terça-feira, 30 de novembro de 2010

sobre Frankenstein - de Mary Shelley (3:3)




Sobre “Frankenstein” (1818)
de Mary Shelley (1797-1851)

Literatura de terror
(horror fiction)


Frankenstein
Contos de E A Poe
Dracula


O terror do que foge ao controle: a criatura contra o criador



p3




Saberemos como o monstro se 'educou'. Tal uma criança, ele aprende a usar os sentidos. Sofre com a solidão e o desamparo – como qualquer criança! É como se ele fosse o primeiro homem – Adão – jogado no mundo, um mundo ao qual deve se adaptar e, ao mesmo tempo, observar, descobrir, dominar. Desde o início, ele é bom, está fascinado com a natureza, os astros, os gorjeios dos pássaros, e a consciência de si – a deformidade – surge lentamente. Ele é um exemplo básico daquela teoria da 'tábula rasa' de Locke – pois deve aprender tudo – e também uma prova do nosso narcisismo – quando ele se percebe feio, começa o drama.

O monstro aprende a partir das experiências – precisa tocar as brasas da fogueira para saber que o fogo queima – eis o empirismo de Locke. De experiência em experiência ele cria 'conceitos' mentais – as ideias. Ou seja, nada há de um 'inatismo', um 'relembrar' segundo a doutrina platônica. O monstro está na natureza tal um homem pré-histórico, da idade da pedra, aprendendo a usar o fogo, a assar os alimentos, a guiar-se pela posição dos astros (o sol e a lua, principalmente) – ou seja, não sendo educado na civilização do século 18, o monstro repete os primeiros passos dos primeiros homens, antes da civilização.

Aliás, os primeiros contatos com os 'civilizados' são nada agradáveis – a deformidade do monstro sempre traz horror e rejeição. Agredido, a criatura passa a temer os humanos! A agressão – a maldade? - do monstro vem da agressão que ele sofreu primeiro. Ele é a vítima – rejeitado devido a aparênica! Às ocultas, o monstro passa a observar os humanos, nas aldeias, nos campos, nos casebres – o convívio das famílias.


Em alguns momentos, o monstro parece mesmo um anjo caído, um Lúcifer, no Paraíso Perdido, a observar o primeiro casal, no Jardim do Éden. Mas, na realidade, os humanos não são felizes. O sofrimento vem da carência, da pobreza (material ou intelectual). A vida no campo, nas aldeias mostra a divisão entre abundância urbana e penúria rural. O monstro até evita roubar os aldeões – para não prejudicar as pessoas! O monstro revela-se comovido com o sofrimento alheio!

E assim ele consegue aprender sobre os humanos. Descobre as palavras – que sons articulados significam coisas! - que transmitem emoções, conceitos, ideias, ofensas. A criatura passa a se afeiçoar aos humanos que observa – e até ajudá-los. Mas hesita em se revelar aos humanos. Pois começa a perceber a própria aparência que é mostruosa, “Ai de mim! Eu ainda não sabia inteiramente os fatais efeitos desta deformidade miserável.” (“Alas! I did not yet entirely know the fatal effects of this miserable deformity.” c. XII)

Ao reclamar de sua aparência, a criatura diante do Criador, lembra o Homem a se comparar aos Anjos, a querer dizer, 'por que não me fizeste tão belo quanto eles?' Não é outra a fonte de decepções do monstro (ainda não malévolo). A criatura aprende a entender o idioma, a entender a leitura dos livros – que um dos camponeses lê em voz alta. Ou seja, o monstro vai se instruindo, um belo autodidata! Percebe que o ser humano é capaz de ser nobre – mas também perverso e cruel.


A criatura passa a questionar a própria criação, o propósito do Criador – no caso, o Dr. Frankenstein – em fazê-lo tão disforme. “E o que eu era? Sobre a minha criação e sobre o meu criador eu nada sabia, mas sabia que não tinha dinheiro, nem amigos, nem propriedade. Eu era, além disso, dotado de uma figura horrivelmente deformada e abominável; eu não era da mesma natureza que o homem.” (“And what was I? Of my creation and creator I was absolutely ignorant, but I knew that I possessed no money, no friends, no kind of property. I was, besides, endued with a figure hideously deformed and loathsome; I was not even of the same nature as man.” c. XIII)

A criatura percebe ser um não-humano, um excluído, uma aberração! Um monstro do qual todos fogem e todos repudiam. Mas a criatura não é um animal selvagem – tem percepções e sentimentos humanos (aliás, tem a faculdade da linguagem...) O monstro percebe-se sem parentes, sem infância, sem carinho – como pôde ser possível a sua existência? O monstro é complexado pela falta de beleza – que impossibilita o 'narcisisimo'. Ele deseja e odeia a Beleza.

No capítulo XIV temo uma história dentro de uma narrativa dentro de uma história. É quando o monstro narra para Victor o drama da família De Lacey, exilada da França. (A estrutura narrativa deste romance de Mary Shelley é mesmo um jogo de encaixes – uma narrativa dentro de outra narrativa) Enquanto isso, são citadas as obras lidas pelo monstro (o que explicaria a fala até coerente ), obras encontradas numa mala perdida, lá a cobrir-se de bolor as páginas de Paradise Lost (Milton), Vidas (de Plutarco) e Sofrimentos do Jovem Werther (Goethe), livros que passam a compor a cosmovisão (Weltanschauung) da criatura. Quer se explicar assim a 'erudição' do monstro que tece considerações sobre a 'moralidade humana' como se fosse um filósofo iluminista! (No mais o que pensamos ser o 'estilo' do monstro é o 'estilo' de Victor – e até que o 'estilo' de Victor não passe do 'estilo' do Capitão Walton, que escreve as cartas, diário de bordo...)

A criatura – horrenda e abandonada – passa a odiar o Criador (o Dr. Frankenstein a quem narra agora suas vicissitudes...) Se a criatura é uma espécie de Adão, onde está a Eva? Aqui, é evidente, o monstro parece mais um 'herói romântico' (até byroniano) do que um ser de filme de terror (como as tantas versões o retrataram...) O terror é a condição, a solidão – a crueldade é fruto amargo desta desesperança!

Igual a um Manfred, tal um Caim, a fala da criatura no capítulo XV, ao velho cego De Lacey, resume o drama do 'monstro de Frankenstein', “Eu sou uma criatura infeliz e abandonada; eu olho ao redor e não vejo parente ou amigo sobre a terra. [...] Estou cheio de medo, pois se eu fracassar, serei para sempre um pária no mundo.” (“I am an unfortunate and deserted creature; I look around and I have no relation or friend upon earth. [...] I am full of fears, for it I fail there, I am an outcast in the world forever.” c. XV)

Realmente, a horrenda criatura – com toda uma vida interior de 'poeta romântico' é um 'herói byroniano' por excelência. Rejeitado pelos humanos comuns, isolado, sozinho, rasteja nas margens, caminha na noite, jura vingança, nutre o ódio, é um maldito. Quer, então, uma noiva, para assim poder viver longe dos humanos – e evitar a maldade. O Adão monstruoso pede ao criador a esperada Eva monstruosa.

A cruel criatura é, na verdade, uma vítima de preconceitos – hoje, diríamo 'bullying' – e paga com crueldade a rejeição que recebeu. Assim são as crianças de ruas, os excluídos, que assaltam e matam os 'bons cidadãos'. A criatura era até bondosa, de sentimentos nobres – mas todos veem apenas a aparência disforme, o monstro. Então o monstro da aparência passa a contaminar a criatura do sentimento – e logo haverŕa um monstro 'por fora e por dentro'. Não hesitará em matar – e destruirá a felicidade da família Frankenstein.


“Pela primeira vez os sentimentos de vingança e ódio encheram meu peito, e não me esforcei para contê-los, mas deixei que brotassem numa torrente, inclinei-me para o prejuízo e para a morte.” (“For the first time the feelings of revenge and hatred filled my bosom, and I did not strive to control them, but allowing myself to be borne away by the stream, I bent my mind towards injury and death.” c. XVI)

É quando o monstro passa a procurar o criador - o Dr. Frankenstein – para se vingar. Então o monstro chega a Geneva (Genebra) e não demora a encontrar a propriedade dos Frankenstein – por puro acaso, como pode-se imaginar – e encontra o menino, o pequeno William, o irmão de Victor, e que será a primeira vítima. Agora o monstro tornou-se em definitivo aquele protagonista de um conto de terror.

O monstro é guiado pelo 'demônio interior' – tema muito frequente na obra de Edgar Allan Poe - “o pensamento virou loucura; esta atiçou o demônio dentro de mim” (“the thought was madness; it stirred the fiend within me -” c. XVI) Para cessar a vingança, o monstro tem uma exigência: quer que o Dr. Crie uma noiva para ele – será a noiva do monstro de Frankenstein! O monstro passa a perseguir Victor, pois exige a tal 'companheira'. Victor passa a sentir o peso da maldição tal um Manfred byroniano, a clamar por descanso na morte e nas trevas!

A relação criador – criatura é turbulenta. A criatura desafia o criador quando chama a si mesma de 'mestre', sendo Victor o 'escravo' - “És o meu criador, mas eu sou teu mestre: obedeça!” (“You are my creator, but I am your master: obey!”) Uma verdadeira temática 'senhor e escravo' que tanto fascinou filósofos tais comos Hegel e Nietzsche. O monstro jura vingança – se Victor não criar a 'companheira'. Na verdade, Victor quase dá vida ao novo ser – mas teme que uma raça de monstros se alastre pela terra. A vingança do monstro é anunciada - “Estarei contigo em tua noite de núpcias” (“I will be with you on your wedding-night”) - até porque o monstro sabe que Victor vai se casar com a querida Elizabeth.

O fato é que Victor sobrevive a toda a tragédia – para poder narrar ao capitão. Pois tal um herói byroniano, Victor Frankenstein é incapaz de alcançar a paz, o conforto, a consciência tranquila, “não há em todo o mundo qualquer conforto que eu possa receber” (“on the whole earth there is no comfort which I am capable of receiving” c. XXI) Victor, na verdade, até lamenta ter sobrevivi para narrar a tragédia.

Frankenstein, o Doutor, ajudou o capitão Walton a corrigir as notas sobre a tragédia – ou seja, o livro que acabamos de ler – as consequências das ambições científicas de um jovem genial, que pecou por excesso! Quantos não fizeram o mesmo e pagaram caro?! A Hybris (arrogância) merece uma Nemesis (vingança) implacável .

Victor passa a perseguir o monstro vingativo que destruiu toda a família Frankenstein – o monstro que fugiu ao controle. E a criatura arrasta o criador até as imensidões gélidas do norte – onde ocorrerá o encontro com a tripulação do capitão Walton – e nós leitores saberemos da drama todo.

Aprenderemos que quanto maior a audácia, o apogeu da experiência, maior a queda – a obra de Mary Shelley tem assim um final moralista, uma moral : não ouse, não desafie o Criador!



Frankenstein e Science Fiction

Em Frankenstein temos a criatura que foge ao controle do criador, nos contos de robôs – principalmente de Isaac Asimov – temos as máquinas criadas pelos humanos. Máquinas que podem fugir ao controle. Ou andróides – robôs humanóides – que se passam por humanos e cometem crimes (vejam o clássico “Blade Runner”, 1982, de Ridley Scott, baseado no livro de Philip Dick, “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, 1968). O ser humano cria os robôs – e os robôs se rebelam, querem o poder, fazem a 'revolução' – ver o filme “Exterminador do Futuro” (Terminator, 1984, de James Cameron ) onde ciborgues (robôs metálicos com forma e pele humanas) são caçadores de humanos resistentes.

Ou, num estilo mais psicológico, ou drama, o robô-menino de Inteligência Artificial (A. I. – Artificial Inteligence, 2001) de Kubrick e Spielberg, baseado na obra de Brian Aldiss, “Supertoys Last All Summer Long”, de 1969, onde o robô 'acredita' ser mesmo um menino e quando descobre ser uma máquina, tal um Pinóquio (ver a obra Pinocchio, 1883, do italiano Carlo Collodi) vai em busca da Fada Azul, para que ela o transforme em criança de carne e osso.

Isaac Asimov considera “Frankenstein” um precursor da Science-Fiction – junto com a obra de Jules Verne, “A Viagem à Lua” (1865 ) - mas Asimov não comenta outro livro de Mary Shelley, “The Last Man” (1826 ) sobre uma epidemia no século XXI.


Frankenstein e o cinema

Existem várias adaptações da obra de Mary Shelley para o cinema, ao longo do século 20, mas nenhum 'resgata' plenamente o livro, dão mais ênfase aos momentos de terror, não consideravam o fundo psicológico – mais explicitado nas cartas – e por tanto podemos dizer que são apenas 'inspirados' no romance Frankenstein.

A primeira é de 1910, uma filmagem primordial feita por Thomas Edison, depois, em 1931, outra versão mais de terror, que destacou Boris Karloff como protagonista. Seguiram-se outros filmes menos expressivos e até mais para o tom cômico.

Em 1994 foi a vez da versão de Kenneth Branagh, “Mary Shelley's Frankenstein” que procurou ser mais 'fiel' que os demais, contudo ainda não segue plenamente o enredo do romance.


Frankenstein e HQ

Um link para a revista em quadrinhos de Bernie Wrightsons. Imagens góticas para um ícone da literatura gótica de terror.

http://www.johncoulthart.com/feuilleton/2008/09/14/bernie-wrightsons-frankenstein/




set & nov/10
.
.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

sobre FRANKENSTEIN (mary shelley) (2:3)




Sobre “Frankenstein” (1818)
de Mary Shelley (1797-1851)

Literatura de terror
(horror fiction)


Frankenstein
Contos de E A Poe
Dracula


O terror do que foge ao controle: a criatura contra o criador


P2

Criador e Criatura

O texto primordial de Mary Shelley iniciava-se aqui – no capítulo V, no definitivo – com uma descrição ultra-romântica da noite sombria na qual foi gerada a criatura.

“Foi numa medonha noite de novembro que eu observei o resultado de meus esforços. Com uma ansiedade que era quase agonia, eu reuni os instrumentos de vida ao meu redor, que eu devia infundir uma faísca de existência naquela coisa sem-vida que jazia aos meus pés.” (“It was on a dreary night of November that I beheld the accomplishment of my toils. With an anxiety that almost amounted to agony, I collected the instruments of life around me, that I might infuse a spark of being into the lifeless thing that lay at my feet.” c. V)

Victor Frankenstein, assim, pretende infundir uma 'faísca de vida' na coisa não-viva. O método exato ele evita descrever – não deseja que a tragédia se repita! - mas o cinema mostra o uso do raio (há sempre uma terrível tempestade para assustar !) para o papel de 'faísca de vida'. De qualquer modo, a 'coisa' é animada, mas nada há de beleza no ser recriado de membros humanos.

“Eu tinha trabalhado pesado por quase dois anos, com o único propósito de infundir vida num corpo inanimado. E assim me privei de descanso e saúde. Tinha desejado isso com tal ardor que supera a moderação; mas agora que eu tinha terminado, a beleza do sonho se perdera, e um horror de perder o fôlego e todo um desgosto me enchiam o coração.” (“I had worked hard for nearly two years, for the sole purpose of infusing life into an inanimate body. For this I had deprived myself of rest and health. I had desired it with an ardour that far exceeded moderation; but now that I had finished, the beauty of the dream vanished, and breathless horror and disgust filled my heart.” c. V)

Temos – somos jogados – no ápice do terror: a criatura é reanimada, é um monstro miserável, nada tem daquela 'nova espécie' de seres venturosos que Victor desejava. O criador vê-se diante da criatura e nada faz além de fugir! Fugir do “cadáver demoníaco ao qual eu dera vida tão miseravelmente.” (“the daemoniacal corpse to which I had so miserably given life.”)

O terror de Victor Frankenstein vem da decepção com a feiúra, a desproporção infernal do monstro. Ao contrário de resolver o problema que criou, o cientista simplesmente resolve fugir! (Assim os cientistas hoje: criam uma bomba mortífera e fogem da responsabilidade, deixando tudo na mão de políticos e militares! Vide o Projeto Manhattan, durante a Segunda Guerra Mundial.)

O jovem Dr. Frankenstein é uma espécie de cientista-mago, um Fausto, que desperta forças, mas é incapaz de controlá-las. Tudo o que vem depois será consequência funesta desta ambição frustrada: a criatura volta-se contra o criador. Quando Victor volta ao quarto – após reencontrar o amigo Clerval, vindo da Suiça – o jovem cientista não vêm nem sinal do 'monstro'. Sente imediato um alívio – sem pensar que não se livrará tão fácil da 'criatura'...! o amigo percebe o quanto o jovem estudante está transtornado, em terível estado de nervosismo. E desmaia diante do recém-chegado.

Lembramos que a narração é em 1ª pessoa, e pouco é realmente explicado – o leitor precisa imaginar além do que é relatado. (Assim é nos contos de Edgar Allan Poe, na novela de Henry James - “The Turn of the Screw” - no “Dracula” de Bram Stoker.)(2) E a crise nervosa de Victor dura muitos meses. E por onde andará a criatura? Só saberemos quando o próprio monstro de Frankenstein narra o próprio drama (capítulos XI a XVI, quando o monstro exige do criador uma outra criatura, uma fêmea, para fazer-lhe companhia.)

Ao recuperar a consciência, Victor lê as cartas que recebeu de Elizabeth, e do próprio pai, que relata então a tragédia que se abate sobre a família Frankenstein. Começa a vingança do monstro. Temos uma construção narrativa que articula cartas, diários, testemunhos, numa técnica encontrada também em “Dracula”. Na perseguição, que Victor inicia para 'punir' o monstro, temos trechos de poemas de Coleridge, Wordsworth, onde o estilo romântico é mais evidente. Não há citação de poetas alemães – o que é estranho, visto o idioma de Victor ser o alemão. Mas é Walton quem escreve, e o capitão é um britânico.

Depois do fracasso com a experiência – reanimar um monstro, uma 'colcha de retalhos' feita de membros de cadáveres – o Dr. Frankenstein toma nojo de laboratórios científicos, e até muda de gabinete. Todos elogiam os 'progressos científicos' de Victor – pois desconhecem a criatura que anda à solta... A reserva depressiva do jovem Dr. É vista como 'modéstia' – não sabem eles até onde o talento do jovem pôde levá-lo rumo à demência...!

“Desde a noite fatal, o fim de meus esforços, e o começo de minhas desventuras, eu tinha sentido uma violenta antipatia mesmo ao nome ciências naturais. Quando, por outro lado, mesmo tendo restaurado a saúde, a visão de um instrumento de química poderia renovar toda a agonia de meus sintomas nervosos.” (“Ever since the fatal night, the end of my labours, and the beginning of my misfortunes, I had conceived a violent antipathy even to the name of natural philosophy. When I was otherwise quite restored to health, the sight of a chemical instrument would renew all the agony of my nervous symptoms.” c. VI)


Enquanto isso, o amigo Clerval não se interessa por 'ciências naturais', mas dedica-se à literatura, às línguas orientais. (Que passam a distrair o curioso Victor, agora ocupado com idiomas persa, árabe, sânscrito...) Clerval quer seguir carreira no Oriente Médio (onde sabemos que ocorre toda uma expansão do imperialismo britânico na Índia, Birmânia, Cingapura...)

Lembrar que o 'orientalismo' – o lado exótico, pelo menos – está presente nas obras de artistas da época – e na aspiração de alguns filósofos decepcionados com o 'Ocidente' – está presente nas obras do romântico Lord Byron, as 'oriental tales'The Corsair, Sardanapalus, etc – o quanto a melancolia e resignação oriental difere das épicas gregas e romanas.

Depois da carta do pai, ao anunciar a tragédia, o jovem irmão William encontrado estrangulado, “a marca do dedo do assassino era nítida no pescoço” do irmão – Victor segue para Genebra com toda uma angústia: por que seu irmão foi cruelmente assassinado? Victor volta e ncontra uma enlutada casa familiar. As descrições da antureza estão carregadas de sentimentos,

“Minha viagem foi bem melancólica. Primeiro, queria me apressar, pois ansiava por consolar e solidarizar-me com os meus amados amigos que sofriam; mas quando cheguei perto de minha cidade natal, eu diminui o meu avanço. Eu dificilmente poderia aguentar a quantidade de sentimentos que me povoavam a mente.”( “My journey was very melancholy. At first I wished to hurry on, for I longed to console and sympathise with my loved and sorrowing friends; but when I drew near my native town, I slackened my progress. I could hardly sustain the multitude of feelings that crowded into my mind. [...])


Victor atravessa cenários que assistiram aos momentos de sua infância feliz, e a placidez da natureza mostra, para os inquietos sentimentos dele, um ar de zombaria,

“Chorava tal uma criança. 'Queridos montes! Meu belíssimo lago! Como vós recebeis o vosso andarilho? Vossos cumes tão claros; o céu e o lago tão azuis e calmos. Estão a preanunciar a paz, ou zombam de minha desventura?” (“I wept like a child. "Dear mountains! my own beautiful lake! how do you welcome your wanderer? Your summits are clear; the sky and lake are blue and placid. Is this to prognosticate peace, or to mock at my unhappiness?"” c. VII)

Assim é o sujeito romântico – as forças (e as 'faces') da Natureza, das paisagens, se mostram de acorod com o humor, a emoção de quem vê e sente. Não há algo lá fora que não seja 'filtrado' pela sensibilidade. Há quase uma 'personificação' do mundo natural, como se 'voluntariamente' atentasse contra a presença humana. Assim as forças da natureza se manifestam diante do luto de Victor – e ele se sente pessoalmente atingido, até ofendido!

A dor em consonância com o 'estado de ânimo' – já vimos algo semelhante em duas peças de Shakespeare – as cenas de tempestade em “King Lear” e “The Tempest” - pois é na tempestade que Victor vê, finalmente, o vulto da criatura. Mas é inútil tentar perseguir o monstro.

“Um clarão de relâmpago iluminou a coisa, e descobri plenamente sua forma; de gigantesca estatura, e a deformidade de seu aspecto o mais hediodo que havia no ser humano, instantaneamente informou-me que era o miserável ser, o demônio imundo, ao qual eu dera vida. O que ele fazia lá? Poderia ele ser (então me arrepiei só em pensar) o assassino do meu irmão? Tão logo a ideia cruzou a minha mente, fiquei convicto da verdade disso; meus dentes rangeram, e me segurei numa árvore para não cair. O vulto passou rapidamente, e acabi por perdê-lo no escuro.”

(“A flash of lightning illuminated the object, and discovered its shape plainly to me; its gigantic stature, and the deformity of its aspect more hideous than belongs to humanity, instantly informed me that it was the wretch, the filthy daemon, to whom I had given life. What did he there? Could he be (I shuddered at the conception) the murderer of my brother? No sooner did that idea cross my imagination, than I became convinced of its truth; my teeth chattered, and I was forced to lean against a tree for support. The figure passed me quickly, and I lost it in the gloom.” c. VII)


O terror dentro do terror: Victor relembra as cenas que presenciamos no capítulo V: a criação do monstro. O que acontecera há quase dois anos... “Passaram-se quase dois anos desde a noite na qual ele recebeu a vida; era este o seu primeiro crime? Ai! Eu tinha solto no mundo um miserável ser depravado, cujo o prazer era o massacre e a miséria; não tinha ele matado o meu irmão?” (“Two years had now nearly elapsed since the night on which he first received life; and was this his first crime? Alas! I had turned loose into the world a depraved wretch, whose delight was in carnage and misery; had he not murdered my brother?”)

Ao chegar em casa, Victor já tem a alma pesarosa, uma vez que indiiretamente ele causara a morte cruel do irmão. Mas nada revela – no mínimo seria considerado louco. “Eu bem sabia que se um outro qualquer tivesse comunicado tal fato para mim, eu o teria visto como se fosse os delírios da loucura.” (“I well knew that if any other had communicated such a relation to me, I should have looked upon it as the ravings of insanity.”)

Agora sabemos quanto tempo Victor ficou longe da família – seis anos. E volta para compartilhar a tragédia. E descobre que uma das criadas á acusada de ser a assassina! A moça é levada à julgamento. Outra vítima da criatura de Victor! Como ele poderá livrar e inocentar a moça?

Também Elizabeth espera que seja provada a inocência da criada Justine. Afinal, seria uma inocente destruída após a morte de outro inocente! Mas como poderá Victor inocentar a criada sem que ele passe por um lunático. A empregada tenta se defender, mas toda a desventura deixou-a deveras perturbada. E Victor nada pode fazer, a não ser engolir os remorsos. A criada é condenada.

O desespero de Victor é ao estilo byroniano – veja-se os sofirmentos morais de 'Manfred' e 'Cain' – com a colheita de lágrimas que ele oferta aos parentes – 'chorem, derramem incontáveis lágrimas' (“you weep, to shed countless tears” ). Então o terror se precipita – o destino é inexorável, é implacável – eis o leitmotiv da tragédia grega. Victor visava o bem e a utilidade – mas acabou por criar a crueldade e a monstruosidade. O próprio Victor torna-se uma figura pouco humana, um misantropo. A mágoa de Victor já é considerada excessiva até pelos familiares. “Solidão era o meu único consolo – profunda, sombria e fatal solidão.” (“solitude was my only consolation – deep, dark, deathlike solitude.”)

Victor vive em constante temor, ao pressentir a vingança do monstro por ele criado. Qualquer um dos seus parentes pode ser a próxima vítima. Inclusive a amada Elizabeth! O luto encobre o lar da família Frankenstein, a afetar a delicada Elizabeth, a moça que acreditava na bondade. Agora elea sabe o que é crueldade e injustiça. (Temos a fala de Elizabeth dentro da narrativa de Victor – as palavras são fruto das interpretações dele, ao lembrar-se do drama.) O estilo da Autora se mostra nos momentos mais dramáticos com toda uma penumbra byroniana, onde Victor Frankenstein confessa-se ao Narrador Walton (que escreve para a irmã, a Sra. Saville),

“Às vezes, eu podia lidar com o soturno desespero que me esmagava, mas às vezes as paixões em redemoinho em minha alma levavam-me a procurar, por esforço físico ou mudança de lugar, algum alívio para as intoleráveis emoções.” (“Sometimes I could cope with the sullen despair that overwhelmed me, but sometimes the whirlwind passions of my soul drove me to seek, by bodily exercise and by change of place, some relief from my intolerable sensations.” c. IX)

As paisagens descritas romanticamente são aquelas dignas de um Caspar David, pintor alemão, a representar ravinas, picos alpinos, luares lúgubres, cemitérios cobertos de neve.
.
images & bio
de Caspar David Friedrich
http://en.wikipedia.org/wiki/Caspar_David_Friedrich
.


A cena toda – entre c. IX e X – é aquela de Manfred, da obra de Byron, o homem diante da imponência da Natureza. Victor exclama para as imensidões – e só consegue atrair a arenção da criatura, que se aproxima. E diante da fúria vingativa de Victor, o monstro ousa argumentação, “Eu esperava tal recepção; todos os homens odeiam aquele que é miserável; então, como devo ser odiado, eu o mais miserável dos seres vivos!” ("I expected this reception," said the daemon. "All men hate the wretched; how, then, must I be hated, who am miserable beyond all living things!" c. X)

A criatura quer ser ouvida pelo próprio criador! O monstro que até sabe se expressar humanamente! (Lembrar que somos o leitor debruçado sobre a carta que a Sra Saville lê extasiada, onde Walton narras as palavras de Victor que reproduz – com que exatidão? - a fala da criatura!) E a criatura desafia o Criador, ao lembrar que é mais forte e imponente. Aqui a criatura é uma espécie de Lúcifer, e também de Adão, e – por que não? – de Caim. Assim faz sentido a citação de Paradise Lost, de Milton, na abertura do romance.

“Lembre-se que sou tua criatura; deveria ser teu Adão, mas seria mais o anjo caído, que tu expulsaste do júbilo por crime algum. Em todo lugar eu vejo alegria, da qual estou irrevogavelmente excluído. Eu era benevolente e bondoso; a miséria fez de mim um demônio. Faça-me feliz, e eu serei virtuoso.” (“Remember that I am thy creature; I ought to be thy Adam, but I am rather the fallen angel, whom thou drivest from joy for no misdeed. Everywhere I see bliss, from which I alone am irrevocably excluded. I was benevolent and good; misery made me a fiend. Make me happy, and I shall again be virtuous." c. X)

Eis a condição da criatura – ele é o 'bom selvagem' que, devido a desproporção do corpo, a feiúra e monstruosidade, foi excluída do convívio humano, foi pervertido e tornou-se cruel. Ele volta ao criador – Victor Frankenstein – na esperança de ser regenerado, ou que o Dr. Faça uma companheira, para aliviar o tormento da solidão.

Nos capítulos XI a XVI temos a fala do próprio monstro – a narrativa do monstro dentro da narrativa de Victor dentro da narrativa de Walton sendo lida pela Sra. Saville (ou por nós, leitores). A 'fala do monstro' é uma clara re-elaboração da narrativa da 'criatura'. O estilo é o mesmo dos demais capítulos – ou antes, é o estilo das cartas de Walton (e não o de Victor, ou do monstro), uma marca do estilo autoral – que não varia de acordo com a personagem.

A criatura declara ao criador as vicissitudes, a aprendizagem da dor e do infortúnio, da monstruosidade e da exclusão. Quase sentimos compaixão pelo monstro, que, no entanto, é sempre sombrio. O monstro não foi criado 'mal' – é este um exemplo de 'bom selvagem' (sempre segundo Rousseau). Mas ao ser temido – e excluído – é gradativamente transmutado em monstro por fora e por dentro – passa a odiar.

Tal um menino de rua, tal um jovem de favela, sofre a violência do meio social (das outras pessoas, da autoridades, etc) e responde com mais violência, assim a criatura desenvolve, em solidão e misantropia, a crueldade que resulta em vinagança contra o criador.


Estamos no ápice do Romance. Agora o leitor ouse descer a colina, e seguir a decadência de Victor Frankenstein, que precisa decidir se vai se livrar do monstro, fazendo para este uma 'companheira', ou desafiar a fúria da monstruosa criatura, que pode lhe arrebatar o amor e a ventura.

.

continua...



.
.
notas

(2)Comparemos o efeito da estrutura narrativa em 'Frankenstein' e nos contos de terror do autor Poe.

Enquanto um dos 'defeitos' de Frankenstein é a extensão, a ausência de um 'clímax' central (há vários episódios de terror de modo difuso), os contos de Poe são consideravelmente curtos, concentrados, matematicamente concebidos para gerarem um terror como um efeito do 'ápice' da narrativa – o crime, a crise, o destino final do narrador-personagem.

Dizemos 'narrador-personagem', pois narrando em 1ª pessoa, há uma personagem que vivencia o terror que é narrado, está ali como testemunha do 'sinistro'. Em Frankenstein temos as cartas enviadas pelo explorador Robert Walton. Tais cartas trazem a 'voz' de Walton narrando a 'voz' de Dr. Frankenstein que, por sua vez, narra a 'voz' da criatura-monstro (que acabou sendo conhecida pelo nome do criador!)

Em comparação, nos contos de Edgar Allan Poe, há geralmente um narrador não-nomeado, um tanto confuso, que narra casos confusos – deixando o leitor numa fronteira ambígua entre a realidade e loucura – pois o terror se delineia no próprio ato de narrar – o narrador mesmo não onisciente, tem dúvidas, hesita, se contradiz...

O mesmo podemos dizer sobre a narradora-personagem de “The Turn of the Screw” (de Henry James) que precisa defender as crianças inocentes, mas não sabe se as crianças são mesmo tão inocnetes. Não há uma fornteira clara entre o delírio e a realidade – a narradora não tem certeza, então o leitor muito menos.

Em Dracula (1897) as cartas de Jonathan Harker, de Mina Murray (depois Mina Harker), de Lucy Westenra , além do diário do Dr. Seward, apresentam os pontos de vista de várias personagens – são diversas perspectivas – e é o leitor quem deve tentar uma 'totalização' – o que realmente aconteceu?
.
.

sábado, 20 de novembro de 2010

sobre Frankenstein - de Mary Shelley (1:3)




Sobre “Frankenstein” (1818)
de Mary Shelley (1797-1851)
.

Literatura de terror
(horror fiction)
.

Frankenstein
Contos de E A Poe
Dracula


O terror do que foge ao controle: a criatura contra o criador


O romance de Mary Shelley tem o subtítulo de 'Frankenstein ou o moderno Prometeus'. Lembramos que Prometeus é aquele Titã que desafiou os deuses – ao roubar o fogo e entregar como dádiva aos humanos - e sofreu por isso um castigo divino. Aqui o Prometeus é o cientista. O criador que cedeu o nome à criatura – tanto que Frankenstein passou a nomear o monstro.

Na relação criador – criatura há uma correlação mestre – escravo (interessante temática nos pensamentos de Hegel e Nietzsche) onde o principal é o controle, o domínio. Até que ponto o criador controla a própria criatura? Até que ponto há livre-arbítrio? Fora de controle a criatura pode significar ameaça, pode semear o medo.

O criador depara-se com a ameaça de um ser que é obra de suas próprias mãos, o ser que não mais obedece, mas passa a amaeaçar e ocasionalmente destruir o bem-estar do autor da vida. Assim o Onipontente Deus judaico-cristão se percebeu diante do desafio de Lúcifer – transmutado em Satanás – tal como vemos na obra Paradise Lost, de John Milton.

Do descontrole, do indomesticado, surge o Terror: o Unheimlich, o não-domesticado, o sinistro, o estranho – que já encontramos no ensaio de Freud, inspirado no conto Der Sandmann (O Homem de Areia) de E. T. A. Hoffmann (veja o ensaio no link http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/11/sobre-der-sandmann-o-homem-de-areia-de.html) O 'sinistro' se apresenta como o medo ancestral do ser humano: o leitor recebe aquele medo que já tem dentro de si-mesmo.


Se Mary Shelley 'inventou' o monstro de Frankenstein – ou, possivelmente, teve uma inspiração no Golem judaico – o escocês Bram Stoker foi influenciado por uma série de contos folclóricos sobre 'revenants' do leste/ sudeste europeu, de tradição eslava (sérvia), e norte-germânica, onde mortos-vivos (undead) levantavam-se de seus túmulos para sugarem sangue de suas vítimas.

[Quanto ao lobisomem (werewolf) este não é 'cadáver', mas um ser humano vivo, um 7º filho que transmuta-se em quase-lobo – sem que ele mesmo tenha consciência disso, ou qualquer vontade. Trata-se, antes, de uma maldição.]

O golem é uma criatura, um ser humano artificial, criado por efeito de magia cabalística, que deve servir ao mago que o encantou. Mas o golem pode fugir ao controle, pode causar tragédias – até contra quem o invocou. (1)


Planos narrativos

A Autora Mary Shelley cria um Narrador que escreve cartas para a irmã. Este Narrador ouve do Dr. Frankenstein a estranha narrativa, que inclui também palavras do próprio monstro de Frankenstein. A Sra. Saville, na Inglaterra, é quem recebe as cartas do irmão Robert Walton, obcecado por expedições. Aqui, ela está na posição do Leitor. A Sra. Saville lê as cartas de Walton, que relata o drama do Dr, que relata o drama do monstro – uma narrativa dentro da outra.


Devido a obsessão do capitão Walton, de se aventurar numa expedição rumo ao Pólo Norte, temos um entrosamento de narrativas de expedições e de novelas góticas, com romances epistolares. Afinal, Mary Shelley lia autores como Defoe e Swift, além de Samuel Richardson (o autor de três romances epistolares), que apresentavam narradores em primeira pessoa, geralmente em cartas e/ou diários. No mais, as expedições são uma temática envolvente desde as Grandes Navegações dos séculos 15 ao 17, assim o provam Robinson Crusoé e Gulliver. No século 19 será vez de Jules Verne investir no estilo com os clássicos “Aventuras do Capitão Hatteras”, “Um Capitão de Quinze anos”, “Vinte mil Léguas Submarinas”, “O Farol do Fim do Mundo”, dentre outros.


As três primeiras cartas de Robert Walton apenas descrevem a expedição rumo ao Pólo Norte, enquanto a carta 4 esboça a descrição de uma imensa figura humana num trenó, e a aparição de outro homem, um europeu, vê-se claramente, e que é resgatado no navio. É justamente o Dr. Frankenstein.

A primeira coisa que o Narrador Walton nota em Victor Frankenstein é uma certa expressão selvagem no olhar, que desaparece em momentos de melancolia, até benevolência,

“seus olhos têm geralmente um expressão selvagem, e até de loucura, mas há momentos quando, se alguém é gentil com ele no serviço mais banal, sua fisionomia se ilumina, e com um um brilho de benevolência e doçura que nunca vi antes. Mas ele é geralmente melancólico e desesperado, e às vezes a ranger os dentes, como se impaciente com todo o peso de aflições que o oprimem.”

(“his eyes have generally an expression of wildness, and even madness, but there are moments when, if anyone performs an act of kindness towards him or does him the most trifling service, his whole countenance is lighted up, as it were, with a beam of benevolence and sweetness that I never saw equalled. But he is generally melancholy and despairing, and sometimes he gnashes his teeth, as if impatient of the weight of woes that oppresses him.” Letter 4)


Mas geralmente mostra-se melancólico e em desespero, de modo impaciente. Mas o Capitão se pergunta – o que faz o Dr. Em tal remota paisafem gélida? O doente diz que perseguia alguém – no meio das placas de gelo! Alguém que ele chama – horrizado - de 'demônio'.

A carta 4 passa a receber trechos do 'diário de bordo'. O aventureiro ártico relata o quando se afeiçoa ao novo passageiro, o 'hóspede'. O capitão (o Narrador) acredita ter encontrado um amigo naquele oceano tão vasto – eis porque ele presta tanta atenção ao 'hóspede', eis porque a narrativa é tão rica em detalhes. Caso não surgisse 'empatia' entre Walton e Frankenstein não haveria revelações, e assim, nenhuma narrativa. Assim nem Margareth (a Sra. Saville) nem nós, os leitores – de nada saberíamos.

Há algo de 'byroniano' no arruinado e infeliz Victor Frankenstein, segundo o olhar de Walton, afinal o hóspede é gentil, sábio, erudito, eloquente, mas um ser desolado, sombrio, melancólico, vingativo. Inspira temor, não desprezo. (No mais, tanto Victor quanto o monstro são igualmente 'byronianos', como veremos)

Igual a Victor, o aventureiro é um fanático da 'descoberta', ir aonde ninguém foi – o Pólo Norte. O Dr. Queria 'criar a vida', enquanto o capitão Walton quer desbravar o mundo. Ser um Colombo, um Fernão de Magalhães, um Cook, um Peary, um Scott, um Amudsen! Ambos são fanáticos do Conhecimento (knowledge) na época cientificista pós-Iluminismo, pós-Enciclopedismo. (O homem de ciência, o Cientista, enquanto Explorador, Aventureiro – eis a imagem na Science Fiction. Tema para ensaios futuros.)

Por isso há tanta 'afinidade' entre Walton e Frankenstein. Ambos lutam pela Ciência – e sofrem. “Você compartilha a minha loucura?” (“Do you share my madness?”) exclama Victor. Ele que é 'escravo de paixões', vive sob uma 'sombria tirania do desespero', ele se comove diante do jovem aventureiro – afinal ainda há esperanças, enquanto Victor já perdeu tudo...

“Você tem esperança e o mundo diante de você, e tem motivo algum para desespero. Mas eu – eu já perdi tudo e não posso começar a vida de novo.” (“You have hope, and the world before you, and have no cause for despair. But I – I have lost everything and cannot begin life anew.” Letter 4)
.
Mesmo miserável, Victor admira as belezas da Natureza. Tal o prisioneiro de Chillon, no poema de Byron. O homem romântico que se eleva acima das aflições terrenas. Para Walton, Victor está elevando-se acima dos outros homens, é um 'divino peregrino' (“divine wanderer”), é um 'homem magnífico', está 'imensuravelmente acima de outras pessoas'.

Assim, é para Walton que Victor decide narrar seu drama – o qual ele pretendia sepultar consigo, memórias que deviam morrer com ele. O Dr. entende que Walton é um 'irmão' na procura pelo conhecimento e sabedoria (“You seek for knowledge and wisdom, as I once did”) A narrativa de Victor é mais fruto da curiosidade de Walton que da necessidade de desabafo do Dr., o nosso 'prometeus moderno'.


“Ouça a minha estória e você perceberá o quão irrevogavelmente é determinada” (“listen to my history, and you will perceive how irrevocably it is determined”) É esta narrativa que causará arrepios, tem pausas, ápices, silêncios. Assim a narrativa de Victor chega até Margareth Saville – e nós, os leitores – através das anotações de Walton, que não é um Narrador-onisciente. (Aqui muito se assemelha ao amigo de Auguste Dupin, o detetive de Poe, e/ou o 'caro Watson', amigo de Sherlock Holmes – alguém próximo ao protagonista, e que decide narrar a estória)

Sabemos que Victor vem de uma família burguesa de Genebra, na Suiça. Aliás, local onde a obra foi idealizada e escrita, quando lá estavam o casal Shelley, Lord Byron e Polidori, em 1816/17. os pais de Victor buscavam o clima ameno da Itália, assim Victor nasceu em Nápolis, sempre cercado de cuidados e carinhos. No norte da Itália – onde também moraram os Shelley – a mãe de Victor adota uma menina que é filha de nobres italianos patriotas (na época, os italianos lutavam contra o poderio austríaco) – é a menina Elizabeth.

O terror surgirá mais visível só no ápice do romance, o leitor precisa antes conhecer o conforto e a ventura de Victor em sua infância - “nenhum ser humano poderia ter passado uma infância mais feliz que a minha” (“no human being could have passed a happier childhood than myself” cap. I) – e assim o contraste é explícito entre a felicidade e a desventura. Ele tinha tudo para ser feliz – até que desafiou a 'normalidade' com sua obsessão. O idílio da infância, os estudos da juventude – tudo isso destruído pela ambição do saber, ao criar a 'criatura'.

Se Elizabeth é idealista e poética – Victor é investigativo, analítico. Elizabeth é romântica, Victor é científico. Victor que evita multidões, e prefere algumas poucas pessoas afetuosas co redor (prefere qualidade, do que quantidade) O amigo de Victor é Henry Clerval, um leitor-escritor, filho de comerciante, de talento e fantasia (“singular talent and fancy”) O talento de Victor não se volta para as 'humanidades' (linguística, política, etc) mas para as ciências da terra e do céu (química, física, biologia), as chamadas 'ciências naturais' (natural philosophy)


Enquanto Victor estuda física e biologia (as ciências naturais, natural philosophy), o amigo Clerval preocupa-se com o aspecto moral ('moral relations of things') e as vicissitudes históricas, o teatro da vida ('stage of life'). E sobre ambos age a bondade e simpatia da menina Elizabeth.

Ao chegar a faculdade, Victor descobre que as filosofias dos alquimistas (entre eles Cornelius Agrippa (1486-1535), erudito, meio-mago, meio-cientista) já foram superadas diante do moderno sistema científico ('modern system of science'), mas Victor não aceita tão facilmente que seus 'mestres' tenham sido ultrapassados. Assim continua ler os alquimistas Albertus Magnus (1193?-1280), Paracelsus (1493-1541) e Agrippa, pois julga encontrar nestes os 'segredos da natureza'. Os alquimistas têm toda uma 'certeza' que os cientistas modernos ignoram ('the most learned philosopher knew little more')

Victor sabe o quanto o século 18, o século das Luzes, despreza os alquimistas, que buscavam a 'pedra filosofal' e o 'elixir da longa vida'. Tentavam explicar mais o macrocosmo, pretendiam uma maior cosmovisão – daí o caráter religioso de tais escritos. E Victor é ambicioso – quer acabar com as doenças da humanidade! Mistura experiências com alquimia, teorias e sistemas, com o fervor imaginativo!

O jovem cientista observa uma tempestade e presencia o grande poder da eletricidade – o raio. (Que também atraía a inteligência de Benjamin Franklin , no século 18, nos EUA.) Sem dúvida, os novos estudos eclipsam os mestres alquimistas. Victor troca a 'natural philosophy' pela 'natural history' e estuda matemática e métodos empiristas.

Mas, apesar de toda ciência, Victor crê mesmo é no destino. Sua grande inteligência será o seu sucesso e a sua derrota. É narrada a doença de Elizabeth, que enfim é curada, mas acaba por contaminar a mãe de Victor, enquanto ela servia como enfermeira da mocinha. Assim é a morte da mãe, que é substituída pela amável Elizabeth, que cuida dos demais jovens. Victor deve partir para Ingolstadt (Áustria) onde seguirá os estudos superiores. Em vão, o amigo Clerval tenta acompanhá-lo, pois o pai comerciante deseja manter o filho junto ao trabalho.

Victor tem dificuldade em fazer amigos – ele tão acostumado ao afeto dos familiares. Mas tudo é animado pelo desejo de conhecer (“I ardently desired the acquisiton of knowledge”, cap. III) Os professore desprezam o conhecimento superados dos alquimistas – afinal julgam viver numa era científica e iluminada (era de luz e ciência, “this enlightened and scientific age”) Mas Victor continua fascinado pelos 'forgotten alchemists' - o que leva a obra para o reino do sobrenatural mais do que no âmbito da 'ciência natural' – afinal “Frankenstein” é mais 'terror' do que 'science fiction'.

Sim, é uma obra de terror, onde o cientista é carrasco e vítima – assim é na Science Fiction do século 20. As semelhanças são limitadas. O terror transita entre a superstição e o científico – não se fixando em nenhum dos pólos... O objetivo da Ciência natural era 'trocar quimeras de grandeza infinda por realidades modestas' (“to exchange chimeras of boundless grandeur for realities of little worth”) Mas o cientista é visto enquanto explorador, a descobrir os íntimos poderes da Natureza, o interior dos corpos e as dimensões do globo e da atmosfera.

Não se admira que Victor se extasia em ambição de semelhante poder, “Eu seria pioneiro numa nova trilha, a explorar poderes desconhecidos, e desvelar para o mundo os profundos mistérios da criação” (“I will pioneer a new way, explore unknown powers, and unfold to the world the deepest mysteries of creation.” c. III) Neste desejo de poder sobre o macrocosmo, a ciência moderna deve muito aos alquimistas, dos quais os químicos modernos repetiram experiências e renomearam elementos descobertos. E um químico não deve saber apenas Química, nem apenas experimentalismos em laboratórios, mas também outras ciências, e matemática.

Victor é fascinado pelo corpo humano, a estrutura e as funções, o modo de ação da força vital – mas para entender a vida, ele precisa estudar a morte, dissecar cadáveres! “Para examinar as causas da vida, precisamos primeiramente recorrer à morte” (“To examine the causes of life, we must first have recourse to death.” c. IV) Fanático, Victor torna-se um anatomista desvairado, totalmente indiferente aos terrores sobrenaturais ('supernatural horrors'), afinal, ele não tem qualquer sensibilidade romântica. Ridiculariza espíritos, escuridão, cemitérios. Aliás, cemitério não passa de 'depósito de corpos sem vida' onde le via a decomosição da morte suceder a face florescente da vida' (“I beheld the corruption of death succeed to the blooming cheek of life” c. IV)

A loucura de Victor é justamente desafiar a morte – mas alerta agora, que é o Narrador, “lembre-se, não estou recordando a visão de um louco” (“remember, I am not recording the vision of a madman.”) Simplesmente que Victor julga-se capaz de reanimar a matéria sem vida! “Eu me tornei capaz de conceder ânimo à uma matéria sem-vida” (“I became myself capable of bestowing animation upon lifeless matter”) Enquanto leitor, é o primeiro arrepio que sentimos! Ressuscitar os mortos?, trata-se de uma loucura do jovem cientista? Mas jamais Victor revelará o segredo! Não deseja propagar o terror de corpos ressurrectos! A narrativa de Victor tem algo de moralista: ' não repita a minha obsessão!'

“Aprenda comigo, se não pelo que eu digo, ao menos pelo meu exemplo, quão perigoso é adquirir o conhecimento e quão mais feliz é aquele homem que acredita que sua cidade natal é o mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior que a sua própria natureza permite.” (“Learn from me, if not by my precepts, at least by my example, how dangerous is the acquirement of knowledge and how much happier that man is who believes his native town to be the world, than he who aspires to become greater than his nature will allow.” c. IV)
.


Ou seja, nunca ousar desafiar as leis da Natureza! Nunca queira dar um passo maior do que as pernas! Empolgado com o 'seu poder', o Dr. Victor Frankenstein quer dar animação a um ser humano, um ser grandioso e complexo, “Foi com estes sentimentos que eu comecei a criação de um ser humano.” (“It was with these feelings that I began the creation of a human being.” c. IV) A ambição de Victor é até de muita 'boa intenção' – igual a de muitos 'reformadores do mundo' que na intenção de 'melhorar o mundo' acabam por causar tragédias, guerras e massacres.

“Vida e morte apareceram-me limites ideais, os quais eu deveria primeiro romper, e fazer jorrar uma torrente de luz no mundo de trevas. Uma nova espécie poderia abençoar-me enquanto origem e criador; naturezas mais felizes e perfeitas dependeriam de mim para existir.” (“Life and death appeared to me ideal bounds, which I should first break through, and pour a torrent of light into our dark world. A new species would bless me as its creator and source; many happy and excellent natures would owe their being to me.” c. IV)


Em seu trabalho em dissecação, nos necrotérios, Victor até esquece as belezas da Natureza, que tanto o fascinava antes. Tem atenção apenas no trabalho obsessivo. Era um fanático. “Meu olhos eram insensíveis para os encantos da natureza” (“my eyes were insensible to the charms of nature”) diz ele a Walton. Victor sabe agora – após tanto infortúnio – que um sábio, um cientista, deve ter a mente calma e sem perturbações, e a ciência não pode ser distúrbio. O pensamento de Frankenstein é, agora, clássico, e não romântico. O (ultra) romântico é justamente a tragédia resultante da 'hybris', o excesso, a mania de grandeza, ao desafiar a morte, ao reanimar corpos mortos!

A moral é clara: a ciência deve ser limitada. A ciência não deve perturbar afeições ou desejos humanos, caso contrário é criminosa. Todo este trecho do Romance foi escrito DEPOIS. A estória esboçada por Mary Shelley, em 1816, junto aos poetas Shelley e Lord Byron, além de Polidori, médico e escritor, começa no Capítulo V – onde Victor reanima a criatura. A Autora, portanto, ampliou a estória com todo um fundo moral, deicando em paralelo a obsessão do capitão Walton e do cientista Frankenstein.


link para o The Vampyre
de Polidori
http://www.gutenberg.org/files/6087/6087-h/6087-h.htm
.
.
continua...



.

.

notas



(1)Em 1682, Johann Schmidt, escreveu sobre os Golems, que “eles causavam grande dano à pessoa do mestre [quem criou]” (“thet inflict great damage upon the person of their master.” ) Também um artigo de Christoph Arnold, onde ele cita o Golem criado pelo Rabbi Eliyahu de Chelm, não mais famoso, no entanto, que o Golem de Praga (citado pelos irmãos Grimm, uma das leituras de Mary Shelley naquele 'ano sem verão' de 1816, em Geneva.)
.

“A mais famosa narrativa sobre Golem involve Judah Loew bem Bezalel, rabbi de Praga no final do século 16, também conhecido como o Maharal, que criou um golem para defender o ghetto de Praga dos ataques antisemitas, e pogroms. Dependendo da versão da lenda, os judeus em Praga deviam ser expulsos ou mortos por decreto de Rudolf II, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Para proteger a comunidade judaica, o rabbi fez um golem a partir do barro das margens do rio Vltava, e inspirou-lhe vida através de rituais e encantos cabalísticos. Quando o golem cresceu, ele tornou-se gradativamente mais violento, matando gentios e espalhando o terror.

[...]

O Imperador suplicou ao Rabbi Loew que destruisse o Golem, prometendo cessar a perseguição aos judeus. Para desativar o Golem, o rabbi removeu as primeiras letras da palavra 'emet' (verdade ou realidade) da testa da criatura, deixando a palavra hebraica 'met', que significa 'morto'.


Trad. LdeM

fonte: Wikipedia (english)

more info about Golem in
http://pt.wikipedia.org/wiki/Golem
http://en.wikipedia.org/wiki/Golem



Leonardo de Magalhaens



.

.

sábado, 13 de novembro de 2010

sobre "A Volta do Parafuso" - de Henry James







sobre “A Volta do Parafuso” (ou Os Inocentes)
(The Turn of the Screw, 1898)
do romancista norte-americano Henry James (1843-1916)

Quando o sinistro não pode ser comunicado


Temos na obra (escrita no final do século 19) de Henry James um exemplo de escrita ambígua – com narração em primeira pessoa, onde a Narradora é também Personagem, e descreve (ou ao menos se esforça) os acontecimentos que a impressionaram. É mais uma tentativa de recuperar um fato passsado – e ao mesmo tempo explicá-lo.

Assim, um século depois, a tradição da ambiguidade assustadora do 'sinistro', do não- domesticado (“Das Unheimliche”) mostra-se vívida, com as obras de Le Fanu (“Carmilla”), de Stoker (“Dracula”) e de Wilde (“Picture of Dorian Gray”), onde o fantástico causa horror justamente por estar demasiadamente perto, nas entrelinhas mais do que explicitado.

A Narradora-personagem enquanto escreve (é só Narradora) tenta re-organizar os acontecimentos – e ao lembrar, ainda tem arrepios. Ela se apercebia 'sugestionada' pelo local, com ares sombrios, justamente por haver lido sobre 'lugares sombrios'!,

“Eu tinha uma visão de castelo de romance habitado por gnomos rosados, de qualquer forma um lugar para entreter as ideias juvenis, que surgiam de livros de estórias e contos de fadas. Não seria mais o caso de eu haver adormecido e sonhado sobre um livro de estórias? Não; era uma grande, feia e antiga, porém confortável casa, incorporando uns poucos traços de uma construção ainda mais velha, meio-substituída, meio-reutilizada, na qual eu tinha a fantasia de estar como que quase perdida tal um punhado de passageiros numa grande navio à deriva. Bem, eu estava, por estranho que seja, ao leme!”

(“I had the view of a castle of romance inhabited by a rosy sprite, such a place as would somehow, for diversion of the young idea, take all color out of storybooks and fairy-tales. Wasn’t it just a storybook over which I had fallen a-doze and a-dream? No; it was a big, ugly, antique, but convenient house, embodying a few features of a building still older, half-replaced and half-utilized, in which I had the fancy of our being almost as lost as a handful of passengers in a great drifting ship. Well, I was, strangely, at the helm!” cap. I)

A narradora – que não se nomeia, nem é nomeada – assim despersonalizada, e anônima – tenta se adaptar ao novo emprego de governanta (professora particular, ou preceptora) numa grande propriedade rural de um ricaço londrino. Na casa em Bly (nome do local) ela sob a sua responsabilidade um casal de crianças singelas e inocentes – demasiadamente bem-comportadas, o esperto menino Miles e a bela menina Flora. Mas toda a placidez parece apenas uma calmaria antes da tempestade, ou a concentração de uma fera antes do golpe,

“Elas [as crianças] tinham o desabrochar da saúde e da felicidade; e ainda, como se eu fosse responsável por um par de pequenos soberanos, de príncipes de sangue nobre, para os quais tudo, para ser justo, deveria ser abrigado e protegido, da única forma que, em minha fantasia, no futuro eles pudessem ter algo daquele algo romântico na majestosa extensão do jardim e do parque. Seria, claro, sobretudo, isto que repentinamente irrompe num preâmbulo um encanto de calmaria – qual silêncio no qual algo se concentra ou arma um golpe. A mudança seria realmente tal qual o pulo de uma fera.”

(“They had the bloom of health and happiness; and yet, as if I had been in charge of a pair of little grandees, of princes of the blood, for whom everything, to be right, would have to be enclosed and protected, the only form that, in my fancy, the after-years could take for them was that of a romantic, a really royal extension of the garden and the park. It may be, of course, above all, that what suddenly broke into this gives the previous time a charm of stillness—
that hush in which something gathers or crouches. The change was actually like the spring of a beast.” Cap. III)

Entre o imaginado e o vivenciado, a narradora outrora andava tal uma Catherine Morland, num descompasso quase lunático, ao andar e imaginar-se num conto de fadas (“charming story”). Ao escrever, a narradora julga o seu eu-personagem de outrora, de como não percebia bem o que lhe acontecia – deveras insciente.

“Este, em todo o caso, era o momento: um momento assim tão repleto que, quando me recordo de como foi, lembra-me de todo o modo a que agora eu faça pequena distinção. O que me faz olhar para trás com estupefação é a situação que eu aceitava.” (“This, at all events, was for the time: a time so full that, as I recall the way it went, it reminds me of all the art I now need to make it a little distinct. What I look back at with amazement is the situation I accepted.” Cap. III)

Ao escrever, ao presentificar o vivenciado, sobrevem os calafrios,

“Finalmente, para mim, ao fazer meu relato de modo que nunca fiz antes, retorna todo aquele sentimento do momento. Era como se, enquanto eu adentrei – o que adentrava - todo o resto da cena tivesse sido golpeada pela morte. Eu posso ouvir novamente, enquanto escrevo, o silêncio intenso no qual gotejam os ruídos do entardecer.”

(“To me at least, making my statement here with a deliberation with which I have never made it, the whole feeling of the moment returns. It was as if, while I took in—what I did take in—all the rest of the scene had been stricken with death. I can hear again, as I write, the intense hush in which the sounds of evening dropped.” cap. III)


Lembra que ao escreve, ela faz um relato de algo do passado, que ela relembra no esforço de encontrar uma explicação, por mais que fantástica. Daí ficar sempre se justificando, em verossimilhanças, tão certas quanto a escrita. “Assim eu o vi como eu vejo as letras que deixo nesta página” (“So I saw him as I see the letters I form on this page:” cap. III)

As leituras continuam fazendo efeito, se há algo de 'sinistro' se deve muito aos condicionamento de lugar MAIS as referências de leituras (e não poderia faltar o “Mistérios de Udolpho”, romance de cabeceira de Catherine Morland, na Abadia de Northanger), “Que havia um segredo em Bly – uma mistério de Udolpho ou um louco, um parente nunca mencionado que era mantido preso de modo a não levantar suspeitas.” (“Was ther a 'secret' at Bly – a mystery of Udolpho or an insane, an unmentionable relative kept in unsuspected confinement.” cap. IV)

A ambiguidade – gerando terror psicológica – origina-se na incapacidade da Narradora (eu-de-hoje) precisar, dar exatidão, aos fatos vivido pela Personagem (eu-de-ontem), daí o duplo nível da narrativa – o que aconteceu e o que a voz narrativa imagina que aconteceu. “Não posso dizer, a propósito, hoje em dia o quando durou estas coisas/eventos.” (“I can't speak to the purpose today of the duration of the things.” cap. IV)

É assim que a Narradora duvida da própria capacidade de Narrar, “Raramente sei como colocar a minha estória em palavras que devam apresentar um quadro verossímil de meu estado mental.” (“I scarce know how to put my story into words that shall be a credible picture of my state of mind;” cap. VI) E de fato ela não consegue, o/a Leitor/a se angustia mais por estas indefinições, pois o relato é mais fantasmagórico que a fantasmagoria – que pode não passar de miragens, delírios.


Os encontros com os 'fantasmas' fazem com que a Narradora duvide de si-mesma na condição de viva, “Algo teria se passado, na vida, entre nós [ela e as crianças]: se nada tinha passado, um de nós se moveria. O momento se prolongava tanto que se tivesse durado um pouco mais acabaria por fazer-me duvidar se eu estava mesmo viva.” (“Something would have passed, in life, between us: if nothing had passed, onde of us would have moved. The moment was so prolonged that it would have taken but little more to make me doubt if even I were in life.” cap. IX)

A dúvida da governanta é saber se as crianças podem ver os 'fantasmas', ous e apenas ela – nesse caso, eria delírio DELA? Ela estaria enlouquecendo? Ou então os outros poderiam pensar que ela, a recém-chegada, estava querendo atrair atenção sobre si-mesma. É sempre um duelo entre a percepção que ela tem e a expectativa dos outros – a seriedade que esperam de uma governanta.

Por outro lado, se as crianças podem ver os 'espectros', então porque elas fingem nada saber? As crianças tem aglum tipo de cumplicidade com os fantasmas? A Narradora chega a afirmar que “naquele momento, em meu nervosismo, absolutamente acreditei que ela [a menina Flora] mentia” (“that moment, int he state of my nerves, I absolutely believed she lied;” cap. X)

Enquanto isso, a Sra. Grose, a outra serviçal, é desprovida de 'imaginação' (“want of imagination”) e considera as crianças seres inocentes, anjos inocentes, os seus queridinhos (“little darlings”) e que se há algo problemático ali só pode ser a própria governanta – a futura Narradora da estória.


A Narradora duvida de si e das crianças. A incerteza é leitmotiv da narrativa. Ela precisa do depoimento de outros para saber se enlouqueceu – mas ela não confia nos outros! E nós, os leitores, somente temos a versão dela! Não há um Narrador onisciente, destacado dos eventos narrados. Esta não é uma obra do Realismo, é mais um psicologismo. Diríamos do Impressionismo?

Assim, o/a leitor/a tem duas opções de interpretação: 1/se confiar na Narradora, então há realmente os fantasmas, e as crianças são cúmplices da fantasmagoria. 2/não confiar na Narradora, e então nada pode ser esclarecido, pois só temos a narrativa dela, não há uma narração em 3ª pessoa, dita imparcial. (1)

Se dizemos que a Narradora não é confiável, então podemos fechar o livro, nada pode ser dito. E tudo se enfumaça, se é a narrativa de uma louca, na loucura dela havia fantasma, e nos deixaremos assustar pela loucura alheia – não pela fantasmagoria.

As crianças não são 'boazinhas', não são 'inocentes' – o que elas são? Hipócritas, dissimuladas, num bailado de máscaras? Estão jogando... ou então a Narradora é mesmo louca. Não se trata de fantasmagoria, mas de loucura. E quanto mais louco tudo parece, mais a Narradora se julga 'lúcida'. Mas pode-se ter lucidez sobre a 'própria loucura'? Ou, ou louco sabe, tem consciência, de que é louco? A loucura para ele não seria a 'razão' dele? (2)

Para a Narradora, as crianças não são 'boazinhas', são 'alheias', estão sob o poder malévolo dos fantasmas. Diante de tal terror, deve a nova governanta avisar o proprietário sobre as aparições? E arriscar-se a ser chamada de 'louca'? E assim atrair o desprezo do patrão? O patrão que sutilmente a fascinou... No mais, a governanta estava proibida de incomodar o Sr. de Bly. E as crianças acham que o tio delas pouco se importa – até desejam que ele apareça vez ou outra.

As digressões da narradora tentam preencher as lacunas da narrativa – afinal, o que acontece realmente? Onde acaba o Bem e começa o Mal? Tudo se esfumaça... O assunto 'fantasma' é tabu – não deve ser tema de conversação. Até porque ela, a governanta, não tem provas, ninguém mais alega 'ver' fantasmas. Contudo, há momentos que ela não vê – mas tem certeza que as crianças veem...

O que ela narra hoje são as obsessões do ontem. (“How can I retrace today the strange steps of my obsession?”) Que obsessão? Se as crianças não veem ou fingem que não veem? As crianças não afirmam VER, a Sra. Grose diz não ver, então os fantasmas aparecem APENAS para a Narradora? Se sim, então é sintoma de loucura? Ela está sozinha no delírio! Ela duvida de si-mesma porque os outros duvidam!

“Tenho vivido com esta desgraçada verdade, e agora está me enclausurando ainda mais.” (“I've been living with the miserable truth, and now it has only too much closed round me.” cap. XX) É assim que a ex-governanta percebe como se apertada a cada 'volta do parafuso', ela não encontra saída – poderá ficar louca ao temer a loucura.

Mas se a Sra. Grose não pode ver – ao menos ela pode ouvir as falas delirantes da febril menina Flora. Isto justifica a Narradora! Somente o final da novela vai realmente justificar a governanta – isso se o/a Leitor/a ousar acreditar também...

Até porque há todo um jogo narrativo aqui. O Autor Henry James não é daqueles do século 18, tem toda uma consciência sobre a linguagem literária e sabe usar a metalinguagem. Como a narrativa chegou até nós, os leitores?

A Narradora escreveu o texto que acabamos de ler – escreveu tempos depois do ocorrido. Entregou o texto a alguém. O manuscrito é lido numa reunião por um tal Douglas. Na reunião há o diálogo entre os convivas – entre os quais há o ser (a voz textual) que diz 'Eu' – será então o Autor? O próprio Henry James? Ou será outro Narrador a intermediar a Narração da Narradora-ex-Personagem? No mais, há o leitor que – junto com os demais convivas – está tendo conhecimento (ouve a leitura) do manuscrito.

Estamos então na questão do Discurso – a forma narrativa, não o récit – o que é narrado – mas o modo da narração, como se processa, a quem pretende convencer. A própria linguagem empregada é hesitante, é sombreada, não há certezas – e tudo piora a cada 'volta do parafuso'. Eis então o sentimento de opressão que sentimos enquanto leitores. Não é a história em si que nos assusta, mas o possível enlouquecer de quem narra.


set/out/10

(1)Quanto a confiar ou não na versão do Narrador, podemos utilizar a mesma análise para o Narrador Bentinho do clássico Dom Casmurro, do brasileiro Machado de Assis, na questão da infidelidade, ou não, da heroína Capitu. Se confiamos em Bentinho, a mulher traiu. Se não confiamos, então nada podemos dizer – afinal, só temos as palavras dele. Capitu não pode se defender – expor a versão dela.


(2)Há um conto de Edgar Allan Poe (“O Sistema do Dr. Tarr e do Prof. Fether”) que ironiza – com humor negro – justamente estas penumbras entre razão e loucura – tão bem quanto faria o nosso Machado de Assis, com “O Alienista” . No conto de Poe, há um manicômio onde os loucos prendem os médicos e enfermeiros, e ocupam as funções dos profissionais, de modo a fingirem ser 'normais', bons médicos e enfermeiros. E o narrador até chega a acreditar, não fossem uma ou outra 'recaída' dos dementes.
.
.

sábado, 6 de novembro de 2010

sobre A Abadia de Northanger (de Jane Austen)







sobre “A Abadia de Northanger” (Northanger Abbey)(1817/18)
de Jane Austen (1775-1817)

O sinistro enquanto fruto da imaginação

O romance Abadia de Northanger foi escrito pela inglesa Jane Austen em 1798, foi revisado em 1803, e entregue a um editor, porém só foi publicado em 1817/18, portanto, pouco antes do conto de Hoffmann (Klein Zaches) e do romance de Mary Shelley (Frankenstein).

Aqui a Autora mostra o quanto foi influenciada pelos romances góticos do século 18 – principalmente a Sra. Radcliffe (de “Os Mistérios de Udolpho”), mas com uma leitura meio irônica,meio pastiche – onde o 'romance ri do romance', quando temos toda uma “ironia romântica”, sem qualquer pintura singela, mas tal um riso abafado, ou um humor inglês mais sutil.

Desde a primeira frase sabemos qul o tratamento dispensado pela Narradora/ Autora a protagonista, a 'heroína', “Ninguém que tivesse visto Catherine Morland em sua infância teria suposto que nasceu para ser uma heroína.” (“No one who had ever seen Catherine Morland in her infancy would have supposed her born to be an heroine.” cap. I)

Uma heroína? Afinal, o que faz alguém ser especial – a ponto de ser 'protagonista'? Catherine sequer é inteligente, ou se destaca por talento. O que ela gosta de fazer? Ora, ela dedica-se a LER e FANTASIAR. (Assim, D. Quixote, Madame Bovary, dentre outros, arruinados por suas obsessivas leituras)

Outro fanático por livros é aquele livreiro catalão, piromaníaco e homicida, no conto “Bibliomania” (“Bibliomanie”, 1836) de Flaubert (mais conhecido pela Sra. Bovary e outros romances realistas,mas que, na juventude, cultivou a narrativa gótica)
.
para ler “Bibliomania” (Flaubert)
http://escritoriodolivro.com.br/leitura/flaubert.html
http://jb.guinot.pagesperso-orange.fr/pages/bibliomanie.html
.

Catherine Morland não é má e muito menos boa, tem bom temperamento, não era teimosa ou caprichosa. É uma mocinha de província – igual a Emma Bovary! - que se dedica às mais variadas leituras. Fábulas de Esopo, poemas do Reverendo Thomas Moss, do poeta neo-clássico A . Pope, do 'graveyard poet' Thomas Gray, do poeta James Thompson, “Camilla” de Frances Burney (1752-1840), e claro, peças de Shakespeare (Othelo, Measure for Measure, Twelfth Night).


Sim, Catherine era uma leitora, não uma autora. “Embora ela não pudesse escrever sonetos, ela se obrigava a lê-los.” (“for though she could not write sonnets, she brought herself to read them”) A Narradora não hesita em se dirigir à/ao Leitor/a, que deve sempre ser bem informado, “pode-se afirmar, para melhor informação do leitor” (“it may be stated, for the reader's more certain information” ) ou capaz de bons julgamentos, “que o leitor deva ser capaz de julgar” (“that the reader may be able to judge”)

Tanto Catherine quanto a mãe são ingênuas, indefesas quanto a crueldade dos poderosos, nobres pervertidos. (Imagine-se então os 'heróis byronianos'...)

Esta ingenuidade é contrabalanceada pela capacidade de imaginação – Catherine está sempre pronta a idealizar – por exemplo, sobre o charmoso Sr. Tilney,

“Este tipo de modo misterioso, que está sempre pronto a tornar-se um herói, jogou um vívido fascínio na imaginação de Catherine ao redor de sua pessoa e de seus modos, e aumentava a ansiedade dela em saber mais sobre ele.” (“This sort of mysteriousness, which is always so becoming in a hero, threw a fresh grace in Catherine's imagination around his person and manners, and increased, and increased her anxiety to know more of him.” cap. V)

Aqui temos um romance que fala de romances – as muitas leituras da heroína. E um romance que se revolta contra os romances que ironizam os romances. “Sim, romances; pois eu não adoto aquele costume pouco generoso e nada gentil e tão comum em romancistas, que é de degradar com suas censuras desrespeitosas os variados estilos,” (“Yes, novels; for I will not adopt that ungenerous and impolitic custom so common with novel-writers, of degrading by their contemptuous censure the very performances, [...]” cap. V)

A heroína de um romance não deve falar mal da heroína de outro romance – temos toda uma tese em DEFESA do romance (que na érpoca se afirmava em relação ao poema – ou poema-narrativo, ao estilo byroniano – pois “parece ser quase geral o desejo de degredar a capacidade e de subvalorizar o trabalho do romancista” (“there seems almost a general wish of decrying the capacity and undervaluing the labour of the novelist,[...]” cap. V)

E qual romancista é o centro do canône de Catherine? A Sra. Radcliffe, Ann Radcliffe, a célebre autora de “Os Mistérios de Udolpho” (e também de “O Italiano”/ The Italiano), citada entre os clássicos da literatura gótica – numa época de reação ao neo-classicismo da Augustan Age (época literária situada entre Milton e Blake, segundo a Crítica). Ao longo da narrativa encontramos várias referências e citações dos romances góticos – Udolpho, principalmente. Velhos castelos e ruínas são o 'sonho de consumo' de Catherine.


Os romances epistolares também podem ser destacados. Citemos alguns. “História de Sir Charles Grandison” de Samuel Richardson, além do fracês “As Relações Perigosas”, depois, no século 19, temos “Frankenstein” e “Dracula”.

The Mysteries of Udolpho (1794)
http://www.artandpopularculture.com/The_Mysteries_of_Udolpho
.
romances em forma de cartas ('epistolares')
http://www.artandpopularculture.com/Epistolary_novel


Assim, para a fantasiosa Catherine, a leitura é consolo, é prazer. “mas enquanto eu tenho o Udolpho para ler, sinto como se ninguém pudesse me aborrecer.” (“but while I have Udolpho to read, I feel as if nobody could make me miserable.” (cap. VI) Se há alguém que despreze romances, este é o Sr. Thorpe, irmão de outra leitora, a Srta. Isabelle. Ele não hesita em declarar que “Udolpho! Ó céus! Eu não, nunca leio romances; tenho mais o que fazer.” (“Udolpho! Oh, Lord! Not I; I never read novels; I have something else to do.” cap. VII)

Ainda que ele reconheça a Sra. Radcliffe, “Não, se eu for ler algo, será algo da Sra. Radcliffe; as novelas dela são bem divertidas; compensa ler; têm bastante naturalidade e são bom entretenimento.” (“No, if I read any, it shall be Mrs. Radcliffe's; her novels are amusing enough; they are worth reading; some fun and nature in them.” cap. VII)

Os capítulos se preenchem com cenas de bailes, inquietações e paixões de mocinhas, cenas de sociedade, devaneios juvenis, comuns em outros romances de Austen (ver “Razão e Sensibilidade” [“Sense and Sensibility”, 1811], “Orgulho e Preconceito” [“Pride and Prejudice”, 1813], “Persuasão” [“Persuasion”, 1818], (no Brasil, temos os romances de Joaquim Manuel de Macedo, “A Moreninha” e “O Moço Loiro”, e de José Alencar, “Lucíola” e “Senhora”, dentre outros) Percebe-se a ironia no baile – onde a 'heroína' Catherine encontra o Sr. Tilney.

Mas o interessante é que a realidade é sempre reinterpretada pelas fantasias de Catherine – o mundo é revestido por um olhar sonhador, e assim como a narradora refere-se a protagonista como 'my heroine' e às fantasias dela como 'her folly'. Nada discreta a narração, pois a Autora pretende tematizar a posição da MULHER na sociedade, numa época em que a consciência feminista se erguia, lembrando que uma das primeiras autoras feministas foi a mãe de Mary Shelley, a Sra. Mary Wollstonecraft (1759-1797).

Quando Catherine recebe convite para 'passeios', excursões pelos campos, pensa logo nas paisagens dos romances – o sul da França, as campinas da Itália – ou nos castelos antigos, “Por outro lado, o prazer de explorar um edifício igual ao de Udolpho, que na fantasia dela o Castelo Blaize podia representar, a ponto de ser um contrapeso tão bom a ponto de consolá-la por quase nada.” (“On the other hand, the delight of exploring an edifice like Udolpho, as her fancy represented Blaize Castle to be, was such a counterpoise of good as might console her for almost anything.” cap. XI)

Catherine sempre a pensar em castelos, arcadas, ruínas, armadilhas, alçapões, passagens secretas, e quando sai em passeios, ou com os irmãos Thorpe, ou com os irmãos Tilney, ela sempre pensa no 'sul da França” ou nas campinas da Itália, e não porque tenha viajado para o exterior, mas porque ela LEU num romance. “Não, eu apenas queria dizer que li sobre isso. Sempre vem a minha mente aquele país no qual viajaram Emily e seu pai, no Mistérios de Udolpho.” (“No, I only mean what I have read about. It always puts me in mind of the country that Emily and her father travelled through, in The Mysteries of Udolpho.” cap. XIV)

E a heroína descobre que o herói também adora ler romances, e tece um elogio aos leitores e as obras (principalmente os títulos da Sra. Radcliffe). E passam a comparar Ficção com a História ( na época se divulgava 'romance histórico' com as obras de Sir Walter Scott). Os ficcionistas apenas confessam mais imaginação que os historiadores – afinal, a História é também narrativa. Uma reeleitura do passado é sempre excitante. Ver o sucesso de romance histórico, que no século 19 foi cultivado por Balzac e Victor-Hugo, dentre outros; quando no século 20 temos a obra de Maurice Druon sobre a Guerra dos Cem Anos (a Saga dos Platagenetas ou Os Reis Malditos) e de Christian Jacq sobre o antigo faraó Ramsés.
.
Mais sobre Sir Walter Scott
http://en.wikipedia.org/wiki/Walter_Scott
sobre Maurice Druon
http://en.wikipedia.org/wiki/Maurice_Druon
sobre Christian Jacq
http://en.wikipedia.org/wiki/Christian_Jacq
.

Mas é preciso a instrução – e bom gosto – para usufruir a leitura. Ainda que uma mulher educada não fosse tão elogiada quanto uma mulher bonita, sedutora. É a crítica da Autora Austen contra a criação da mulher enquanto bibelô, enquanto beleza estilizada, não ser de pensamento, e sempre dependente do 'saber' do homem. E o fato de Catherine ser 'letrada', fã de literatura é um fato que não a torna mais atrativa – é preciso se vestir bem, dançar bem, ser simpática, isto é, viver no mundo das aparências.


O que é difícil quando a mente dos jovens – principalmente a fos jovens ingleses de classe média alta na referida época – é povoada de fantasias, aspirações, desejo de aventuras semelhantes aquelas dos tomances lidos. E eles se entregam ao flerte e esperam viagens pelos campos em carruagens abertas, a nutrir paixões e a esperar o pretendente ou a noiva. Assim os vários possíveis casais em cena. Temos o interesse de Catherine por Henry Tilner, o interesse de Isabelle Thopre por James Morland, e o interesse de John Thorpe por Catherine – eis o leitmotiv da narrativa. Laços amorosos. A escolha do parceiro (e da parceira) através do filtro do 'amor idealizado'.

Finalmente, no capítulo XVII, Catherine é convidad para visitar a propriedade dos Tilney. A chamada Abadia de Northanger. “Estas foram palavras arrepiantes, e excitou os sentimentos de Catherine ao ápice do êxtase.” (“Northanger Abbey! These were thrilling words, and wound up Catherine's feelings to the highest point of ecstasy.” cap. XVII) Assim, Catherine mal pode esperar para conhecer a Abadia, onde encontrará as ruínas e o mistério, além do amado Henry Tilney.

A mocinha fantasia sobre as 'úmidas passagens' e 'celas estreitas e capelas arruinadas', tal como imagina a partir de tantas leituras. Ao contrário de Catherine, a Srta. Isabelle é de 'espírito pragmático', não se levando tanto pelas leituras, mas preferindo os flertes, e quando vai se casar ela pensa bem nos recursos para se viver – e não só de amor, como dizem os romancistas. A mesma Isabelle que se mostra volúvel, inconstante, em 'flerte' mesmo nas vésperas do noivado. (Em Dracula, encontramos a caprichosa Lucy, cercada de pretendentes...)

No capítulo XX, finalmente Catherine percorre as 30 milhas entre a pousada em Bath e a Abadia de Northanger. As ironias da Autora não poupa as despedidas, os detalhes da viagem, a timidez da 'heroína'. Enquanto Henry ironiza as fantasias de Catherine sobre a Abadia. Ele brinca com as tantas fantaisa que a mocinha formou após tantas leituras (com 'gloomy passages', 'gloomy chambers', 'funereal appearance', 'violent storm', 'vaulted room, total darkness') e ela exclama, “Oh! Sr. Tilney, que assustador! Até parece coisa de livro!” ("Oh! Mr. Tilney, how frightful! This is just like a book!” cap. XX)

Realmente, a ansiedade de Catherine é imensa, e a descrição da abadia imaginada é estilizada, onde as cenas góticas idealizadas parodiam a própria descrição gótica, entre a prosa e a poesia, “e à cada curva da estrada era esperada com solene temor a visão de maciços muros de pedra cinzenta, se elevando meio ao bosque de antigos carvalhos, com os útlimos raios do sol brincando em belo esplendor sobre as altas janelas góticas.” (“and every bend in the road was expected with solemn awe to afford a glimpse of its massy walls of grey stone, rising amidst a grove of ancient oaks, with the last beams of the sun playing in beautiful splendour on its high Gothic windows.” cap. XX)

Mas diante da Abadia, ao se proteger da chuva, Catherine não tem qualquer experiência lúgubre. Evidencia-se que há toda uma distância entre o IDEALIZADO e o VIVIDO. Há uma Abadia na fantasia – e uma Abadia real. É a partir do capítulo XXI que o/a leitor/a adentra as experiências da curiosa e singela Catherine nas dependências da antiga Abadia. Toda a narrativa estará impregnada de estilística gótica a ressaltar parodicamente o estilo das gothic novels do século 18 – excessivas, irracionais, afetadas.


“Her fearful curiosity was every moment growing greater; and seizing, with trembling hands, [...]”

“The night was stormy; the wind had been rising at intervals the whole afternoon;”

“Catherine, as she crossed the hall, listened to the tempest with sensations of awe;”

A Abadia seguramente resguarda lembranças de “situações atemorizantes e cenas horríveis (“dreadful situations and horrid scenes”) mas Catherine, na verdade, não quer se assustar. “Ela desprezou os medos sem sentido de uma fantasia fútil, e começou, com a mais feliz indiferença, a preparar-se para dormir.” (“She scorned the causeless fears of an idle fancy, and began with a most happy indifference to prepare herself for bed.” cap. XXI)


Mas a abadia golpeada pela tempestade de fim de tarde, não deixa de ser assustadora, ainda mais para uma mocinha impressionável dada à imaginações,

“Catherine, em dado momento, ficou imóvel de tanto terror.” (“Catherine, for a few moments, was motionless with horror.”) e também, “Uma violenta rajada de vento, elevando-se com súbita fúria, deu mais horror ao momento. Catherine tremeu dos pés à cabeça.” (“A violent gust of wind, rising with sudden fury, added fresh horror to the moment. Catherine trembled from head to foot.”)

A ironia está jsutamente no descompasso entre o fantasiado e o vivenciado – o que Catherine imagina ser um velho manuscrito, folhas soltas de um diário de uma freira de outrora – não passa de um rol de roupa, ou uma conta de veterinário. O choque é a desilusão. O Gótico só existe mesmo nas leituras, nos romances? Ela percebe. “Nada poderia ser mais claro que o absurdo de suas fantasias de agora.” (“Nothing could now be clearer than the absurdity of her recent fancies.” cap. 22)

Catherine começa a fantasiar sobre o General e a falecida esposa – por que a morte precoce? Por que a Sra Tilney era infeliz? O marido seria dominador, até cruel? A mocinha compara o General ao vilão Conde Montoni de “Mistérios de Udolpho”. Ela passa, assim, a interpretar a realidade ainda sugestionada pelas leituras. Basta uma olhada no vocabulário 'sombrio' dos capítulos 20 a 23,

'rich in Gothic ornaments', 'gloomy aspect', 'delightful melancholy', 'dreadful scene', 'stings of conscience', 'gloomy workings of a mind', 'strange unseasonableness', 'wanton cruelty', 'barbarous proceedings', 'dreade figure of the general', 'terror upon terror', 'proofs of the general's cruelty'

Diante de tal montante ficcional, o papel de Henry Tilney é de iconoclasta das superstições e vem destruir as fantasias lúgubres de Catherine – ele mostra que o horror não é mais possível na 'época civilizada' em que vivem (deevido a educação refinada inglesa, certo?) “A nossa educação nos prepara para tais atrocidades?” (“Does our eduation prepare us for such atrocities?” cap. XXIV)

Ora, e não será a própria Inglaterra um cenário para o Jack The Ripper? Para os mistérios e assassinados desvendados por Sherlock Holmes? Para as duas caras do Dr. Jekyll-Sr. Hyde?

sobre Jack, o Estripador
http://en.wikipedia.org/wiki/Jack_the_Ripper
.

As estórias macabras não ocorrem apenas na idade Média ou na Europa latina/ mediterrânea – como querem os clássicos gothic novels “O Monge” / The Monk (de Matthew Gregory Lewis) ou “O Italiano” (de Ann Radcliffe) – mas podem ocorrer no cenário brumoso da grande London – Stevenson e Oscar Wilde que o digam.

O ápice da paródia gótica é encontrada nos capítulos mais 'góticos' – XX a XXIV – não mais do que 5 num total de 31 capítulos, mas concentram toda uma influência estilística de meio século 18, que influenciariam os demais autores até os nossos dias – daí referirmos a uma 'tradição gótica' mesmo na 'ironia romântica' – mesmo num Edgar Allan Poe ou num Álvares de Azevedo – que não ignora o gótico, mas o re-atuliza.

No Capítulo XXV, sabemos de toda a desilusão da heroína Catherine Morland. “Acabaram-se as visões de romance. Catherine estava de todo acordada.” (“The visions of romance were over. Catherine was completely awakened.”) Pois a aventura de Catherine aqui é justamente o 'delirar', o 'imaginar'. “O absurdo da curiosidade e medo que ela tivera – poderiam ser esquecidos?” (“The absurdity of her curiosity and her fears – could they ever be forgotten?”) e, afinal de contas, a culpa é dela mesma, ela já tecia consigo todo o 'enredo' antes mesmo de chegar até a Abadia,

“e tudo havia se inclinado a um propósito de uma mente que, antes que ela entrasse na abadia, tinha o ímpeto de se assustar. Ele lembrava dos sentimentos de quando se preparava para conhecer a Northanger.” (“and everything forced to bend to one purpose by a mind which, before she entered the abbey, had been craving to be frightened. She remembered with what feelings she had prepared for a knowledge of Northanger.” cap. XXV)

O próprio Narrador (ou a própria Autora) 'faz o jogo' de Henry ao afastar o Gótico do cenário 'civilizado' da Inglaterra. Os 'horrores' das gothic novels só aconteciam mesmo em lugares tais como Itália, Suiça, ou sul da França – cenários de obras tias como “Marble Faun”, “Frankenstein” e “Mistérios de Udolpho”. Nada havia na velha e boa England relacionado à assassinatos cruéis ou poções venenosas. (É o velho sentimento inglês em contraponto ao “Continente', isto é, a Europa)


Com a desilusão, Catherine volta a 'vida comum', “As angústias da vida comum começaram logo a ocupar o lugar das preocupações dos romances.” (“The anxieties of common life began soon to succeed to the alarms of romance.” cap. XXV) As “angústias da vida comum” incluem o rompimento do 'affair' entre o irmão e a miga (a volúvel Isabelle) . O rompimento do compromisso angustia Catherine mais do que velhas ruínas e monges sinistros.

No final, ao ir embora da Abadia, Catherine repensa o desejo por ruínas, lugares sombrios, tudo fruto de letras dos gothic novels – da Sra. Radcliffe e outros imitadores,

“A dolorosa lembrança daquela mania tinha ajudado a nutrir e aperfeiçoar a única emoção que poderia vir de uma consideração do edifício. Que revolução em suas ideias! Ela, que tinha desejado tanto ir até a Abadia! Agora, nada havia de tão fascinante a sua imaginação que o não-pretendido conforto de uma casa paroquial bem-planejada, algo semelhante a Fullerton, mas ainda melhor:”

The painful remembrance of the folly it had helped to nourish and perfect was the only emotion which could spring from a consideration of the building. What a revolution in her ideas! She, who had so longed to be in an abbey! Now, there was nothing so charming to her imagination as the unpretending comfort of a well-connected parsonage, sometihing like Fullerton, but better: [...]” cap. XXVI)


Catherine vai embora, afasta-se da companhia dos Tilney, sem as despedidas de Henry e sujeita ao mal-humor do General. A mocinha teme ter 'ofendido' o oficial tão sério, o pai de Henry (mas tudo pode ser um mal-entendido) e vive uma noite de sono inquieto – o fim do idílio ? (As heroínas da autora Jane Austen sempre se defrontam com esses momentos de crise, quando se deparam com decisões – família, pretendentes, casamento – decisivos próprios da intimidade feminina.) A Autora ironiza justamente este retorno da heroína – de volta ao mundo real, não ao ficcional – com a plena quebra da 'convenção' romântica! Somente assim poderá ser resolvido o 'mal-entendido'.

Como percebemos, o romance Abadia de Northanger, de Jane Austen, ironiza o romance sombrio, ao parodiar o próprio formato de escrita de um romance sombrio, é o gótico pastiche contra o gótico clássico. Não que fosse apenas uma 'crítica', mas uma reação ao 'estilo da época' – se assim não fosse Austen não teria escrito a própria Obra com o próprio estilo (fenômeno que depois aconteceria com o escritor brasileiro Machado de Assis que superou o Romantismo e adentrou o Realismo, no propósito de estabelecer o próprio 'estilo autoral'.) De todo modo, a paródia de Austen não desprezou o estilo, e romances ainda mais sombrios foram escritos ao longo do século 19 e até no século 20.


set/out/10

por
Leonardo de Magalhaens
.