as a thing simple, permanent, reliable, and of one essence. To him, man was a being with myriad lives and myriad sensations, a complex multiform creature that bore within itself strange legacies of thought and passion, and whose very flesh was tainted with the monstrous maladies of the dead.” p. 104
.

O capítulo 11 é um apanhado de recortes de filosofias da época, além de belas descrições e sinestesias... afinal, quer demonstrar a passagem do tempo...
http://en.wikisource.org/wiki/The_Picture_of_Dorian_Gray_(1891)/Chapter_11
.
Mesmo sendo um 'romance de pensamento', como defendem alguns críticos, a obra de Wilde é um testemunho de época, no declinar da Era Vitoriana, no que esta tem de fugaz e de duradouro. É a mesma época na qual viveu Freud, e atraiu os olhares do atento psicólogo. Assim, Wilde registrou em literatura tudo aquilo que o pai da Psicanálise 'dissecou' nas duplicidades daquela 'civilização': a busca de prazeres freada pela repressão e o 'puritanismo', a gerar assim a hipocrisia, os vícios ocultados, o culto às aparências.

Dorian primeiramente resiste a corrupção da 'alma' retratada no quadro, depois começa a sentir um prazer sádico em assistir a deterioração da imagem retratada. Esta ''segmentação' do protagonista – o ser de carne e osso e o retrato – cria um clima sobrenatural, de atmosfera gótica, além de influências de Poe – por exemplo “O Retrato Oval” - onde é possível a conjunção do sinistro e do trágico, do lúgubre e do crime.

O crime não demora. É um dos passos da decadência de Dorian Gray. Assim o assassinato de Basil – a fúria homicida se apossa de Dorian – a lembrar os crimes de “O Gato Preto” e “O Coração Delator” - evidencia o seu 'impulso de perversidade' em plena ação. A cena tem toda uma ambiência gótica, noir, quando Dorian guia o pintor (que insiste em rever o retrato) até o sótão,

“Ele saiu da sala e começou a subir, Basil Hallward o seguia. Eles caminhavam levemente, do jeito que os homens fazem instintivamente durante a noite. A lanterna projetava sombras fantásticas nas paredes e na escada. Um vento soprava fazendo tremer alguma das janelas.
Quando eles chegaram lá encima, Dorian deixou a lanterna no chão, e pegando a chave, deu a volta na fechadura. “Você quer mesmo saber, Basil?” ele perguntou numa voz baixa.”
.
He passed out of the room and began the ascent, Basil Hallward following close behind. They walked softly, as men do instinctively at night. The lamp cast fantastic shadows on the wall and staircase. A rising wind made some of the windows rattle.
When they reached the top landing, Dorian set the lamp down on the floor, and taking out the key, turned it in the lock. "You insist on knowing, Basil?" he asked in a low voice.
p. 113, c. 13
.
A dubiedade : o bem e o mal dentro de cada um de nós (já tratamos sobre esta duplicidade SuperEgo – Id em nosso ensaio sobre “O Médico e o Monstro”) quando Dorian diz, sem hesitar, ao perplexo Basil diante do quadro deformado, “Cada um de nós tem dentro si o Céu e o Inferno” (“Each of us has Heaven and Hell in him” c. 13).

Pois Basil não acreditava na 'perversidade' do belo Dorian, uma vez que o pintor acreditava que “o pecado é coisa que se inscreve na face, não pode ser ocultado. Não existem vícios ocultos. Se alguém tem um vício, este se revela nas linhas dos lábios, no pender das pálpebras, no formato das mãos.” (Sin is a thing that writes itself across a man's face. It cannot be concealed. People talk sometimes of secret vices. There are no such things. If a wretched man has a vice, it shows itself in the lines of his mouth, the droop of his eyelids, the moulding of his hands even. c. 12)

O artista não podia aceitar que os 'boatos' sobre a luxúria de Dorian fosse realmente verdade. E morreu ao verificar que o belo Dorian tinha uma imagem' (ou 'alma') deveras 'deformada'! A 'imagem' interior de Dorian é bem pior do que diziam os boatos. A beleza exterior não passava de uma máscara.

Outra obra que me vem à mente : Doktor Faustus de Thomas Mann, onde posso comparar aspectos personais de Dorian com a frieza estética de um Adrian Leverkühn, entre a glória da Arte e a perdição da Consciência.

Assim, somente no dia seguinte, Dorian parece tomar consciência do crime que cometeu. O cadáver de Basil quebra a 'beleza' que Dorian ainda anseia. “Gradualmente os fatos da noite anterior rastejou com passos silentes e sangrentos na sua mente e reconstruíram-se lá com terrível nitidez. Ele estremeceu ao lembrar-se de tudo o que tinha sofrido, e o momento em que o mesmo curioso sentimento de aversão por Basil Hallward que tinha feito com que ele o matasse quando ele se sentava na cadeira de costas para ele, e ele continuava frio de qualquer emoção. O morto estava ainda sentado lá, e agora já era dia. Quão horrível tudo isso! Tais coisas horrendas feitas para a escuridão, não em pleno dia.”
.
Gradually the events of the preceding night crept with silent, blood-stained feet into his brain and reconstructed themselves there with terrible distinctness. He winced at the memory of all that he had suffered, and for a moment the same curious feeling of loathing for Basil Hallward that had made him kill him as he sat in the chair came back to him, and he grew cold with passion. The dead man was still sitting there, too, and in the sunlight now. How horrible that was! Such hideous things were for the darkness, not for the day. p. 118, c. 14
.

Após o crime, Dorian precisa de álibi e de um cúmplice. Alguém precisa limpar o cenário do homicídio. O colega de outros momentos de luxúrias, um tal Alan Campbell é aqui o cientista que oculta o cadáver e limpa as marcas do crime. É como se simbolizasse o lado sombrio da ciência – vide Frankenstein de Mary Shelley – com suas práticas de assepsia e dissecação.

Nos capítulos seguintes, assistimos ao apogeu da vida libertina de Dorian, o consequente uso do narcótico para entorpecer a Culpa – eis a recompensa para quem ousa desafiar a Moral, esta seria uma leitura moralista, sem dúvida. Mas há outro detalhe: algo de romance policial noir. Quem comete crimes, deve ser punido. Em algum momento, o passado golpeia de volta e será a hora de pagar pelos crimes!

O irmão de Sibyl, James Vane reaparece – decide caçar o “Prince Charming” (Príncipe Encantado) que destruiu a vida da jovem atriz. Mas Dorian se salva ao mostrar sua permanente face jovem e singela – ele foi salvo pela 'máscara de juventude' (“mask of youth”)

No capítulo 16 temos descrições da paisagem soturna de London na era vitoriana – semelhantes àquelas da Paris de Baudelaire – onde um atmosfera densa, de vapores, de névoa, pesa sobre os cidadãos, em busca de prazeres nos antros de ópio, nas garrafas de bebidas, nos recantos do 'submundo'. Mas que não se espere descrições 'realistas', aqui trata-se de uma 'paisagem' urbana filtrada pela hipersensibilidade de Dorian Gray,

“Uma chuva fria começava a cair, e os embaçados lampiões das ruas pareciam espectrais na névoa úmida. As casas-públicas agora fechadas, e homens e mulheres indistintos se aglomeravam em grupos dispersos ao redor das portas. De algum bar vinha o som de uma horrível risada. Em outros bares, bêbados brigavam e gritavam.
[...]
A lua pendia no céu tal qual uma caveira amarela. De tempo em tempo uma imensa nuvem deformada estendia um longo braço e a ocultava. Os lampiões a gás se enfraqueciam, e as ruas eram mais estreitas e sombrias. Certa vez o homem perdera o rumo e teve que voltar uma meia milha. Um vapor subia da casa quando o [fiacre] borrifava as poças de lama. As janelas laterais do fiacre estavam embaçadas com uma névoa acinzentada.”
.
A cold rain began to fall, and the blurred street-lamps looked ghastly in the dripping mist. The public-houses were just closing, and dim men and women were clustering in broken groups round their doors. From some of the bars came the sound of horrible laughter. In others, drunkards brawled and screamed.
[...]
The moon hung low in the sky like a yellow skull. From time to time a huge misshapen cloud stretched a long arm across and hid it. The gas-lamps grew fewer, and the streets more narrow and gloomy. Once the man lost his way and had to drive back half a mile. A steam rose from the horse as it splashed up the puddles. The sidewindows of the hansom were clogged with a grey-flannel mist
. p. 135
.

Dorian é jovem herdeiro aristocrata que desperdiça sua fortuna em prazeres, muitas vezes no mundo das drogas, das prostitutas pobres. Seria hoje em dia o caso de um rico playboy que vai aos prostíbulos dos subúrbios ou vai até a favela buscar drogas... Nestes antros de ópio, Dorian encontra Adrian Singleton, outro viciado, outro jovem perdido.

Não se trata de uma obra realista, sabemos. Todo o Simbolismo se assemelha a uma 'reação' ao cientificismo, ao racionalismo, ao materialismo do Realismo enquanto estilo literário nos meados do século 19. Explicitamente, Lorde Henry (Harry) se declara contra o realismo, “odeio o realismo vulgar na literatura” (“I hate vulgar realism in literature”). O Narrador compartilha o desprezo pelo realismo – nunca pretende 'espelhar' o mundo tal como é – se isso é mesmo possível.

O olhar é sempre guiado pela hipersensibilidade de Dorian – atormentado entre desejo e culpa – logo abemos que estamos diante (e dentro!) de uma obra simbolista. Trata-se aqui não da realidade, mas de um psicologismo sombrio diante da realidade – qual é o olho que vê o mundo? Aqui o olhar é carregado de decadentismo, ceticismo, auto-ironia.

Quando a face de James Vane aparece diante de Dorian, nos perguntamos (tanto quanto o protagonista): alucinação? O Complexo de culpa de Dorian está a materializar espectros? Não! É realmente o anjo vingador, o irmão da bela e falecida Sybil Vane, que segue em caçada ao jovem hedonista – mas ironicamente, o vingador morre em plena caçada na propriedade de um nobre.

A culpa gera uma mania de perseguição, uma paranóia, que inquieta o jovem hedonista. A vida não é tão 'divertida'. Diante da 'materialização' de seu 'complexo de culpa' que por pouco não realizou a vingança, Dorian evidencia sua dubiedade em tentativas de 'regeneração': evita seduzir uma mocinha camponesa. Espera dar provas de sua 'correção' moral. Ainda que sofra com os irônicos epigramas de Lorde Henry. (Não era Dorian que dizia buscar prazer, e não felicidade? Por que limitar agora seus prazeres?)

Nesta 'contenção' dos desejos – as auto-renúncias instintivas – há toda uma crítica a civilização / cultura que cria o complexo de culpa quando o indivíduo quer apenas 'curtir a vida', quer se entorpecer de prazer – e o trabalho (ou o 'dever') é contra o instinto de prazer. 'Não o que queres – mas o que deves', eis o peso da Moral. (2)

Crítica evidente nos escritos de Nietzsche (toda a obra) e de Freud (vejam mais sobre o princípio de prazer e o princípio de realidade, principalmente nas obras “Além do Princípio do Prazer” e “Mal-Estar na Civilização” (1930)) (2)
Uma cena belíssima – que os filmes suprimem, mais preocupados com uma imagem caricata, pouco propícia aos 'mergulhos psicológicos', quando os diretores esquecem que trata-se de uma obra simbolista – na qual Dorian toca piano para Lorde Henry Wotton, que não se cansa de elogiar e bajular a beleza e fineza do jovem – sempre jovem! - Dorian Gray. Invejado pelos outros rapazes, desejado pelas moças, admirado pelas madames, mas nunca desprezado igual a Harry, mais envelhecido e cínico.

Harry sempre a elogiar a juventude – agora que a perdeu em definitivo! - e a procurar o convívio com os jovens,

“Você tem mudado, claro, mas não em aparência. Gostaria que você me dissesse qual o seu segredo. Para voltar a ser jovem, eu daria tudo o que há no mundo, exceto fazer exercício, ou levantar cedo, ou ser respeitável. Juventude! Nada há igual a isto! É um absurdo falar sobre a ignorância da juventude. As únicas pessoas cujas opiniões eu ouço hoje em dia em relação a qualquer coisa são de pessoas mais jovens do que eu. Elas parecem estar a minha frente. A vida tem revelado a elas as recentes maravilhas.”
.
You have changed, of course, but not in appearance. I wish you would tell me your secret. To get back my youth I would do anything in the world, except take exercise, get up early, or be respectable. Youth! There is nothing like it. It's absurd to talk of the ignorance of youth. The only people to whose opinions I listen now with any respect are people much younger than myself. They seem in front of me. Life has revealed to them her latest wonder. p. 159, c. 19
.

Quanto ao desaparecimento do pintor Basil Hallward nada há de certo. Fugiu? Foi sequestrado? Foi assassinado? Harry de anda desconfia. E se Dorian resolvesse confessar? Ninguém acreditaria. Muito menos Harry! Para o nobre cínico, o crime é coisa de pessoas vulgares. “Todo crime é vulgar, justamente como toda vulgaridade é crime. Não é próprio de você, Dorian, cometer um homicídio. Lamento se vou magoar a sua vaidade ao dizer isso, mas tenho certeza. Crime é coisa das classes baixas.” (All crime is vulgar, just as all vulgarity is crime. It is not in you, Dorian, to commit a murder. I am sorry if I hurt your vanity by saying so, but I assure you it is true. Crime belongs exclusively to the lower orders. p. 157)

Não é possível que um 'ato vulgar' venha a manchar a 'perfeição' apolínea do sempre jovem Mister Gray. Harry muito menos lamenta a morte do pintor – que ele julga um artista inferior – aliás, nada fez de memorável após a obra-prima: o retrato de Dorian Gray. Aliás, Harry adoraria comprar o sensasional quadro! Por que será que Dorian insiste em manter 'oculta' a obra magistral?

A beleza jovem de Dorian é um mistério para Harry – como o jovem conseguiu esta façanha? Ele, Dorian, é uma obra-prima em si-mesmo, não precisa ser artista. Ele vale em si-mesmo tanto quanto uma escultura, um poema, uma pintura!

“Gostaria muito de trocar de lugar com você, Dorian. O mundo clamou contra nós dois, mas sempre tem te adorado. Vai sempre te adorar. Você é o tipo que a época procura, e tem medo de encontrar. Alegra-me muito que você não tenha feito algo, nunca esculpido uma estátua, ou pintado um quadro, ou produzido algo além de si-mesmo! A vida tem sido a sua arte. Você fez música consigo mesmo. Seus próprios dias de existência são os seus sonetos.”
.
I wish I could change places with you, Dorian. The world has cried out against us both, but it has always worshipped you. It always will worship you. You are the type of what the age is searching for, and what it is afraid it has found. I am so glad that you have never done anything, never carved a statue, or painted a picture, or produced anything outside of yourself! Life has been your art. You have set yourself to music. Your days are your sonnets. p. 160
.

Assim, nada há que possa incriminar Dorian – eis o crime perfeito! Mas há uma coisa – a CULPA – que não permite que o jovem possa usufruir a vida de prazeres sem consequência. Esta Culpa leva Dorian a pensar sobre o estado de sua 'alma'. Que beleza terá sobrado? Afinal, o terror do 'deformado' quadro volta com a força de uma náusea.

Dorian volta pra casa e decide ver se o quadro registra seu remorso, sua vontade de 'mudar', de deixar a vida de libertinagens. Afinal, ele até evitou seduzir aquela mocinha camponesa... Mas a imagem no quadro somente exibe a face de um grande hipócrita. Dorian não poderá se 'redimir', tem as mãos sujas de sangue. Não poderá culpar as 'más influências', os 'livros imorais', o 'espírito da época' – afinal, toda a sua perversidade brotou de um obsessivo narcisismo dentro dele mesmo. É inútil apontar culpados além.

Tomado de fúria e indignação, Dorian levanta um punhal (o mesmo que feriu e matou o pintor Basil) contra o quadro. E assim vem ele mesmo a cair, prostrado, apunhalado. A pintura volta à perfeição primordial. Quanto ao corpo, subitamente envelhecido, este só é reconhecido pelos anéis.

jan/fev/11
Notas

(1)Dorian Gray não é um livro filosófico, por mais que aborde questões de Estética e Moral. Exige-se alguns aprofundamentos. Dois autores que trataram sobre estes temas são Nietzsche e Sartre.
(2)Crítica evidente nos escritos de Nietzsche (toda a obra) e de Freud (vejam mais sobre o princípio de prazer e o princípio de realidade, além da 'renúncia instintiva', principalmente nas obras “Além do Princípio do Prazer” e “Mal-Estar na Civilização” (1930))
links
http://www.ebah.com.br/sigmund-freud-o-mal-estar-na-civilizacao-pdf-pdf-a3586.html
http://www.espacoacademico.com.br/026/26tc_freud.htm
http://en.wikipedia.org/wiki/Civilization_and_Its_Discontents
.
Assim como é possível relacionar “Ego e Id” com “O Médico e o Monstro”; ou “Das Unheimliche” com os contos de Hoffmann e Poe; ou “Luto e Melancolia” com “Dracula”, aqui, no romance de Oscar Wilde, temos a visão literária do 'princípio do prazer' que egoisticamente persegue a auto-satisfação sem preocupar-se com imperativos coletivos, sociais.
Além da obra freudiana, podemos apontar alguns paralelos com obras de Shakespeare e Goethe.
Em comparação com os dramas de Shakespeare, temos Dorian enquanto um Hamlet, e Harry enquanto um Falstaff, e Sibyl seria uma fusão de várias heroínas, principalmente Julieta e Ophélia – sem que Dorian seja Romeu. Sibyl encarna o ideal romântico do 'morrer de amor'...

Ainda, a figura de James Vane seria próxima a de Laerte que pretende vingar a morte da irmã Ophélia (em Hamlet)

E se lembrarmos da obra-prima de Goethe, “Faust”, Dorian em relação a Fausto, enquanto Harry seria Mephisto e Sibyl uma proto-Margarete. Pois, Sibyl não recebe uma atenção mais profunda por parte do Autor Wilde, tanto quanto Margarete é central na obra alemã.
REFERÊNCIAS

WILDE, Oscar. The Picture of Dorian Gray. New York: Dover Publications, 1993.
The Picture of Dorian Gray
.
.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

sobre O Retrato de Dorian Gray - de Oscar Wilde (1/2)






Meu Cânone Ocidental
vol3

sobre “O Retrato de Dorian Gray
(The Picture of Dorian Gray, 1890/91)
do poeta e escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900)
Quando a Escrita simboliza o psiquismo narcisista
1/2

O que é a Obra de Arte? Quais os limites da Arte? Deve haver padrões, logo limites? O que vale numa Obra – sua mensagem ou sua estética? Seu conteúdo ou sua forma? O que deve nortear o Artista – o gosto pessoal ou os interesses coletivos? Eis algumas das questões que podemos encontrar na leitura do belo romance (o único) do poeta e literato Oscar Wilde, britânico, de origem irlandesa.

A Arte que se baseia em seus próprios princípios – não em parâmetros fora de si-mesma – onde a qualidade de uma Obra está em suas características intrínsecas, sua tessitura estética, não em mensagens filosóficas ou políticas. O valor do conteúdo não se sobrepõe às qualidades estéticas – o que importa é se a Obra é 'bem feita'. Nos interessa se o livro é 'bem escrito', não se o Autor é de direita ou de esquerda.

Esta visão esteticista – no sentido de “Arte pela Arte” (L'Art pour l'Art) – preocupa-se em não submeter a Escrita a imperativos de partidarismo, academicismo, mercantilismo que descaracterizariam a criação quando das mudanças de corrente política, valores acadêmicos ou oferta-e-demanda. A Arte antes de tudo é uma expressão da liberdade do Artista.

O poeta e literato britânico irlandês Oscar Wilde visualizava a Arte na materialização das Obras como uma conquista individual – ou da afirmação de uma individualidade meio ao coletivo – somente acessível a alguns 'eleitos' que conseguiam unir sentimento e metáforas, estilo e estética. A Obra significando em-si mesma e ao mesmo tempo um símbolo criado pelo Autor.

Neste sentido a Arte é total entrega para o pintor Basil – ao pintar o quadro de Dorian ele cria a sua obra-prima, que emociona Lorde Harry. Mas Basil não deseja expor o quadro – senão estaria expondo a si-mesmo aos olhares do público! Sua Arte é primeiramente a expressão de um Ego – só posteriormente (se o Artista o desejar) será útil para o prazer estético do público.

Encontramos o artista e o visitante diante de uma verdadeira obra-prima: o retrato de um jovem herdeiro, de insofismável beleza e graciosidade. Uma personificação de delicadeza e inocência, que agora é imortalizado pela Arte.

“'Harry', disse Basil Hallward, olhando-o diretamente, 'cada retrato que é pintado com sentimento é um retrato do artista, não do modelo. O modelo é meramente o acidente, a ocasião. Não é ele quem é revelado pelo pintor; é antes o pintor que, na tela colorida, revela a si mesmo. A razão pela qual eu não exibirei esta pintura é que tenho medo de revelar o segredo de minha própria alma.”
.
"Harry," said Basil Hallward, looking him straight in the face, "every portrait that is painted with feeling is a portrait of the artist, not of the sitter. The sitter is merely the accident, the occasion. It is not he who is revealed by the painter; it is rather the painter who, on the coloured canvas, reveals himself. The reason I will not exhibit this picture is that I am afraid that I have shown in it the secret of my own soul." p. 4
Basil descreve o encontro com o jovem Dorian Gray, que o marcou intimamente e enquanto artista – aqui Dorian seria a personificação masculina da Musa. O artista Basil ama a Arte pela Arte – não ambiciona os holofotes das exposições, as poses dos demais artistas (ou dos 'ditos' artistas...). Quando Harry ironiza os poetas em suas poses, Basil mostra o quanto despreza os falsos artistas,

“Os poetas não são tão escrupulosos como você é. Eles sabem como usar a paixão para ter publicação. Hoje em dia um coração ferido faz rodar muitas edições.
“Eu os odeio por isso,” gritou Hallward. “Um artista deveria criar coisas belas, mas não deveria colocar algo de sua própria vida nelas. Vivemos numa época quando os homens tratam a arte como se fosse uma forma de autobiografia. Temos perdido o senso abstrato de beleza. Algum dia eu mostrarei ao mundo o que é; e por esta razão o mundo jamais verá o meu retrato de Dorian Gray.”
.
"Poets are not so scrupulous as you are. They know how useful passion is for publication. Nowadays a broken heart will run to many editions."
"I hate them for it," cried Hallward. "An artist should create beautiful things, but should put nothing of his own life into them. We live in an age when men treat art as if it were meant to be a form of autobiography. We have lost the abstract sense of beauty. Some day I will show the world what it is; and for that reason the world shall never see my portrait of Dorian Gray." pp. 8/9

Dorian aparece no ateliê para contemplar a própria beleza representada em traços e cores sobre a tela – a representação do Ego, por excelência. Eis a pintura em eterna juventude, enquanto ele sabe que seu destino é envelhecer...

O quanto Dorian acredita - e é influenciado – pelas ideias-ironias de Harry? O próprio jovem indaga ao Lorde criador de epigramas (hábito também do Autor Wilde)

“Você realmente tem uma má influência, Lord Henry? Tão má quanto Basil diz?
“Não existe tal coisa como boa influência, Sr. Gray. Toda influência é imoral – imoral de um ponto-de-vista científico.
“Por que?
“Porque influenciar alguém é entregar-lhe a própria alma. Ele não pensa os próprios pensamentos, ou arde nas próprias paixões. Suas virtudes não são reais para ele. Os seus pecados, se é que há mesmo pecado, são emprestados. Ele torna-se um eco da música de um outro alguém, um ator que atua numa peça não escrita por ele. O objetivo da vida é o auto-desenvolvimento. Entender perfeitamente a própria natureza – eis para o que estamos todos aqui. As pessoas têm medo de si mesmas, hoje em dia.”
.
“Have you really a very bad influence, Lord Henry? As bad as Basil Says?
“There is no such thing as a good influence, Mr. Gray. All influence is immoral – immmoral from the scientific point of view.”
“Why?
“Because to influence a person is to give him one's own soul. He does not think his natural thoughts, or burn with his natural passions. His virtues are not real to him. His sins, if there are such things as sins, are borrowed. He becomes an echo of some one else's music, an actor of a part that has not been written for him. The aim of life is self-development. To realise one's nature perfectly – that is what each of us is here for. People are afraid of themselves, nowadays
. [...]” p. 9

As ideias estéticas e heréticas de Lorde Henry começam a influenciar o jovem Dorian Gray – tão influenciável quanto o jovem Donatello diante de Miriam, no clássico “The Marble Faun” de N. Hawthorne, como vimos.

Lord Henry para o lisonjeado Dorian, a cultuar a Beleza, “E a Beleza é uma forma de Gênio – é uma mais elevada, realmente, do que o Gênio, quando não precisa de explicação.” (“And Beauty is a form of Genius – is a higher, indeed, than Genius, as it needs no explanation.”)

e Harry lembra o quanto a juventude é efêmera, fugaz, vitimada pelo escoar do tempo, sempre inclemente,

“Cada mês que se escoa carrega você para mais perto de algo temível. O Tempo tem inveja de você, e batalha contra os seus lírios e rosas. Você ficará pálido, face encovada, e olhos sem brilho. Você vai sofrer muito... Ah! Aproveite a sua juventude enquanto ainda a tem.” (“Every month as it wanes brings you nearer to something dreadful. Time is jealous of you, and wars against your lilies and you roses. You will become sallow, and hollow-cheeked, and dull-eyed. You will suffer horribly... Ah! Realize your youth while you have it.” p. 16)

Temos aqui o tema do carpe diem – seize the day, aproveite o dia – é um convite ao Hedonismo – usufruir da beleza e da juventude. A mocidade passa, a beleza há-de murchar, então que o jovem e elegante Dorian não hesite em ter todos os prazeres. Pois “é tão fugaz o tempo de sua juventude!” e mais: 'Juventude é a única coisa que vale a pena ter' (“Youth is the only thing worth having”, p. 19, c. 2)

“Viva plenamente a maravilhosa vida que está em você! Não desperdice nada. Sempre pronto para novas sensações. Sem ter medo... Um novo Hedonismo – eis o que o nosso século deseja. Você será o símbolo visível. Com a sua personalidade nada há que você não possa fazer. O mundo pertence a você por uma temporada...”
.
Live the wonderful life that is in you! Let nothing be lost upon you. Be always searching for new sensations. Be afraid of nothing.... A new Hedonism – that is what our century wants. You might be its visible symbol. With your personality there is nothing you could not do. The world belongs to you for a season....” pp. 16-17

Ao ouvir o grandioso elogio à Juventude, Dorian Gray toma consciência da própria beleza,

“O senso de sua própria beleza veio-lhe como uma revelação. Ele nunca sentira isto antes. Os elogios de Basil Hallward tinha parecido-lhe meramente o exagero gentil de um amigo. Ele ouvia, ria disso e depois esquecia. Os elogios não o influenciavam. Então veio o Lorde Henry Wotton com sua estranha louvação sobre a juventude, seu terrível aviso sobre a brevidade. [...] sim, haveria o dia quando sua face se encheria de rugas e meio flácido, e os olhos vagos e sem brilho, toda a graciosidade de sua aparência estaria acabada e deformada. O tom rubro desapareceria de seus lábios e o brilho dourado seria tirado dos cabelos. A vida que criaria sua alma, haveria de deformar-lhe o corpo. Ele ficaria horrível, repulsivo e grotesco.”
.
The sense of his own beauty came on him like a revelation. He had never felt it before. Basil Hallward's compliments had seemed to him to be merely the charming exageration of friendship. He had listened to them, laughed at them, forgotten them. They had not influenced his nature. Then had come Lord Henry Wotton with his strange panegyric on youth, his terrible warning of its brevity. [...] Yes, there would be a day when his face would be wrinkled and wizen, his eyes dim and colourless, the grace of his figure broken and deformed. The scarlet would pass away from his lips and the gold steal from his hair. The life that was to make his soul would mar his body. He would become dreadful, hideous, and uncouth. pp.18-19

Dorian Gray profundamente abalado com a consciência do envelhecimento (isto é, fim da Beleza) profere um desabafo diante do quadro,

“'Quão triste isto era!' murmurou Dorian Gray com seus olhos ainda fixos em seu próprio retrato. 'Quão triste isto era! Eu ficarei velho, e horrível, e repulsivo. Mas este retrato será sempre jovem. Nunca será mais velho que este dia de Junho... Se fosse de outro modo! Se fosse eu quem fosse sempre jovem, e o retrato que ficasse mais velho! Para isto – para isto – eu daria tudo! Sim, nada há no mundo inteiro que eu não daria! Eu daria a minha alma para isto!'”
.
"How sad it is!" murmured Dorian Gray with his eyes still fixed upon his own portrait. "How sad it is! I shall grow old, and horrible, and dreadful. But this picture will remain always young. It will never be older than this particular day of June.... If it were only the other way! If it were I who was to be always young, and the picture that was to grow old! For that – for that – I would give everything! Yes, there is nothing in the whole world I would not give! I would give my soul for that!" p. 19

O fato é que Dorian passa a ter inveja e ciúme da pintura, do retrato que não envelhece, e se indigna diante de Basil e Henry, pois a velhice é detestável, daí ser melhor a morte. “Seu retrato tem me ensinado isto. Lorde Henry Wotton está perfeitamente certo. A juventude é a única coisa que vale a pena ter. Quando eu perceber que estou envelhecendo, eu me matarei.” (“Your pinture has taught me that. Lord Henry Wotton is perfectly right. Youth is the only thing worth having. When I find that I am growing old, I shall kill myself.” p. 19)

No capítulo 3, há um jantar na residência de aristocratas, onde a fina ironia de Harry (Lord Henry) fere as formalidades. Para melhor relembrar a juventude convém até repetir os erros da 'imaturidade'! Que a humanidade conservasse a juventude, até os 'deslizes' da juventude. Pois a 'seriedade' (o que Nietzsche vai chamar de 'espírito de gravidade' e Sartre, de 'espírito de seriedade') é um peso (ou uma culpa) que impede o riso. (1)

“A Humanidade se leva muito à sério. É o pecado original do mundo. Se os homens das cavernas soubessem rir, a História teria sido diferente.” (“Humanity takes itself too seriously. It is the world's original sin. If the caveman had known how to laugh, History would have been different.”)

Em todos os diálogos entre Harry e Dorian – a começar por aquele sobre a Beleza, a Juventude, o Hedonismo – é sempre carregado de malabarismo metafóricos, sinestésicos, plenos de símbolos físicos, eróticos e estéticos. É uma verdadeira sedução verbal, retórica, antes de uma possível posse amorosa. Há, sobretudo, a questão da MORAL.

Se em Dostoiévski (“Os Irmãos Karamázovi”) encontramos a máxima consequência de “tudo é permitido, já que Deus não existe”, quando se perde a moral cristã e não se coloca outra moral em prática. Vemos o quanto Smierdiákov é fraco moralmente e leva 'ao pé da letra' o amoralismo de Ivan Karamázov.

No romance de Wilde, encontramos Dorian a agir amoralmente ao dar ouvidos ao Lorde Henry (Harry) que “o único meio de se livrar da tentação é ceder a ela” (“The only way to get rid of a temptation is to yield to it.” , c. 2), que não se deve renunciar aos prazeres, mas degustar um por um. É evidente que Lorde Henry adota uma filosofia de vida guiada pelo amoralismo, pelo individualismo, pelo hedonismo, tudo resultando em cinismo, “o prazer é a única coisa sobre a qual vale a pensa ter uma teoria” (“pleasure is the only thing worth having a theory about” c.6)

A questão moral é preocupação do pensador alemão Nietzsche, como sabemos. Em Nietzsche, em seus muitos fragmentos e aforismas, compreendemos que o ser humano perde espontaneidade ao se enfraquecer sob o domínio de uma moral; é quando se torna 'doentio e culpado'. Todo um 'racionalismo' é montado encima deste 'sentimento de culpa' para apaziguar a febre dos instintos, e para justificar as renúncias diante dos prazeres. Passamos a ter medo do prazer.

Dorian passa a ignorar a moral cristã, passar a violar a moral de sua sociedade (lembramos o moralismo da 'era vitoriana' denunciado por Freud...) e para Dorian somente há uma 'ética', a da busca de prazeres. (2)

Atento às próprias sensações – como um bom 'simbolista', envolto e imerso em 'sinestesias' inebriantes - Dorian se descreve meio a multidão londrina. É no capítulo 4 onde temos mais epigramas cínicos do Lorde Henry, longe, bem longe do hoje 'politicamente correto'. Também aqui encontramos a primeira menção sobre a jovem atriz Sibyl Vane, que atraiu a atenção de Dorian Gray, motivo suficiente para Harry zombar da condição da mulher; mas Gray descreve suas sensações de flâneur e hedonista,

“Você me encheu com todo um desejo ardente de saber tudo sobre a vida. Pois, dias depois que eu te encontrei, algo parecia pulsar em minhas veias. Quando eu relaxava no parque, ou perambulava por Piccadilly, eu acostumava olhar cada um que passava por mim e queria saber, com louca curiosidade, que tipo de vida elas levavam. Algumas delas me fascinavam. Outras enchiam-me de terror. Havia um veneno sutil no ar. Eu tinha uma paixão por sensações... Bem, uma tarde, lá pelas 7 horas, eu seguia determinado em encontrar alguma aventura. Eu sentia que nesta nossa cinzenta e monstruosa Londres , com sua população de milhares, os sórdidos pecadores, e seus esplêndidos pecados, como você dizia, tinha algo reservado pra mim. Fantasiava sobre mil coisas. O mero perigo me dava um senso de prazer. Eu me lembrava do que você havia dito para mim naquela tarde maravilhosa quando primeiramente jantamos juntos, sobre a procura da beleza sendo a verdadeiro segredo da vida.”
.
“[...] You filled me with a wild desire to know everything about life. For days after I met you, something seemed to throb in my veins. As I lounged in the park, or strolled down Piccadilly, I used to look at every one who passed me and wonder, with a mad curiosity, what sort of lives they led. Some of them fascinated me. Others filled me with terror. There was an exquisite poison in the air. I had a passion for sensations.... Well, one evening about seven o'clock, I determined to go out in search of some adventure. I felt that this grey monstrous London of ours, with its myriads of people, its sordid sinners, and its splendid sins, as you once phrased it, must have something in store for me. I fancied a thousand things. The mere danger gave me a sense of delight. I remembered what you had said to me on that wonderful evening when we first dined together, about the search for beauty being the real secret of life. [...]” p. 35
Encarnando a figura do dândi , que com elegância e pose aristocrática, vem atualizar a figura do flâneur, dos tempos de Baudelaire – meados do século 19 – Dorian Gray segue em andanças pela metrópole, onde ofertas de prazeres convivem com amostras de misérias. Jovens drogados, moças que se entregam ao 'comércio do sexo', velhos que traficam bebidas e poções.

A figura do flâneur é evidente na obra de Baudelaire, segundo apontada por Walter Benjamin, base para o meu ensaio (no blog Meu Cânone Ocidental)
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2011/02/sobre-as-flores-do-mal-de-baudelaire-12.html
Em suas andanças, Dorian Gray encontra um teatro popular, onde é encenada a peça “Romeo and Juliet”, onde se destaca a 'Juliet” Sibyl Vane,

Na cena do jardim [são duas, com Romeo e Julieta: Ato II cena 2 e Ato III cena 5] havia todo o êxtase que se ouve logo ao amanhecer quando os rouxinóis cantam. [...] Mulheres comuns nunca apelam à imaginação. Elas são limitadas ao próprio século. Nenhum encanto pode transfigurá-las. [...] Mas uma atriz! Quão diferente ela é! Harry! Por que não me disse antes que uma atriz é a única coisa que vale ser amada?”
.
"In the garden-scene it had all the tremulous ecstasy that one hears just before dawn when nightingales are singing. [...] Ordinary women never appeal to one's imagination. They are limited to their century. No glamour ever transfigures them. [...] But an actress! How different an actress is! Harry! why didn't you tell me that the only thing worth loving is an actress?" c. 4, p. 37

Mas, não é de se estranhar, Harry é ainda irônico, “Quando alguém está apaixonado, sempre começa por se iludir, e sempre termina por iludir os outros. Eis o que o mundo chama de romance.” (“When one is in love, one always begins by deceiving one's self, and one always ends by deceiving others. That is what the world calls a romance.” p. 38)

Podemos dizer que há um Dorian Gray antes e depois da desilusão amorosa com a jovem atriz Sibyl Vane – que passa a significar a Amada, aquela mulher que encanta e merece homenagem, tão presente nas canções trovadorescas. Dorian idealiza a jovem atriz Sibyl, e, como sabemos, idealização causa desilusão,

“Ela enlouquecerá o mundo assim como me enlouqueceu. [...] Ela não tem arte meramente, consumado instinto artístico, em si, mas também personalidade; e você me disse frequentemente que são personalidades, e não princípios que movem uma época.” (“She will make the world as mad as she has made me. [...] She has not merely art, consummate art-instinct, in her, but she has personality also; and you have often told me that it is personalities, not principles, that move the age.” p. 40)

É justamente Harry quem tece elogios ao individualismo, ao mesmo tempo em que ironiza o egocentrismo estufado dos artistas. Diferencia talento de personalidade – afinal, uns tem exibido obras talentosas, mas são pessoalmente discretos; enquanto outros se exibem, a si-mesmos, sem qualquer obra que mereça atenção.

Os únicos artistas que tenho conhecido, que são pessoalmente agradáveis, são péssimos artistas. Bons artistas existem simplesmente no que eles criam, e por consequência são perfeitamente desinteressantes no que eles são. Um grande poeta, um poeta realmente grande, é a mais não-lírica das criaturas. Mas os poetas medíocres são absolutamente fascinantes” (“The only artists I have ever know, who are personally delightful, are bad artists. Good artists exist simply in what they make, and consequently are perfectly uninteresting in what they are. A great poet, a really great poet, is the most unpoetical of all creatures. But inferior poets are absolutely fascinating” p. 41)

Sempre admirado, Harry vem comentar a 'precocidade' de Dorian Gray,

“As pessoas comuns esperavam até que a vida lhes revelasse os seus segredos, mas aos poucos, aos eleitos, os mistérios da vida eram revelados antes que o véu se afastasse. Às vezes por efeito da arte, e principalmente da arte literária, que atua imediatamente com as paixões e o intelecto. Mas vez por outra uma personalidade complexa tomava lugar e assumia função da arte, era realmente, deste modo, uma verdadeira obra de arte, pois avida tem também obras-primas, assim como a poesia tem, ou a escultura, ou a pintura.”
.
“[...] Ordinary people waited till life disclosed to them its secrets, but to the few, to the elect, the mysteries of life were revealed before the veil was drawn away. Sometimes this was the effect of art, and chiefly of the art of literature, which dealt immediately with the passions and the intellect. But now and then a complex personality took the place and assumed the office of art, was indeed, in its way, a real work of art, life having its elaborate masterpieces, just as poetry has, or sculpture, or painting.” p. 42

Dorian não ama Sibyl, mas uma idealização (quando a atriz desiste da 'atuação', ela perde o 'brilho' aos olhos dele). O 'amor' de Dorian Gray brota de um egoísmo – é a imagem que ele projeta sobre a jovem atriz.

Sabendo dos limites do 'amor', dos interesses do ser apaixonado, Harry continua a tecer seu elogio do individualismo. Aqui o ultra-individualismo, que resvala na indiferença com os interesses dos outros – pois a nossa liberdade acaba quando começa a do outro.

Mas para o nobre hedonista, “Ser bom é estar em harmonia consigo mesmo.” (“to be good is to be in harmony with one's self.” p. 57), sem se importar com interesses e bem-estar alheios. Afinal de contas, “Discórdia é ser forçado a estar em harmonia com os outros. A própria vida - eis o que importa.” (“Discord is to be forced to be in harmony with others. One's own life – that is the important thing.”)

E mais: “Além disso, o individualismo tem realmente objetivos elevados. A moralidade moderna consiste em se aceitar o padrão da época. Considero que um homem de cultura aceitar o padrão de sua época seja uma forma da mais alta imoralidade.” (“Besides, individualism has really the higher aim. Modern morality consists in accepting the standard of one's age. I consider that for any man of culture to accept the standard of his age is a form of the grossest immorality." p. 57)
E comentando as 'divisões de classes': “Imagino que a real tragédia dos pobres é que eles não podem fazer nada além de auto-renunciar. Os belos pecados, assim como as coisas belas, são o privilégio dos ricos.” (“I should fancy that the real tragedy of the poor is that they can afford nothing but self-denial. Beautiful sins, like beautiful things, are the privilege of the rich.” p. 58)

A questão do individualismo X coletivismo é bem evidente nesta Obra de Oscar Wilde, que também abordou a temática em seu livro “A Alma do Homem sob o Socialismo”, onde as ambições do indivíduo entram em contradição com o imperativo coletivo. A preocupação se localiza na dicotomia liberdade X controle. Há liberdade e espontaneidade no Socialismo? Ou em qualquer outro Coletivismo? No modelo estatista russo (da ex-URSS) não foi possível. Sempre houve disciplina e repressão.

O Leninismo seguiu um modelo de 'socialismo taylorista', preocupado com disciplina (dever + controle) e eficiência (ordem e produção), tudo sob um rígido aparato burocrata. O Estalinismo levou tudo ao paroxismo da repressão, militarização, coletivização estatista, terror. E tudo para criar produção industrial e uma nova classe de parasitas sociais.

Tampouco no Capitalismo tem-se liberdade. Condicionados por renda, status, local de moradia e trabalho, acesso aos meios culturais, os cidadãos se 'encaixam' em classes sociais, onde uns são mais privilegiados do que outros. Diferenças de renda criam diferenças de educação e acesso ao saber. Uns educados para o trabalho, outros para 'administrarem' ou 'vigiarem' os trabalhos alheios.

A Liberdade é um conceito metafísico muito complexo para abordá-lo aqui. Outros já o fizeram com mais êxito. Muitos procuram liberdade – não apenas poliica ou econômica. Temos libertários de esquerda – os anarquistas – e os libertários de direita – os conservadores do 'Dont Tread on Me' – onde ambos os grupos de libertários odeiam pura e simplesmente a existência do aparato estatal.

Para Oscar Wilde o interesse coletivo não deve abafar as aspirações individuais – sejam elas vaidade, egoísmo, talento artístico. Qualquer controle impede a espontaneidade e cria indivíduos padronizados, sem vivenciarem a exaltação poética ou o pensamento filosófico. O Socialismo seria aceitável e elogiável se mantivesse abertas as portas para as potencialidades dos indivíduos.
Voltemos ao enredo. Harry muito cinicamente sabe porque ele incomoda os hipócritas, “Eu represento para você todos os pecados que você nunca teve a coragem de cometer.” (“I represent to you all the sins you have never had the courage to commit.” p. 58) e assume a personalidade do transgressor – assim como a Era Vitoriana devia ver o próprio Wilde que dizia os epigramas mais 'desaforados' e passava impune (até que num deslize deu motivo para os hipócritas o crucificarem – o caso com o jovem nobre Alfred Douglas, em 1895.)

Desiludido com a 'musa' Sibyl, que não 'corresponde às expectativas', Dorian Gray percebe que não ama a atriz, mas uma idealização da heroína dramática quando ela era Julieta, ou Ophélia, ou Desdêmona, e é até cruel com a jovem, ao dizer que não mais a ama,

“'Sim,' ele gritou, 'você matou o meu amor. Você acostumava excitar a minha imaginação. Agora nem sequer anima a minha curiosidade. Você sequer tem qualquer efeito. Eu amava você porque você era maravilhosa, porque tinha gênio e intelecto, porque você compreendia os sonhos dos grandes poetas e dava forma e substância às sombras da arte. Você jogou tudo fora. Você é frívola e estúpida. [...] Você tirou o romance de minha vida. Quão pouco você entende de amor, se você diz que o amor prejudica a sua arte! Sem a sua arte, você é nada.”
.
"Yes," he cried, "you have killed my love. You used to stir my imagination. Now you don't even stir my curiosity. You simply produce no effect. I loved you because you were marvellous, because you had genius and intellect, because you realised the dreams of great poets and gave shape and substance to the shadows of art. You have thrown it all away. You are shallow and stupid. [...] You have spoiled the romance of my life. How little you can know of love, if you say it mars your art! Without your art, you are nothing." pp. 63-64, c. 7

Dorian despreza o remorso de Sibyl, as lágrimas da amada de ontem agora são 'melodramáticas'. “Há sempre algo ridículo com as emoções das pessoas que deixamos de amar. Sibyl Vane parecia-lhe ser absurdamente melodramática. Suas lágrimas e soluços o entediavam.” (“There is always something ridiculous about the emotions of people whom one has ceased to love. Sibyl Vane seemed to him to be absurdly melodramatic. Her tears and sobs annoyed him.” p. 64)

De súbito, surge o primeiro traço de crueldade na pintura, para a perplexidade do modelo,

“Ele sentou-se e começou a pensar. De repente relampejou em sua mente o que ele havia dito no estúdio de Basil Hallward no dia em que a pintura fora terminada. Sim, ele se lembrava perfeitamente. Ele tivera um louco desejo para permanecer jovem, enquanto o retrato envelheceria; que a sua própria beleza ficaria intocada, e que a face na tela carregaria os fardos de suas paixões e pecados; que a imagem pintada seria marcada com as linhas do sofrer e do meditar, que ele se manteria em toda a delicada florescência e graciosidade de sua consciente mocidade. Certamente seu desejo não fora satisfeito? Tais coisas eram impossíveis. Parecia monstruoso sequer pensar nisso. E, ainda, havia o retrato diante dele, com o toque de crueldade ao redor dos lábios.”
.
He threw himself into a chair and began to think. Suddenly there flashed across his mind what he had said in Basil Hallward's studio the day the picture had been finished. Yes, he remembered it perfectly. He had uttered a mad wish that he himself might remain young, and the portrait grow old; that his own beauty might be untarnished, and the face on the canvas bear the burden of his passions and his sins; that the painted image might be seared with the lines of suffering and thought, and that he might keep all the delicate bloom and loveliness of his then just conscious boyhood. Surely his wish had not been fulfilled? Such things were impossible. It seemed monstrous even to think of them. And, yet, there was the picture before him, with the touch of cruelty in the mouth. p. 66
É quando Dorian tem consciência da própria crueldade – e ele ainda nem sabe sobre o suicídio da jovem atriz – e quer ser um 'bom moço', mas ele não evita a influência iconoclasta de Lorde Henry, justamente quem vem anunciar a tragédia. Ele que até escreveu uma carta, e até pensava em se casar com a jovem atriz. Ele, afinal, se culpava – mesmo que cinicamente sabendo que “há certa volúpia em se auto-reprovar” (“there is a luxury in self-reproach”) ao golpear-se e reconhecer seu impulso cruel, “Pobre criança! Ele tinha sido egoísta e cruel com ela” (“Poor child! He had been selfish and cruel to her.”)




continua...






Leonardo de Magalhaens








.


.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

sobre AS FLORES DO MAL (2:2)




sobre As Flores do Mal (Les Fleurs du Mal, 1857)
obra poética do francês
Charles Baudelaire (1821-1867)


A lírica dissonante da modernidade



(2:2)






A embriaguez dos sentidos: a idealização


Na embriaguez dos sentidos – todas as sensações para afogar o tédio, o spleen – surge o culto a idealização – principalmente da artificialidade, da sedução, em suma, do que se encarna na figura da mulher enquanto uma 'promessa de prazer'. Mas não seria apenas a imagem do 'prazer vulgar' e, por consequente, a 'mulher vulgar'. Não. Aqui há uma duplicidade: a mulher ideal e a mulher vulgar. Já vimos como se processa tal dicotomia.

Na figura da mulher ideal se ressalta a imagem da mulher triste – uma espécie de tristeza gótica de tradição ultra-romântica – ou, ainda, o encanto na melancolia. Assim é nas gothic novels, assim é nos poemas de Edgar Allan Poe – a mulher amada que jaz morta é um símbolo de beleza lírica! Em Dracula vimos que o noivo considera a noiva cadáver ainda mais bela! A Lucy vampira era de uma beleza funérea que mais fascinava do que inspirava 'temor' religioso – o cadáver enquanto objeto de desejo não se restringiria assim somente aos 'necrófilos'?

É assim o belo e funesto “Madrigal Triste”,

Que m'importe que tu sois sage?
Sois belle! Et sois triste! Les pleurs
Ajoutent un charme au visage,
Comme le fleuve au paysage;
L'orage rajeunit les fleurs.

...

J'aspire, volupté divine!
Hymne profond, délicieux!
Tous les sanglots de ta poitrine,
Et crois que ton coeur s'illumine
Des perles que versent tes yeux.


(“Que me importa que sejas sábia? / Sê bela! Sê triste! As dores / Dão um charme à face, / Tal o rio à paisagem; / A tormenta agrada às flores. [...] Eu aspiro, volúpia divina! / Hino profundo e delicioso! / Todos os soluços de teu peito, / e creio que teu coração se ilumina / Com as pérolas que jorram de teus olhos.” trad. LdeM)


O culto da tristeza no simbolismo, no decadentismo se revela bem próximo aos românticos de sete décadas antes – a geração do 'mal do século' – vejamos o poema Tristezas da lua, que muito deve aos idealismos melancólicos dos românticos, acrescentando as sugestões, insinuações imagéticas -sinestésicas dos simbolistas, por exemplo, ao comparar a lua a uma bela moça semi-adormecida a se acaricia com indolência,

Ce soir, la lune rêve avec plus de paresse;
Ainsi qu'une beauté, sur de nombreux coussins,
Qui d'une main distraite et légère caresse
Avant de s'endormir le contour de ses seins,
.
(“À noite, a lua sonha com preguiça; / Assim tal uma beleza, sobre tantas almofadas. / Cuja mão distraída e ligeira acaricia / Antes de dormir os contornos do seio,” trad. LdeM)



Uma beleza idealizada mas que no mundo real encontra-se lado a lado com o grotesco, ou a beleza cujo fim é transmutar-se lugubremente em grotescas formas, tal a beleza da mulher amada que torna-se-á um cadáver em decomposição, segundo o excêntrico e célebre “Une Charogne” (Uma Carniça)


-Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
À cette horrible infection,
Etoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!

Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Apres les derniers sacrements,
Quand vous irez, sous l'herbe et les floraisons grasses,
Moisir parmi les ossements.

.
(“E então serás igual a esta imundície, / A esta horrível infecção, / Estrela de meus olhos, sol de minha natureza, / Vós, meu anjo e minha paixão! // Sim, assim serás, ó rainha de emoções, / Após os últimos sacramentos, / Quando irás, sob a erva e as florações, / Sofrer igual apodrecimento.” trad. LdeM)



As imagens fúnebres, de sepulturas, de morte precoce, são recorrentes nos decadentes, nos simbolistas – no que se reaproximam dos românticos e dos ultra-românticos (que nada mais fizeram do que 'atualizar' um tema barroco e pré-romântico. Vejamos os poetas dos cemitérios – graveyards poets – na Grã-Bretanha do século 18, o mesmo século das gothic novels (2).

No poema "Sepultura" (Sépulture) o eu-lírico se refere a alguém cujo corpo será enterrado devido a piedade de algum 'bom cristão', o que não impedirá o morto de sofrer com o convívio dos malditos,

Si par une nuit lourde et sombre
Un bon chrétien, par charité,
Derrière quelque vieux décombre
Enterre votre corps vanté,

...

Vous entendrez toute l'année
Sur votre tête condamnée
Les cris lamentables des loups

.
(“Se por uma noite pesada e sombria / Um bom cristão, por caridade, / Atrás de qualquer velho escombro / enterra vosso corpo tão caro [...] Ouvirás durante todoo ano / Sobre vossa cabeça condenada / Os uivos de lamento dos lobos [...]” trad. LdeM)


mais sobre os graveyards poets e as gothic novels
em
http://www.litgothic.com/Topics/graveyard_school.html
http://en.wikipedia.org/wiki/Graveyard_poets
http://en.wikipedia.org/wiki/Graveyard_poets
http://en.wikipedia.org/wiki/Gothic_literature
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/11/sobre-abadia-de-northanger-de-jane.html

.
A presença da morte – nem sempre 'simbólica' mas também com o que exibe de mais grotesco: a decomposição – se desloca em todos os recantos das 'flores do mal' onde a fronteira entre o sonho e o pesadelo é por demais tênue: atrás de uma imagem de beleza há um horror, dentro de um ser vivo está a morte latente.

A morte passa a ser idolatrada – se não podes vencê-la, junte-se a ela! - como uma forma de evasão, de escapismo, como se nada mais restasse ao ser em sofrimento. Há uma seção em “Flores do Mal” destinada exclusivamente aos poemas sobre a temática fúnebre – A Morte – onde se destacam “A Morte dos Pobres” e “A Morte dos Artistas”.


C'est la Mort qui console, hélas! et qui fait vivre;
C'est le but de la vie, et c'est le seul espoir
Qui, comme un élixir, nous monte et nous enivre,
Et nous donne le coeur de marcher jusqu'au soir;
.
(“É a Morte que consola, ai! e que faz viver; / É o alvo da vida, e é a única esperança / Que, tal um elixir, nos enleva e embriaga, / E dá-nos o ânimo de andar até à tarde;” trad. LdeM)

A morte nos anima, no sem-sentido do dia-a-dia, assim como anima ao artista,

Combien faut-il de fois secouer mes grelots
Et baiser ton front bas, morne caricature?
Pour piquer dans le but, de mystique nature,
Combien, ô mon carquois, perdre de javelots?

...

N'ont qu'un espoir, étrange et sombre Capitole!
C'est que la Mort, planant comme un soleil nouveau,
Fera s'épanouir les fleurs de leur cerveau!
.

(“Quantas vezes é preciso sacudir meus guizos / E beijar tua fronte baixa, morna caricatura? / Para furar o alvo, de mística natura,/ Quantos, ó meu cesto, perder de dados? / [...] Sem uma esperança, estranho e sombrio Capitólio! / É que a Morte, tal um novo sol a planar / As flores de seus cérebros fará desabrochar!” trad. LdeM)

A Morte (ou o medo de morrer) enquanto ânimo dos vivos é uma visão de niilismo tanto quando se vivéssemos apenas porque não queremos morrer. Não há uma valorização – há uma covardia – aquela mesma que proclamava o eufórico-melancólico Hamlet, no monólogo “Ser ou não ser, eis a questão” - Ato 3, cena I

O Poeta pode – ao fim de tudo – ao menos considerar-se um morto feliz (Le Mort Joyeux), com se dirige aos vermes com singular ironia, entre amarga e cínica, tal qual as melhores páginas de nosso Brás Cubas ou os versos mais niilistas de nosso Augusto dos Anjos (3),


Ô vers! noirs compagnons sans oreille et sans yeux,
Voyez venir à vous un mort libre et joyeux;
Philosophes viveurs, fils de la pourriture,

À travers ma ruine allez donc sans remords,
Et dites-moi s'il est encor quelque torture
Pour ce vieux corps sans âme et mort parmi les morts!
.
(“Ó vermes! Sombrios companheiros sem olhos e orelhas, / Vejam chagar um morto livre e feliz; / Filósofos libertinos, filhos da podridão, // Através de minha ruínas podeis seguir sem remorsos, / E dizei se ainda há tortura / Para esse velho corpo sem alma e morto entre os mortos!” Trad. LdeM)


ou se entrega ao auto-desprezo, o carrasco de si-mesmo, L'Héautontimorouménos, em auto-flagelação,


Je suis la plaie et le couteau!
Je suis le soufflet et la joue!
Je suis les membres et la roue,
Et la victime et le bourreau!

Je suis de mon coeur le vampire,
—Un de ces grands abandonnés
Au rire éternel condamnés
Et qui ne peuvent plus sourire!
.

(“Eu sou a ferida e o punhal! / Eu sou a face e o golpe! / Eu sou o corpo e a tortura, / E a vítima e o carrasco! // Sou o vampiro de meu coração, / -Um desses grandes abandonados / Ao riso eterno condenados / E não podem jamais sorrir!” Trad. LdeM)


Eis que o Poeta interioriza o desprezo de fora – aquele que antevê nos olhares alheios – e passa a sentir o desprezo em si-mesmo, a golpear a si-mesmo, a sentir seu coração gelado, assim no poema “Canto de Outono” (Chant d'Automne)

Tout l'hiver va rentrer dans mon être: colère,
Haine, frissons, horreur, labeur dur et forcé,
Et, comme le soleil dans son enfer polaire,
Mon coeur ne sera plus qu'un bloc rouge et glacé.
.
(“Em nosso ser adentra todo o inverno: ira, / Ódio, frenesi, horror, trabalho forçado, / E, tal ao sol no inferno polar, / Meu coração não será mais que um bloco rubro e gelado.” Trad. LdeM)

Ele, o Poeta, que se assemelha ao Sol que brilha para todos! Assim o poema Le Soleil – onde o sol desce sobre a cidade tal o poeta – o sol que brilha para todos , como dizem! Brilha sobre palácios e casebres, praias e morros, piscinas e lixões! Na face do mendigo sob o arco do viaduto e na face sorridente do rico no bar do clube.

Quand, ainsi qu'un poète, il descend dans les villes,
Il ennoblit le sort des choses les plus viles,
Et s'introduit en roi, sans bruit et sans valets,
Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais.
.
(“Quando, tal um poeta, ele [o sol] desce nas cidades, / Ele enobrece o tipo de coisas as mais vis, / E se introduz tal rei, sem ruído e sem valetes, Em todos os hospitais e em todos os palácios.” trad. LdeM)


Então poeta deve ser assim: estar e testemunhar sobre hospitais, hospícios, asilos tanto quanto estar e testemunhar sobre saraus, festas, palácios, et cetera, não havendo limites para a expansão do 'testemunho' poético. Dentro e fora das mentes, a vasculhar emoções e pecados, a palavra se propõe a devassar os corações.

O cérebro de poeta que tudo testemunha – principalmente a si-mesmo – que tudo armazena em neurônios e emoções encontra-se entediado até a náusea com miríades de dados e acontecimentos, que seria impossível relatar tudo. Assim o tédio existencial de um Spleen (o LXXVI, segundo a edição de 1964)

J'ai plus de souvenirs que si j'avais mille ans.

Un gros meuble à tiroirs encombré de bilans,
De vers, de billets doux, de procès, de romances,
Avec de lourds cheveux roulés dans des quittances,
Cache moins de secrets que mon triste cerveau.
C'est une pyramide, un immense caveau,
Qui contient plus de morts que la fosse commune.

.
(“Tenho mais lembranças como se tivesse mil anos. // Um armário com gavetas atulhadas de contos, / De versos, de bilhetes, de pleitos, de romances, / Com grossas madeixas entre as faturas, / Oculta menos de segredos que meu triste cérebro. / É uma pirâmide, uma imensa caverna, / Que contém mais mortos que a fossa comum.” trad. LdeM)


Mas o Poeta não é divino, nem auto-suficiente. Um belo dia, ele toma consciência disso: que ele não é mais o bardo adorado pela tribo. É agora um maldito que todos desprezam. É que ele perdeu a sua aura/auréola.


A perda aura / auréola – a decadência do Poeta

O Poeta consciente de si-mesmo, em constante auto-observação tem uma noção do quanto sua 'glória' se foi – os bardos antes tão estimados! - e que sua aura lírica está caída na sarjeta, no meio da poça de lama. Mas o drama do Poeta é ampliado, amplificado até abarcar o mundo inteiro – o drama do poeta se universaliza, todo o mundo sofre, toda a Humanidade decadente sob um céu de chumbo, uma verdadeira tampa sobre uma panela fervente – guerras, pestes, catástrofes – pronta para explodir!

É a ideia símbolo metáfora do céu firmamento enquanto 'tampa'/ 'tampo' (couvercle) presente nos poemas “Spleen” e “Le couvercle”,

Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle
Sur l'esprit gémissant en proie aux longs ennuis,
Et que de l'horizon embrassant tout le cercle
Il nous verse un jour noir plus triste que les nuits;

.
(“Quando o céu baixo e pesado cai, tal um tampo / Sobre a alma gemente, assolada aos açoites, / E deste horizonte abraçando todo o campo / Deixa um dia escuro mais triste que as noites.” Trad. LdeM)


e

En haut, le Ciel! Ce mur de caveau qui l'étouffe,
Plafond illuminé par un opéra bouffe
Où chaque histrion foule un sol ensanglanté;

Terreur du libertin, espoir du fol ermite;
Le Ciel! Couvercle noir de la grande marmite
Où bout l'imperceptible et vaste Humanité.

.
(“Acima, o Céu! O muro da cova que sufoca, / Teto iluminado para uma ópera bufa / Onde cada histrião pisa um chão de sangue; // Terror do devasso, esperança do tolo eremita; / O Céu! Tampa escura da grande marmita / Onde se confina a sutil e vasta Humanidade.” Trad. LdeM)



A perda da aura, a percepção da condição de poeta como um ser degradado, condenado, exilado – portanto em irmandade com Lúcifer, Caim, Manfred, Fausto... - está presente na benção-maldição onde a mãe prefere parir víboras do que um poeta! Assim no Poema intitulado ironicamente de “Benção”, Bénédiction (I),

Lorsque, par un décret des puissances suprêmes,
Le Poète apparaît en ce monde ennuyé,
Sa mère épouvantée et pleine de blasphèmes
Crispe ses poings vers Dieu, qui la prend en pitié:

—«Ah! que n'ai-je mis bas tout un noeud de vipères,
Plutôt que de nourrir cette dérision!
Maudite soit la nuit aux plaisirs éphémères
Où mon ventre a conçu mon expiation!

.
(“Logo que, por um decreto das potências supremas, / O Poeta aparece neste mundo entediado, / Sua mãe perplexa e cheia de blasfêmias / Ergue as mãos aos Céus, quiçá apiedados: // -Ah! Antes parir um ninho de víboras, / Que dar de comer a tal aberração! / Maldita seja a noite de prazeres efêmeros / Quando meu ventre concebeu esta expiação!” Trad. LdeM)

Ou o poema La Déstruction (CIX)(que podemos traduzir como “A Destruição” ou “A Decadência”)

Sans cesse à mes côtés s'agite le Démon;
Il nage autour de moi comme un air impalpable;
Je l'avale et le sens qui brûle mon poumon
Et l'emplit d'un désir éternel et coupable.
...
Il me conduit ainsi, loin du regard de Dieu,
Haletant et brisé de fatigue, au milieu
Des plaines de l'Ennui, profondes et désertes,


(“Sem cessar, ao meu lado se agita o demônio; / ele flutua ao meu redor tal um ar impalpável; / Eu o absorvo a sentir que queima meu pulmão / e o enche de um desejo eterno e culpável. // Ele me conduz assim, longe do olhar de deus, / Ofegante e quebrado de fadiga, em meio / Às planícies do Tédio, profundos e desertas,” Trad. LdeM)


Mesmo com excessivos tons de niilismo e decadentismo, o satanismo de Baudelaire não passa de disso (negativismo, niilismo), segundo Benjamin argumenta. Não passa de uma vertigem de um libertino, de um flâneur a flertar com a morte e o lado sombrio da cidade e da vida...

O satanismo de Baudelaire não deve ser tomado demasiadamente à sério. Se tem algum significado, é como a única atitude na qual Baudelaire era capaz de manter por muito tempo uma posição não-conformista.” (pp. 19-20)


Assim deve ser lida a oração lírica aos pés da entidade luciferiana, as “Litanias de Satã”, Les Litanies de Satan,


Toi dont la large main cache les précipices
Au somnambule errant au bord des édifices,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

...

Toi qui, pour consoler l'homme frêle qui souffre,
Nous appris à mêler le salpêtre et le soufre,

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!


(“Tu, cuja mão larga oculta os precipícios / Ao sonâmbulo errante na borda dos edifícios, // Ó Satã, tenha piedade de minha longa miséria!

Tu, que para consolar o homem fraco que sofre, / Nos ensinou a misturar o nitrato com o enxofre, // Ó Satã, tenha piedade de minha longa miséria!” Trad. LdeM)



O Poeta maldito tece uma reza para o Príncipe das Trevas tal como faria diante do Cordeiro de Deus, pois sabe de que lado sua lírica está. Ou julgam que a lírica dele está. Ele é maldito pelos demais – e passa a carregar tal 'maldição' como uma glória na miséria. Miséria da qual o Diabo se ri! E diante da qual Deus segue indiferente... Pouco se importa. Enquanto isso, Diabo é quem para 'ajudar' a humanidade ensinou a fabricação da pólvora (carvão, enxofre, nitrato de potássio)!


Quase sempre a confissão religiosa brota de Baudelaire como um grito de guerra. Não quer que lhe tirem o seu Satã. Este é o verdadeiro móvel do conflito que Baudelaire teve de sustentar com sua descrença. Não se trata de sacramento e oração, mas da ressalva luciferina de difamar o Satã de quem se está à mercê.” (p. 21)

Satã seria um arqui-rebelde, justamente o símbolo luciferiano que aparece no “Caim” de Lord Byron, conforme já escrevemos.


A noite cai: o consolo do Poeta


O Poeta ainda é capaz de encontrar um alívio para as dores materiais e líricas quando se depara com o crepúsculo em promessa de um novo cair de noite, a paz que cai sobre o tumulto do dia, mas uma noite que oculta outros movimentos, mais sutis, ou mais escandalosos, nas buscas de prazeres.

Vejamos dois poemas com a temática 'crepuscular'. O poema “O Fim do Dia” (La Fin de la Journée CXLIX ),

Sous une lumière blafarde
Court, danse et se tord sans raison
La Vie, impudente et criarde.
Aussi, sitôt qu'à l'horizon

La nuit voluptueuse monte,
Apaisant tout, même la faim,
Effaçant tout, même la honte,
Le Poète se dit: «Enfin!

Mon esprit, comme mes vertèbres,
Invoque ardemment le repos;
Le coeur plein de songes funèbres,

Je vais me coucher sur le dos
Et me rouler dans vos rideaux,
Ô rafraîchissantes ténèbres!»

.
(“Sob uma claridade baça / Dança e se torce sem razão / A vida, impudente e berrante. / Também, logo ao horizonte // A noite voluptuosa sobe, / Acalmando tudo, até a fome, / Apagando tudo, até a desonra, / O Poeta se diz: 'Enfim! // Meu espírito, como minhas vértebras, / Invoca ardentemente o repouso; / O peito cheio de sonhos fúnebres, / Vou me deitar de costas / E me enrolar em vossas cortinas, / Ó refrescantes trevas!'” Trad. LdeM)


e o poema “Recolhimento” (Recueillement , CLIV),

Sois sage, ô ma Douleur, et tiens-toi plus tranquille.
Tu réclamais le Soir; il descend; le voici:
Une atmosphère obscure enveloppe la ville,
Aux uns portant la paix, aux autres le souci.

...

Le soleil moribond s'endormir sous une arche,
Et, comme un long linceul traînant à l'Orient,
Entends, ma chère, entends la douce Nuit qui marche.

.
(“ Cuidado, minha dor, seja mais tranquila. / Tu reclamas a Tarde; eis aqui, ela vem: / Uma atmosfera obscura envolve a vila, / A alguns traz a paz, a outros entretém. [...] O sol agoniza, luz enfim declinada; / E, tal um longo lençol no Oriente, /Ouça, querida, a doce Noite fremente.” Trad. LdeM)


O tom decadente e fúnebre de Baudelaire não deve incomodar o leitor – afinal, compartilhamos de uma expectativa quanto a um livro saturnino denominado “Flores do Mal” - um nome deveras ambíguo! - pois o Poeta sabe o quanto o Leitor compartilha as dores e ironias do Autor, sendo que a Obra se re-faz justamente nessa 'cumplicidade', é o leitor hipócrita, o semelhante!, segundo o próprio “Prefácio”,


C'est l'Ennui! L'oeil chargé d'un pleur involontaire,
Il rêve d'échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
—Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!


(“É o Tédio! Olho cheio de choro involuntário, / A sonhar cadafalsos ao fumar um narguilé. / Tu o conheces, leitor, esse monstro delicado, / -Leitor hipócrita, - meu semelhante, - meu irmão!” Trad. LdeM)



jan/11

por Leonardo de Magalhaens
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/



Poemas citados neste ensaio

seção Spleen et Idéal (Bénédiction, L'Albatros, Correspondences, Sed non Satiata, Une Charogne, Chant d'Automne, Tristesses de la Lune, Sépulture, Le Mort Joyeux, Spleen LXXVI, L'Héautontimorouménos), Tableaux Parisiens (Le Soleil, A une mendiante rousse, Les Aveugles, A une passante, Rêve Parisien), Le Vin (Le Vin des Chiffonniers, L'Ame du vin), Fleurs du Mal (La Déstruction, La Fontaine du Sang, L'Amour et le Crâne), Révolte (Les Litanies de Satan), La Mort (La Mort des Pauvres, Le Mort des Artistes, La Fin de La Journée). Outros: Le Couvercle, Le Rebelle, Les Plaintes d'un Icare, Recueillement.


Notas


(1)A imagem do poeta afastado da vida cotidiana, tal se elevado numa torre ou recluso numa cela monstérica, é central em muitos poemas dos simbolistas e parnasianos. Entre nós se destaca o poema de Olavo Bilac, o soneto “A Um Poeta”, onde a Beleza – ou seria Beletrismo? - surgiria de um trabalho de artesão meio ao mais meditativo labor em recolhida solidão,

Longe do estéril turbilhão da rua,Beneditino escreve! No aconchegoDo claustro, na paciência e no sossego,Trabalha e teima, e lima , e sofre, e sua!Mas que na forma se disfarce o empregoDo esforço: e trama viva se construaDe tal modo, que a imagem fique nuaRica mas sóbria, como um templo gregoNão se mostre na fábrica o suplicioDo mestre. E natural, o efeito agradeSem lembrar os andaimes do edifício:Porque a Beleza, gêmea da VerdadeArte pura, inimiga do artifício,É a força e a graça na simplicidade.


(2) Mais sobre os graveyards poets e as gothic novels nos links


http://www.litgothic.com/Topics/graveyard_school.html
http://en.wikipedia.org/wiki/Graveyard_poets
http://en.wikipedia.org/wiki/Graveyard_poets
http://en.wikipedia.org/wiki/Gothic_literature
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/11/sobre-abadia-de-northanger-de-jane.html


(3)Lembro de versos de Augusto dos Anjos em “Eu” (1912), tais como em “O Deus-Verme

Almoça a podridão das drupas agras,Janta hidrôpicos, rói vísceras magrasE dos defuntos novos incha a mão...Ah! Para ele é que a carne podre fica,E no inventário da matéria ricaCabe aos seus filhos a maior porção!


Ou na fim da parte III de “As Cismas do Destino”,

Quando chegar depois a hora tranqüila,Tu serás arrastado, na carreira,Como um cepo inconsciente de madeiraNa evolução orgânica da argila!...
Adeus! Fica-te ai, com o abdômen largoA apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!O corvo que comer as tuas fibrasHá de achar nelas um sabor amargo!"





Links

Eis algumas traduções de poemas de Baudelaire nos meus
blogs

http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/05/correspondencias-charles-baudelaire.html
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/11/uma-mendiga-ruiva-baudelaire.html
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/11/uma-mendiga-ruiva-baudelaire.html
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/12/2-poemas-de-charles-baudelaire.html

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/2011/01/poemas-de-charles-baudelaire.html


videos
com as flores do mal ...

http://www.youtube.com/watch?v=qH7RM-P_Cpc
http://www.youtube.com/watch?v=s-Q87doHJlA&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=s-Q87doHJlA&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=69eZg-VeE4w&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=69eZg-VeE4w&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=bDW-VJK-RJw&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=biHNV5gxmek&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=GrGYnv6WHrs&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=6vb0gT6QWUc
http://www.youtube.com/watch?v=9ZjUdO4mS1c



REFERÊNCIAS


BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. Paris, Éditions Gallimard, 1947.

____. O Pintor da Vida Moderna. (Le Peintre de la vie moderne).

BENJAMIN, Walter. "Charles Baudelaire – Um Lírico no Auge do Capitalismo” In: Obra Escolhidas Volume III. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CAMPOS, Haroldo de. O Arco-íris Branco: ensaios de literatura e cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978.


pesquisa na internet

(sites / homepages / blogs acessados em janeiro 2011)

Les Fleurs du Mal online na Wikisource
http://fr.wikisource.org/wiki/Les_Fleurs_du_mal
http://fr.wikisource.org/wiki/Les_Fleurs_du_mal_(1868)
.
Le Peintre de la vie moderne online na Wikisource
http://fr.wikisource.org/wiki/Le_Peintre_de_la_vie_moderne

obras de Baudelaire na Wikisource
http://fr.wikisource.org/wiki/Auteur:Charles_Baudelaire

sobre a figura do Flâneur
http://www.theflaneur.co.uk/decadentArtFreedomC1.html
http://dystopianflanerie.blogspot.com/2004/12/le-flaneur-in-dystopian-flanerie.html
.
.