sábado, 25 de setembro de 2010

sobre a obra poética de Álvares de Azevedo




Os românticos (ensaio 2)

sobre a obra poética de Álvares de Azevedo
(1831-1852)
poeta romântico brasileiro
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Idealização juvenil do herói romântico
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No Brasil, o Romantismo representou o primeiro movimento cultural de espírito nacional (ou nacionalista, como queiram) quando sentiram a necessidade de representar (ou se identificar) como um 'espírito nacional' – a terra idealizada, assim como, na Europa, os poetas, os literatos re-criavam suas 'pátrias', ao resgatar um passado mítico, de sagas e fábulas.

Sim, um 'passado mítico', pois o passador é sempre uma re-leitura com o olhar do 'presente'. Ainda mais quando se precisa explicar o 'presente'. Quando uma 'identidade' é formada (assim como se formavam os Estados-Nações), quando um povo precisa dar um 'sentido' à cultura compartilhada (o que faz um suiço ser suiço? Ou um inglês ser inglês?), quando o dizer do Eu é ainda um dizer coletivo.

Mas o nacionalismo não convence muito. O Romântico idealiza a pátria, imagine então o mundo estrangeiro! Na ânsia de 'transportar' um modelo estranho para um tema nacional o literato acaba por confundir sonhos com delírios. Nem é um 'estranho' nem é um 'nacional'. Forma e conteúdo até se contradizem. (Nem vamos adentrar muito nesta questão).

Nosso Autor aqui é Álvares de Azevedo, o mais byroniano dos byronianos, que imagina brumas londrinas nos sertões brasileiros, e espectros de castelos medievais em casarões da avenida Paulista. O 'ultra-romantismo' chega a ser mais cômico que trágico se lermos com um olhar 'pós'-moderno. Se compararmos 'sonhos e delírios' britânicos (e europeus) com sonhos adolescentes de um estudante brasileiro da metade do século 19 – quando o Positivismo já semeava o vindouro Naturalismo...

Álvares é um leitor compulsivo, um leitor assombrado pelos autores clássicos, pelas paisagens europeias, pelos dramas europeus, pelos heróis europeus, como poderia ser um 'autor nacional'? Entre os autores lidos e citados por Álvares de Azevedo em dedicatórias, epígrafes, citações, referências, em suma, habitando o universo de suas leituras e releituras, digressões, diálogos, influências, podemos listar,

Bocage, Camões, Shakespeare, Cervantes, Victor Hugo, Lamartine, Musset, Georg Sand, Schiller, Goethe, Homero, Horácio, Dante, Leopardi, Molière, Gautier, Dumas, Vigny, Shelley, Byron, Cooper, Moore, Ossian, Uhland, Jó, Jeremias, Chenier, Alexandre Herculano, Spronceda, para ficarmos entre os principais.

Não encontramos referências a Poe, Baudelaire, Rimbaud ou Lautréamont, todos estes famosos após 1850. Época na qual Álvares já escrevia os poemas frutos das leituras de meio século – e até antes, não faltando referências aos clássicos renascentistas, barrocos, etc.

Muitas leituras e releituras criam um espírito crítico no Poeta enquanto escritor angustiado pela influência (para retomarmos a metáfora de H Bloom), ao dissociar-se em Poeta leitor e Poeta autor. Esta dissociação está presente nos indícios de 'metalinguagem' – o poema aborda o 'fazer poesia' – abundante em “Lira dos Vinte Anos”.

Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de oiro.”

A figura do Poeta enquanto gênio, ou louco (“a poesia é decerto uma loucura”), errante, amaldiçoado, carregando um corpo que mantem a alma reclusa, ou servindo para divertir os insensíveis,

“Deixem-se de visões, queimem-se os versos.
O mundo não avança por cantigas (...)”
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“Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola...”
(Um cadáver de Poeta)
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Mas, ao mesmo tempo, a Poesia surge como uma possibilidade de superação, de ascensão diante da finitude, de eternizar-se,

Os poetas passados e futuros
Vou todos ofuscar... Aqui no cérebro
Tenho um grande poema. Hei de escrevê-lo,
É certa a glória minha
!”

Mas somente a lírica individualista e ultra-romântica de Álvares não bastaria para 'eternizá-lo' (não no Meu Cânone) mas a capacidade de despersonalizar-se, de criar enredos onde os protagonistas são representações dos dramas subjetivos. São os 'poemas' que tecem 'narrações', os 'poemas narrativos'. As histórias se entrelaçam nos versos não em prosa.

Os 'poemas narrativos' na Obra de Álvares de Azevedo são “O Poema do Frade”, “O Conde Lopo”, ao lado do drama “Macário” e os contos macabros de “A Noite na Taverna”. O poema narrativo de Álvares tem uma inspiração no modelo romântico de Byron, mas não meramente 'cópia'. O autor tinha consciência de disso – tanto que assim ironiza a personagem lírica Nini, em “Boêmios”,

Um outro só com isso dera a lume
Um poema em dez cantos. Sou conciso,
Não ouso tanto: dou somente ideias,
Esboço aqui apenas meu enredo
.”

Uma referência clara e não exatamente elegíaca aos tantos cantos de “Don Juan” , de Lord Byron, um extenso poema narrativo que ficou incompleto devido a morte do autor. É composto de 12 Cantos.

O ensaio não visa situar o romântico brasileiro como 'imitador' do Bardo britânico, mas, ao comparar, falar tanto de semelhanças quanto diferenças.

Por mais que Álvares tenha se influenciado, ele se diferencia pelo 'idealizado', enquanto Byron 'idealizou' e também 'vivenciou'. O ler sem vivenciar é apenas uma 'digestão' da 'tradição literária'. Segundo percebemos no poema “Ideias Íntimas”, onde a tradição literária é re-evocada pelos nomes de Ossian, Lamartine, Shakespeare, Goethe (“fantástico alemão”), Musset,

“Um sonho de mancebo e de poeta, / Eldorado de amor que a mente cria / Como um Éden de noites deleitosas... / Era ali que eu podia no silêncio / Junto de um anjo... Além o romantismo! (...)
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A mesa escura cambaleia ao peso / Do titâneo Digesto, e ao lado dele / Childe-Harold entreaberto ou Lamartine / Mostra que o romantismo se descuida / E que a poesia sobrenada sempre / Ao pesadelo clássico do estudo.” (II)

“Marca a folha do Faust um colarinho / E Alfredo de Musset encobre às vezes / De guerreiro ou Valasco um texto obscuro.” (III)

Referências à Victor Hugo, Lamennais, Georg Sand, Bonaparte (as batalhas de Wagram e Marengo, com a idealização do líder, do Poder, enquanto Redentor)

“As águas de Wagram e de Marengo / Abriam flamejando as longas asas / Impregnadas do fumo dos combates, / Na púrpura dos césares, guardando-o. / e o gênio do futuro parecia / Predestiná-lo à glória. (...)”(IV)

Mais ainda: os amores do Poeta são Amadas idealizadas devido a tantas leituras,

Que Elviras saudosas e Clarissas, / Mais trêmulo que Faust, eu não beijaria, / Mais feliz que Don Juan e Lovelace / Não apertei ao peito desmaiado!” (X)

“Junto do leito meus poetas dormem / - O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron - / Na mesa confundidos. [...]” (XI)

O Poeta não teve tempo para viver e amar – então viveu e amou nos clássicos literários. Foi um seduzido e vitimado pela Literatura ! Basta listarmos as citações “Hinos do Profeta” na Parte I de “Lira dos Vinte Anos”,

Um canto do século”
(“Passei como Don Juan entre as donzelas, / suspirei as canções mais doloridas / E ninguém me escutou...”
“Que liras estaladas no bordel! / E que poetas que perdeu o mundo / em Bocage e Marlow! “
“Fora belo talvez, em pé, de novo / Como byron surgir – ou na tormenta / O homem de Waterloo; / com sua ideia iluminar um povo, / Como o trovão da nuvem que rebenta / E o raio derramou! // Fora belo talvez sentir no crânio / A alma de Goethe e resumir na fibra / Milton, Homero e Dante / - Sonhar-se, num delírio momentâneo, / A alma da criação e o som que vibra / A terra palpitante!”

Ao digerir leituras – as mais vastas, as mais sombrias e as mais iluministas – o poeta passa a sentir sua 'ambiguidade', sua 'dupla alma'. Na Segunda Parte de “Lira dos Vinte Anos” encontramos a noção de Álvares sobre a 'dupla alma' do artista: Byron e o anti-Byron na mesma pessoa.

“Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.
É assim. Depois dos poemas épicos Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o Giaour de Byron vem o Cain e Don Juan – Don Juan que começa como Cain pelo amor, e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.”

Coabita a 'alma dupla' do poeta o idealismo e o choque da realidade – vemos isso ao compararmos os Cantos I e II e depois III e IV do Childe Harold de Byron. Uma coisa é escrever poesia, outra é achar poesia no mundo. Se no mundo não há, então volta-se ao idealizado.

É no contato com o idealizado – ou seja, com o que o Poeta imagina apartir de sus leituras, influências, devoções, que surge a polifonia. O poeta abre um 'diálogo' com outros autores – e os textos sinalizam outros textos. Pois Álvares abre um diálogo com as obras de Byron.

Podemos apreender um trecho de “Conde Lopo” em relação a “Childe Harold”,

“Amigos – não os tinha / como o Childe de Byron – mais ainda / Desgosto amargo do viver – tão fundo / Não lhe roera o coração -” (Canto I, IV)
Comparar com Canto I, X de “Childe”, “If friends he had, he bade adieu to none.” (“Se ele tivesse amigos, não diria adeus a nenhum”)

As obras “Childe Harold”, “Don Juan”, “Manfred”, “Mazeppa” e “Cain” são as mais citadas por Álvares de Azevedo, ao lado de obras de Dante, Shakespeare e Goethe. Também Homero e Victor Hugo recebem referências. Tudo é uma digestão de leituras, mas não exatamente absorção. Coisa de 'antropofagia' da qual somente os Modernistas serão capazes.
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Poemas de Álvares de Azevedo
http://www.revista.agulha.nom.br/avz.html
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O Conde Lopo

Os diálogos entre personagens – Lopo, o Banqueiro, o Fantasma, Inês, O Moço Louro, Cavaleiro Gastão, o Mancebo - dentro do poema configuram “Conde Lopo” no estilo de poema em drama (ou drama em verso). Há toda uma tensão entre as 'muitas vozes' que compõem o poema.

O Conde Lopo se entrega aos vícios e ao jogo – e perde sua fortuna. É um devasso que despreza qualquer futuro. Mas tem consciência de sua miséria ao referir-se a si mesmo,

“O Conde Lopo já morreu – eu hoje / sou um pobre vivente sem amigos, / Sem travesseiro ao menos pra a fronte, / Que não as lajes de enlameadas ruas.” (Canto V, VII)

Mas quem é o Conde Lopo? É um mistério, um enigma. “Minha sina / É um mistério – como o mar – profundo; // O Conde Lopo / Ninguém o conhecia – era um mistério / sua passada vida – negro abismo / O seu imaginar – ninguém pudera / Obter-lhe história dos transatos anos.”
e faz referência ao Childe de Byron...

O 'herói byroniano' já é uma idealização. Os 'heróis byronianos' de álvares são idealizações de uma idealização. Vejamos assim o Conde Lopo, o Jônatas (do Poema do Frade), Bertram e Claudius Hermann (de Noite na Taverna) e Macário.

No poema “Conde Lopo” o idílico e o trágico (ou 'eros e tânatos' ) se confundem, pois amor e morte estão entrelaçados (assim é na poesia romântica, assim é no The Raven, de Poe...)

“Beber-lhe os trêmulos beijos, / Vê-la mórbida em ansejos, / Quase morta de desejos, / O colo arfar-lhe e tremer. [...] e num beijo que inebria / vinho e amor – de amor morrer!” (Canto II, II)
No Canto III temos uma verdadeira “Invocação” ao Lord Byron,

Misterioso Bretão de ardentes sonhos”, “poeta altivo das brumas de Albion”, “foste poeta, Byron!”, “Bardo sublime das Britânias brumas”, e “- E riste, Byron, / Que do mundo o fingir merece apenas / Negro sarcasmo em lábios de poeta. / foste poeta, Byron!”

Uma verdadeira “angústia da influência” disseminando de autor para autor – vejamos que Byron vivia em 'ágon' com os clássicos e os pré-românticos - que faz com que o influenciado se identifique com o influenciador, seja um cúmplice na 'zombaria' diante do mundo,

“Vem, pois, poeta amargo da descrença, / Meu Lara vagabundo - / E co'a taça na mão e o fel nos lábios, / Zombaremos do mundo!”

ou ainda, no Canto III (Prelúdios),

Poeta – acordarei meus hinos dalma / Os mais ternos – por ti!”
ainda mais se considera as paixões como 'contaminadas' de idealismo, onde o amor seria igual a mais outra ilusão,
“Não te deixes amar, que amor na terra / É sonho falso e vão -” (Canto III, IV)

Zombarias típicas de um Conde Lopo, sempre em exageros de luxúria e desperdício. O protagonista é tão 'mão aberta' que até o barqueiro já conhece a fama! (Digamos que vem lembrar aquele Gatsby, de Fitzgerald, um século depois! Com suas festanças e gastanças...)

Mas o amor – aquele suspeito de idealismo – é o que traz crença ao cético Lopo,

“Fundia-se-lhe o gelo da descrença! / amava – e amar é crer – já não pensava / Nessas fugidas ilusões mentidas / Que em chumbo ardente lhe tornaram a alma.” (Canto III, VI)

O 'amor' enche a mente de delírios – terreno fértil para os românticos (vide como a paixão foi essencial para os entrelaçares líricos de um Keats tendo visões ao ouvir os trinados de um rouxinol...!)

No Canto IV o corcel em corrida - “como o Ucrânio potro de Mazeppa” (VI) - é a mesma imagem de “Mazeppa” de Byron – já referido, na Invocação, assim, “como o galope do corcel da Ucrânia”. Não tratamos sobre “Mazeppa” no ensaio sobre a poética de Byron, mas esclarecemos tratar-se de um poema baseado na estória de nobre ucraniano que sofreu o suplício de ser amarrado a um cavalo, que logo é precipitado em selvagem correria por todo tipo de vegetação e terreno acidentado. Este conto também foi inspiração para o russo Pushkin (escreveu “Poltava”) e para uma ópera de Tchaikovsky de mesmo nome.
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O Poema do Frade

É um poema extenso, em oitavas decassílabas (versos heroícos e sáficos), onde há poesia sobre a poesia, considerações do Narrador/Eu-lírico para o Leitor imaginado,

“Escutai-me, leitor, a minha história / É fantasia, sim, porém amei-a. [...] Escrevi por que a alma tinha cheia / - Numa insônia que o spleen entristecia - / De vibrações convulsas de ironia!” (XIV)
A zombaria transpõe o texto, quando o Narrador não poupa os críticos,
“Mas a crítica, não... eu rio dela...” (XV) e “A crítica é uma bela desgraçada / Que nada cria nem jamais criara;” (XVI)

Eis algo inerente nos românticos : o desprezar a Crítica – vemos o quanto Byron atacava os críticos,principalmente os demais poetas e os críticos escoceses (vejam “English Bards and Scotch Reviewers”, 1809) onde o desprezo aos críticos é aquele de um criador (ou de uma mãe) quando atacam sua obra (ou seus filhinhos).

Zombaria dentro do texto não falta, onde o Narrador não poupa a Personagem,
“Meu herói é um moço preguiçoso / Que viveu e bebia porventura / como nós, meu leitor; [...]” (XXIV)
É assim que o Narrador chega a ironizar o personagem romântico (e os tantos ditos poetas que andam por aí),
“Dizer que em poeta – é coisa velha: / No século da luz assim é todo / O que herói de novelas assemelha. / vemos agora a poesia a rodo!” (XXV)
Zombaria que só não se estende para os próprios versos, veículo da censura dos outros. O poeta irônico se julga mais criativo, mais original, mais peculiar. Ainda mais quando assume buscar a inspiração no álcool, no Vinho, o êxtase báquico,

“Então a inspiração lhe afervorava / E do vinho no eflúvio e nos ressábios / Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios” (XXVI)

No jovem poeta encontramo uma reflexão sobre a própria poética, num exemplo de metalinguagem onde o eu-lírico no poema fala sobre o poema,

“Prometi um poema, e nesse dia / em que a tanto obriguei a minha ideia, / Não prometi por certo a biografia / do sublime cantor desta Epopeia.” (Canto I, XXXIV)

Pois explicita, “não quero contar a minha vida”, numa referência a Lord Byron, que confunde a vida e a obra, nos versos de “Childe Harold” e “Don Juan”.

O protagonista aqui é Jônatas apaixonado por uma cortesã, uma prostituta, aqui, vista como ser amaldiçoado. Enquanto o amor (desejo sexual, imaginemos) é visto como 'gozo efêmero', um carpe diem na vida breve,

“Misérrimos de nós! Nossa existência / O hoje abrange e só, vermes de um dia! / Ontem foi de um anelo a impaciência / Um desejo fogoso que incendia!” (Canto II, XIX)

Consuelo é o nome da “cândida e bela mulher”, na descrição da beleza e da sedução. Mas a voz que narra que suas auto-censuras. O Eu-lírico narrador volta-se para o(a) leitor(a), “Se quereis, meu leitor, saber agora / O que a isto seguiu-se – eu não o digo , / Porque senão minha leitora cora:” (XXVII)

O Canto seguinte é um mosaico, fruto de tantas leituras, pois o Eu-lírico não desabafa vivências, mas destila os mil enredos outrora 'devorados'. (O bom escritor enquanto bom leitor. Borges e Calvino que o digam!)

O Canto III configura-se diverso, não tem mais oitavas, mas sextetos, com disposições de rimas variadas. Ocorrem citações de comédias de Molière, e as personagens dramáticas de Shakespeare (Hamlet, Falstaff). O próprio Eu-lírico comenta a mudança da estrutura métrica,

Como varia o vento – o céu – o dia, / como estrelas e nuvens e mulheres, / Pela regra geral de todos seres, / Minha lira também seus tons varia, / e sem fazer esforço ou maravilha / troca as rimas da oitava p'la sextilha' (Canto III, V)

e o Eu-lírico 'se apresenta', “Falemos sem rodeio e com verdade: / Estre livro escreveu um pobre frade.” (VI) E acaba que o Eu-lírico fala de si-mesmo – o velho frade – e esquece o tal Jônatas... Um frade muito 'byroniano', aliás. Entregue à luxúria, ao vinho, ao 'mundo prostituto', ao charuto. Principalmente o charuto! “Só amores guardei ao meu charuto!” (VIII), “Viva a fumaça lânguida e cheirosa!” (IX), “Só peço inspirações ao meu charuto” (X), “Só tu não mentes não, ó meu charuto!” (XVII)

O Eu-lírico se dirige aos leitores (“Vós, bardos nutridos de amargura” (XXIII), para que venham compartilhar a 'mágoa tanta', “Vinde chorar a minha desventura” (XXIII)) O poema nada mais é que um fruto de mágoas & tristezas & saudades. As lágrimas regaram esta safra de versos, onde as palavras não passam de lápides de sentimentos. Imagens de morte & luto & melancolia se infiltram nestas stanzas.

Toda uma Poesia advinda da idealização de Dor & Perda. As imagens invariavelmente sugerem idílios & trevas & brumas, tudo se esfumaça nos vapores de um charuto... Meio a fumaça vemos a narrativa de Jônatas e Consuelo...

As imagens de suicidas (“o gélido cadáver do suicida”(XXVII), “Perguntai-o da insônia aos arrepios, / De Werther o suicida aos lábios frios!” (XXXVII), “taça do mistério do suicida” (XLIII)) são recorrentes, pois se o jovem poeta não alcança o mundo idealizado do amor idílico (“amor, ébrio desejo”, “vento de amor que nos delira”) ele prefere se apagar na morte.

O sofrimento de 'perda do ideal' é semelhante à tortura de Prometeu! (XLVI). O amor – enquanto idealização do ser amado, a bela donzela, a 'belle dame sans merci', de Keats - deixa o 'peito exausto' tal aquele do insano Faust (XLVII), vitimado pelas tantas imagens literárias, idealizadas.

É visível a imagem idealizada – romântica – da mulher, sempre donzela, lânguida e perfumada (em contraponto a 'rameira', prostituta, devassa), pois no padrão, ou fora do padrão, esta 'mulher' é uma idealização do desejo dos homens. A mulher amada está no 'inalcançável', logo na perda de 'Eros', sobra apenas o 'Thânatos', a morte?

A morte é aquela mesma que desperta a dúvida de Hamlet (em Shakespeare) – 'ser ou não ser' – diante da sepultura – há algo além ou é tão-somente o 'sono eterno' – e o sofrer antevisto do suicida, “E tu dormes, suicida? ... e à noite infinda / Que sonhos roçam-te o livor sombrio?” (LX)

Nem família (pai, mãe) nem pátria seguram o suicida à vida. Mais referências às personagens de Byron (“Don Juan dormido, / De fome, sede e frio embranquecido” (LXIX), “Não veio Haidéa, não ao naufragado” (LXXI), que delimitam as fronteiras do idealizado não-vivido. O exemplo de suicida é um personagem de poesia...

Mas quem é o poeta sem o choro da musa? É pois Consuelo quem chora junto a Jônatas, “enlouquecera / Junto ao amante a mísera Consuelo” (LXXIX), “por que era morto aí o libertino / Jônatas – o cantor da vida impura” (LXXXI)

No Canto IV, o Eu-lírico se dirige à própria Consuelo. “Por que és tão bela, ó pálida Consuelo?” (I), “E quem te não sonhou? Desses perdidos / Que o gênio a suspirar beijou em fogo;” (V), “E tão pálida e bela! Seminua, / As pálpebras do sono em véu sombrio,” (XII), onde a musa parece mais como uma mulher idealizada do que propriamente real. A plena idealização da mulher – mais amada quanto mais inalcançável! São as 'mulheres de nuvens' que os realistas tanto criticam.

Referências às protagonistas – travestidas de 'heroínas românticas' - de dramas de Shakespeare, seja Julieta (“Romeo and Juliet”) seja Cordélia (“King Lear”), “Ou da Julieta, pálida, risonho / Por seu belo Romeu ardia em sonho?” (XVI), “Suspiros de Romeu na despedida, / A sua Julieta desmaiada! / Blasfêmias do Rei Lear, beijo sem vida / Nos lábios de Cordélia inanimada!” (XX)

Também há referências à mulher oriental – que tanto fascinou Lord Byron, em suas 'oriental tales' – como uma fêmea exótica, mais 'caliente' e sedutora que a europeia. “Tarde! Quem não te amou, minha sultana? / Quem tão árido eivou a mente insana” (XXVI) A mulher que serve ao desejo NÂO é aquela que serve à idealização 'vaporosa'.

É visível a distinção – quando o Poeta busca uma Musa, ou quando busca uma Amante. (Algo que encontramos nos poetas barrocos – vide Gregório de Matos – e no simbolista Baudelaire ) A virgem 'vaporosa' de Álvares de Azevedo é aquela que encontraremos ainda nos sonhos e pesadelos de Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Souza, sempre inalcançável, e quanto mais inalcançável, mais louvada.

E sempre virginal e vaporosa / Pensativa de amor, volutuosa...” (XXVII) diante da qual o Poeta se apercebe de seus 'sonhos de amor', e o eu-lírico se interpela, se adjetiva, por isso,
“Acorda-te, ó poeta macilento! / Acorda-te, meu peito, ao sentimento,” (XXXII) e “Acorda-te, meu peito moribundo, / Às visões juvenis de um outro mundo!” (XXXIII)

Mas onde se situa o Poeta? Que ambiente o acolhe ou rejeita? No Canto V temos a descrição da natureza idílica e ao mesmo tempo sombria – um tom ultraromântico a ambiente arcadista, pleno de 'beleza gótica'. Afinal, trata-se de um cenário funesto, um cemitério. O coveiro a cantarolar enquanto abre uma cova – plenamente a lembra outras cenas trágico-cômicas, em Hamlet (Shakespeare) e Faust (Goethe).

“Era um canto sombrio – era o coveiro / Que nas urzes, cantando, um fosso abria: / e no lábio o sarcasmo zombeteiro / Na cantiga fatal estremecia!” (VII)

Esta visão da morte, o morrer na juventude – e sempre ser jovem na morte, tal a alegoria do vampiro – é também o que conservou a beleza de Julieta – pois como escreveu Keats, 'a beleza deve morrer', e como lembrou Poe, 'a morte da jovem amada, a bela mulher, é o tema mais trágico de todos',

“Tão bela! Parecia adormecida!... / Era o sono... porém não o da vida!” (XII) e “Assim a noiva de Romeu dormia - / A pálida Julieta regelada -” (XIII)

É a mesma visão trágica de Ofélia morta (em Hamlet), aquela do morrer de amor. E o Narrador se desculpa diante de tanta morbidez, “É sombrio, confesso-vos, meu canto: / E obscuro demais, o que é defeito,” (XVI) e ainda mais se compararmos aos clássicos (“Não teve o Dante mágoa mais profunda...”, XVII), em referência às cenas medonhas de “Inferno”.

Após o pesadelo 'dantesco' é que o Eu-lírico escreveu, “Escrevi o meu sonho. Nas estâncias / Há lágrima e beijos e ironias,” (XXII) e passa a 'dialogar' com o leitor, “Vai, que tu sofres, implorar – sedento / Um remédio de amor a teu destino!...” (XXIV) e “E agora – boa noite eu me despeço / Desta vez para sempre do poema:” (XXVI) e também, “Se eu gostasse dos versos eloquentes, / como eu descreveria bem rimados” (XXVII)

O poeta se esforça para conter a ironia – e não “profanar as ilusões na lira” (XXVIII) e percebe que é preciso se despedir, eis uma longa despedida em 24 stanzas! Há aqui algo de Hamlet, de Faust, de Ossian, meio às loas à Natureza, a interlocutora-mor para os arcadistas e os românticos de primeiras gerações,

Adeus! Tudo que amei! O vento frio! / Sobre as ondas revoltas me arrebata,” (XXXVIII),

é a evocação da Natureza, um cenário a espelhar os sentimentos – “ventos avendiços”, “lânguida baía”, “brisas sussurrantes”, “vagabunda lua”, “vales cheirosos” - o natural é descrito pleno em subjetividade, não 'objetivado' como será depois no Realismo/ Naturalismo.

Ainda sobra tempo e versos para referências ao 'herói byroniano' quando morre, “eu todos vos amei! Cri no mistério / Que o libertino Don Juan levava,” (XLVIII), o mesmo D Juan - “Ergue-te, libertino!” em “Sombra de D. Juan”.

O byroniano enquanto herói byroniano morre, eis notificada a 'angústia de influência'.
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Mais que uma Noite de ébrios numa Taverna

Entre a poética e a prosa, na mescla de ambas, destaca-se os contos de “Noite na Taverna”, obra que sempre gerou polêmica. Morbidez, sadismo, satanismo, tudo reunido sobre o rótulo 'ultra-romântico'.

Mais que uma simples noite de bebedeiras e farra, mais que um conjunto de contos de terror e romantismo, temos uma cena a resumir o clima de época para os jovens românticos – entre o ideal e o real, entre o espiritualismo e o materialismo.

No embate entre a Razão e a Embriaguez, debate-se imortalidade da alma, metempsicose, platonismo, niilismo, ceticismo, para definir o que seria a vida e o que seria a morte – não-vida? Outra-vida?

Para Solferi, “a vida não é mais que a reunião ao acaso das moléculas atraídas”, no que é prontamente refutado por Archibald, “o materialismo é árido como o deserto” e “A nós os sonhos do espiritualismo”.

Mas Solferi é aquele que se debate em meditações, para o jovem, o porto do ceticismo é o fanatismo, “Se entendes por ele os ídolos que os homens ergueram banhados de sangue, e o fanatismo beija em sua inanimação de mármore de há cinco mil anos... não creio nele!” No que recebe o apoio de Johann, “Verdades religiosas, visões santas... miragens do deserto

Para os debatedores, o ateísmo é tão louco quanto o idealismo e o panteísmo, pois a verdadeira filosofia é o epicurismo, o Prazer. Daí reunidos todos em torno de um lugar comum: beber, fartar-se de vinho. “Embriagai-vos!”(“Enivrez-vous!”), um dia dirá o simbolista Baudelaire.

E meio à bebedeira o que não falta é erudição. Basta ver as epígrafes, às referências à “Hamlet” e “Romeo and Juliet” (Shakespeare), “Cain” e “Childe Harold” (Byron), Corneille, Alexandre Dumas. Clássicos e autores românticos se encontram nas leituras desvairadas do jovem Autor.

A narrativa de Solfieri tem como cenário a cidade de Roma, “Cidade Eterna”, “cidade do fanatismo e da perdição” - que será também cenário do romance “O Fauno de Mármore”, de Hawthorne, como veremos. A donzela-vítima – virgem pálida – numa trama de necrofilia, se não caso de catalepsia (vide o conto de Poe, “Berenice”), para depois a moça realmente morrer.

Tudo é tão mórbido, grotesco, exagerado, que os bêbados duvidam da narrativa - “Solfieri, não é um conto isso tudo?” - criando uma atmosfera de 'acredite se quiser' (semelhante a muitos contos e obras de Conrad, “Heart of Darkness” e “Lord Jim” - onde há um Narrador – Charles Marlow - que se situa em relação a uma plateia deveras cética.) Estes ouvintes céticos parecem animar o locutor a aumentar, a superdimensionar as narrativas já bizarras.

Quando é a vez de Bertram, este se entrega à aventuras na Espanha – tal qual o Childe Harold e o D. Juan – com referências à Desdêmona de Othelo (da peça de Shakespeare), “Andaluzas! Sois muito belas!” e “Senhores! Aí temos vinho d'Espanha, enchei os copos: - à saúde das espanholas!...” Claro, trata-se de uma Espanha idealizada, bucólica e festiva.

Aqui o amante da mulher casada, situação em que o marido faz papel de Otelo (e sabemos que Otelo acaba por matar Desdêmona, no drama shakespeariano), mas, surpreendemente, eis que a espanhola degola o marido! E ela também assassina o próprio filho! Eis a mulher enquanto Medeia: criminosa em nome da paixão. O moço foge com a adúltera assassina – mas depois ela o abandona. Depois o moço seduz uma virgem, rapta a jovem, perde no jogo, e vende a amante, que mata o novo 'amo' e afoga-se. Uma romântica sucessão de tragédias. (É que a Humanidade ainda não tinha vivenciado o século 20...)

O Narrador – Bertram – tece considerações sobre si-mesmo, “Eis aí quem eu sou: se quisesse contar-vos longas histórias do meu viver, vossas vigílias correriam breves demais.” Quem sou? O que 'narrou'? O que sabemos sobre quem 'narra'? As histórias se pretendem reais – ou tudo um excesso de leituras de clássicos românticos? A própria narrativa – com idas e vindas, avanços e retrocessos, interrupções, divagações – cria um clima de sonho, onde é a fantasia que seduz. O 'espírito crítico' é entorpecido, o leitor se deixa levar à galope.

Não pode faltar a cena de suicídio. Mas o moço se joga ao mar e é salvo. (Lembra aquela cena de Manfred, de Byron, quando o mago vai se jogar ao precipício, e é salvo por um caçador) . Aqui é mais trágico: o moço, em seu desespero, acaba por afogar seu salvador. Acaba sendo salvo pelo capitão – apenas para depois seduzir a mulher do capitão e causar mais tragédias. Bertram tem prazer em se menosprezar, é um masoquista – ou melhor, um sádico para consigo mesmo.

Há uma cena que tem referência àquela em Don Juan, de Byron, onde há uma jangada à deriva, em pleno Mediterrâneo, sem víveres, o que acaba por levar os náufragos ao canibalismo. Também encontramos referências aos “anjos perdidos de Milton”, da obra “Paradise Lost”, de John Milton, um clássico do século 17.

No mais, o conto de Bertram é cético, irônico, niilista, decadentista, gótico, sadomasoquista, onde há fatura de ceticismo e cinismo. Nisso, adentra um velho. Diz ter corrido muito mundo, foi poeta (outro?...!) a ponto de citar uns e tantos autores – Sêneca, Bocage, Dante, Shakespeare, Marlowe, Byron...

“Sêneca o disse: - a poesia é a música. Talvez o gênio seja uma alucinação e o entusiasmo precise da embriaguez para escrever o hino sanguinário e fervoroso...”

O velho sai. Fim da interrupção. Saberemos o que ocorreu na jangada (canibalismo?) Não sem antes as digressões – ao estilo Swift – sobre 'o que é o homem?', com mergulhos no Humanismo, na seara de Cervantes e Shakespeare. “O homem é uma criatura perfeita?”

Pois bem, não é. Temos a mesma antropofagia na jangada – vide o Canto II, XL a CXI, de Don Juan, de Byron – onde o tutor de Juan é devorado pelos demais náufragos. Aqui a sorte – ou azar! - cai sobre o capitão... o capitão agônico que ainda tem esperanças... e luta pela vida. O Narrador se volta para a plateia – tal um Iago em cinismo,

“O valente do combate desfalecia... caiu: pus-lhe o pé na garganta, sufoquei-o e expirou...
Não cubrais o rosto com as mãos – faríeis o mesmo... Aquele cadáver foi nosso alimento dois dias...”

Antes que o sono do torpor alcoólico venha, há outro recurso – chamar a taverneira, “Olá, taverneira! Bastarda de Satã!” - para encher as taças de vinho.

O próximo a falar de amor, morte e bebida é o artista Gennaro. Aprendiz de pintor no ateliê de um pintor, onde nutre paixão pela jovem mulher do mestre. Sempre e sempre a figura da mulher, entre bela e trágica. E, como se não bastasse, o mestre tem uma filha jovem, que seduz e é seduzida, e percebe-se grávida... Mas o moço ama a jovem esposa do mestre, não a filha que se entrega... A mocinha grávida definha até tirar a própria vida... cena trágica... o pai chora a morte da filha, e o moço seduz a jovem esposa.

É quando o mestre decide livrar-se do aprendiz tão nefasto: no alto de uma ravina, o discípulo deve julgar o próprio crime: atira-se ao abismo. “O velho riu-se: infernal era aquele rir dos seus lábios estalados de febre. Só vi aquele riso... Depois foi uma vertigem...” Mas, como vaso ruim não quebra fácil, o moço sobreviveu. No dilema de pedir perdão – ou se vingar. Mas o mestre se envenenara junto com a jovem esposa infiel.

Em seguida, outro conviva é narrador. Com epígrafe de “Hamlet”, e referências às obras de Petrarca, Shakespeare, Goethe, e Byron, o conto Claudius Hermann é um desafio dentro do próprio narrar – pois cada relato parece competir em horror. “Pois bem! Quereis uma história?” Os bêbados dizem que o moço está deveras 'romântico'! Claudius, cuja fala é poética, é um homem rico, e viciado em jogo.

“- Romantismo! Deves estar muito ébrio, Claudius, para que nos teus lábios secos de Lovelace e na tua insensibilidade de D. Juan venha a poesia ainda passar-te um beijo!”

O moço apaixona-se por uma senhora nobre, e adentra os aposentos da dama, embebedando-a, e seduzindo-a; passa a esconder-se sempre na antecâmara – até ousar raptar a duquesa – a idealização da mulher é sempre presente – 'ela é minha ou de ninguém mais', parece ser o lema do apaixonado. E é o mesmo que sofre quando a Mulher não aceita a idealização, não corresponde à adoração. Pois a mulher prefere morrer do que amar o raptor, este que se derrete em promessas de luxos e luxúrias. Claudius está tão ébrio que nem finda a história... assim é Arnold quem conclui a tragédia.

Mas então o foco está em Johann, um jogador, que numa questão de jogo, não hesita em travar um duelo. (Aliás, que romance romântico clássico do século 19 não tem ao menos uma cena de duelo? ) O narrador descreve um duelo com um moço louro. Depois o encontro com a 'amante' do moço. Para completar a tragédia, a moça seduzida é irmã do narrador...!

Tamanha é a bebedeira que os convivas adormecem. Um mulher adentra a taverna, apunhala Johann e acorda Arnold. A mulher revela-se uma prostituta. Arnold – ou seria Artur – é o 'moço louro'. (Há um romance romântico de J. Manuel de Macedo, de 1845, com esse mesmo epíteto, “O Moço Loiro”) Quem é a dama da noite? É Giorigia, a irmã do funesto (e agora defunto) Johann. Giorgia se envenena – e Arnold-Artur se apunhala e cai sobre ela. Mais “Romeu e Julieta” é impossível. “A lâmpada apagou-se.”

Percebe-se que desde a descrição do ambiente de orgia até o final trágico há uma cadeia de elos, uma narrativa a adentrar a outra, completando-a. Por exemplo, lancemos um foco sobre este final. Arnold não contou sua (dele) história ao ficar 'estranho à conversa'. Só quando ele se manifestou no conto de Claudius, é que Johann começou a história do tal moço louro, chamado 'Artur'. Depois sabemos quem é, de fato, o Artur. Saímos do 'plano narrativo' e caímos na realidade – dentro de uma ficção! É assim que as histórias se completam – igualmente aquelas bonecas russas, uma dentro da outra.

A necessidade de viver outras vidas e outros mundos é o que basicamente move estas viagens poéticas (e de poema em prosa) de Álvares de Azevedo, no impulso de viver o que jamais poderá viver – eis o que move 90% das narrativas fantásticas, de um Hoffmann, de um Poe, de um Borges, onde o autor basicamente ousa o que jamais ousaria no 'plano da realidade' , um plano demasiadamente prosaico e comu. A fantasia surgiria como um 'escape' desta mesmice que agride a alma de artista, de poeta, de literato.

O poeta Álvares de Azevedo não viveu – nem teve tempo para isso – mas fez o que lhe era humanamente possível no momento: leu e quase releu, mesmo sem tempo para digerir as leituras, de absorvê-las e remontá-las numa obra própria. Contudo mesmo no exercício da cópia, no veneno da influência, o poeta juvenil foi capaz de deixar sua voz, de se eternizar enquanto símbolo dos 'bons morrem cedo' ('the good die young'), do 'morra jovem' ('die young') , do 'viva como um suicídio' ('live like a suicide'), que será a glória dos 'ultra-românticos' do século 20, de Jim Morrison a Ian Curtis.

jul/ago/10
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sábado, 18 de setembro de 2010

sobre a poética de Lord Byron (2/2)








Sobre as obras de Lord Byron (1788-1824)
poeta romântico inglês

Alegorias dramáticas do Herói Romântico

2/2
O lado menos sombrio – ou o mais idealista ou satírico - do poeta romântico
Com o amadurecimento do Poeta – de byroniano a anti-byroniano – enquanto arquiteto e demolidor da imagem romântica do herói, destaca-se as obras onde evidenciam-se a pregação da Liberdade (como é o caso de Chillon) ou a visão satírica das aventuras de um romantizado Don Juan, aquele mesmo das tantas narrativas ibéricas (vide o Don Juan, de Molière e o Don Juan Tenório, de José Zorrilla)

Da mesma época de “Manfred” temos o belo poema “O Prisioneiro de Chillon” (1816), a tratar da ânsia de liberdade e da necessária luta contra as tiranias. O poema abre com um belíssimo soneto, que traduzo,

Eternal Spirit of the chainless Mind!
Brightest in dungeons, Liberty! thou art,
For there thy habitation is the heart -
The heart which love of thee alone can bind;
And when thy sons to fetters are consign'd -
To fetters, and the damp vault's dayless gloom,
Their country conquers with their martyrdom,
And Freedom's fame finds wings on every wind.
Chillon! thy prison is a holy place,
And thy sad floor an altar - for 'twas trod,
Until his very steps have left a trace
Worn, as if thy cold pavement were a sod,
By Bonnivard! - May none those marks efface!
For they appeal from tyranny to God.
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(“Eterno espírito da desacorrentada mente! / Brilhante na prisão, Liberdade! Tu és, / Pois lá tua habitação é o coração - / O coração cujo amor de ti só pode unir; / E quando teus filhos aos grilhões entregues – Aos grilhões, e à úmida cela em trevas, / A pátria deles conquista com o martírio deles, / E a fama da Liberdade usa asas no vento. / Chillon! Tua prisão é um lugar sagrado, / E teu triste chão um altar; pois pisado, / Até cada passo ter deixado uma marca / Gasta, como se teu frio piso fosse grama, /Por Bonnivard! - Ninguém deve apagar estas marcas / Pois elas clamam da tirania até Deus.” Trad. LdeM)

Esclarecemos: o protagonista é inspirado em François de Bonnivard, um patriota suiço, de Genebra, lutou, no século 16, contra o domínio da Casa de Sabóia, dinastia norte-italiana. O prisioneiro descreve a prisão, lugar sombrio, onde vive seu destino de penitência, junto aos seus irmãos, companheiros de luta. Antro que traz reminiscências da 'caverna de Platão', a alegoria do pensador grego,

They chain'd us each to a column stone,
And we were three-yet, each alone;
We could not move a single pace,
We could not see each other's face,
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(“Eles nos acorrentaram cada um a uma coluna de pedra, / E éramos três – mas cada um sozinho; / Não podíamos dar um simples passo, / Não podíamos ver a face um do outro,” III, LdeM)

O prisioneiro descreve o desfiladeiro ao redor da fortaleza, onde lá embaixo golpeiam as ondas vorazes, mas o prisioneiro não teme as rochas, antes o prisioneiro sorri ao contemplar a morte nas ravinas,

And then the very rock hath rock'd,
And I have felt it shake, unshock'd,
Because I could have smiled to see
The death that would have set me free
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(“E então a própria rocha teria tremido, / E eu tenho sentido tremer, não chocado, / Pois teria eu sorriso ao ver / A morte que teria me libertado”, VI, LdeM)

O prisioneiro – inspirado em François de Bonnivard – está preso junto a dois irmãos, aos quais não pode ajudar, enquanto vê impotente a morte deles. Certos críticos apontam aqui uma influência de “Inferno” de Dante, na cena em que o Conde Ugolino sofre acorrentado junto aos filhos.

Como forma de evasão, o prisioneiro se entrega à descrição lírica da Natureza, ao ouvir o canto de um pássaro, com algo de romântico e arcadista, que encontramos, por exemplo, nos poemas de Wordsworth (Lyrical Ballads; Michael, Uma Pastoral) e Keats (Ode ao Rouxinol)

A lovely bird, with azure wings,
And song that said a thousand things,
And seemed to say them all for me!
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(“Um amável pássaro de asas azuis, / E canção que dizia mil coisas, / E parecia dizê-la todas para mim!”, X, LdeM)

Sweet bird! I could not wish for thine!
Or if it were, in wingèd guise,
A visitant from Paradise;
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(“Suave pássaro! Eu poderia não desejar-te! / Ou se assim fosse, em disfarce alado, / Um visitante do Paraíso;” X, LdeM)

O protagonista chora a morte dos irmãos, presos no mesmo infortúnio. Ainda em seus devaneios, o prisioneiro é libertado, sem saber o motivo – se clemência ou destino. Após tanto tempo de prisão, o prisioneiro havia se acostumado à masmorra, ao escuro e ao frio, esquecera o que é a Liberdade – estava tão alienado da esperança, tanto quanto aqueles acorrentados na caverna da alegoria de Platão,

My very chains and I grew friends,
So much a long communion tends
To make us what we are:-even I
Regain'd my freedom with a sigh.
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(“Ficamos amigos, eu e minhas correntes, / Assim a longa companhia tende / A fazer-nos o que somos: -assim / Eu recuperei minha liberdade com um suspiro.” XIV, LdeM)
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Don Juan, herói byroniano em questão

Este é um extenso poema – incompleto – em 16 Cantos, sendo escrito de setembro de 1818 a maço de 1824, e alguns críticos consideram como uma amostra do amadurecimento do Poeta que assume um tom irônico diante do herói romântico. Herói que a própria obra de Byron ajudara a difundir por toda a Europa letrada, e daí até as colônias europeias.

Em Don Juan evidencia-se (tal qual nos primeiros Cantos de Childe Harold) a destilação (e fermentação) das tantas leituras e vivências – nesta ordem – do Poeta, em suas viagens pela Europa continental. Principalmente o Mediterrâneo, onde se destacam a Itália – ainda não unificada – e a Grécia – dominada pelos otomanos.

Vários autores recebem referência – positiva e negativamente – tais como Homero, Safo, Aristóteles, Juvenal, Horácio, Virgilio, Longinus, Santo Agostinho, Calderón, Shakespeare, Bacon, Congreve, Walter Scott, J. Milton, Dryde, Pope, Wordsworth, Coleridge, Southey, Sotheby, Moore, dentre outros. Vê-se bem o 'cânone' do Bardo romântico. E o Eu-lírico não perde uma oportunidade de citar um autor clássico ou da época – 'mania' que veio a contaminar o 'influenciado' Álvares de Azevedo.

O Eu-lírico narrador apresenta o herói, o protagonista, um hidalgo hispânico, que descende de uma nobre linhagem. A nobreza de nascimento significa nobreza de caráter? Veremos. A Obra e o Leitor é situado na própria narrativa. Situa a voz que narra, situa o poema enquanto 'épico', a estrutura – dividido em doze cantos (enquanto a narrativa se interrompe no 17º) – com muitas aventuras e peripécias. Tudo o que promete um 'romance picaresco' (na melhor tradição que contextualiza um “Don Quixote”)

Mas o Poeta despreza a Prosa tanto quanto despreza os 'clássicos' – desejar “substituir todos os que vieram antes”. Ou seja, o Autor não espera a autoridade de terceiros, de 'grande clássicos'. Cada poeta inventa suas próprias regras ('que ninguém sabe'). Aqui o romântico se liberta dos clássicos – mesmo a conservar a métrica, a rima, o verso, a estrofe. (Mesmo os pós-românticos, o simbolista Baudelaire, e o surrealista Rimbaud, preservam o uso do soneto e das demais formas clássicas.)

My poem 's epic, and is meant to be
Divided in twelve books; each book containing,
With love, and war, a heavy gale at sea,
A list of ships, and captains, and kings reigning,
New characters; the episodes are three:
A panoramic view of hell 's in training,
After the style of Virgil and of Homer,
So that my name of Epic 's no misnomer. (CC)
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(“Meu poema é épico, e pretende ser / Dividido em doze; cada livro contendo, / Com amor, e guerra, um temporal no mar. / Uma lista de navios, capitães, reins reinantes / Novas personagens; os episódios são três: / Uma panorâmica visão do inferno em processo, / Após o estilo de Virgílio e de Homero, / Assim que meu nome de Épico não é equivocada.” CC, LdeM)

O fazer poético, o mundo literário, as influências, os editores, os críticos, as publicações, tudo é comentado nos versos que se afastam da narrativa propriamente dita – o récit – e se perde em digressões. Ainda mais Byron, um desafeto a estes resenhistas e críticos, estes que criticam e não sabem fazer. Como é famosa a sátira de 1809 contra os 'críticos escoceses' ('English Bards and Scoth Reviewers')

No Canto I temos a descrição do ambiente e personagem, e o início das aventuras, mas a viagem pelo Mediterrâneo é relatada no Canto II, quando ocorre o episódio do temporal, levando a um naufrágio, e – devido a falta de alimentos – ao terrível canibalismo, na jangada à deriva. (Episódio que muito impressionou Álvares de Azevedo, segundo veremos.)

Depois o trágico e macabro episódio, sabemos que Don Juan foi atirado a uma praia, onde será encontrado por uma jovem grega. Ele ainda não sabe, mas está numa das Ilhas Cíclades, ao sul da península grega, e aquela espécie de Nausíaca (a mocinha que recebeu Ulisses na “Odisseia”) mostrar-se-á solícita e amável, a ponto de se apaixonar pelo jovem descenturado.

É assim que conhecemos a bela personagem Haidée, aquela mocinha apaixonada que será o refúgio de ternura para o herói sedutor (e seduzido!). Haidée é mais uma idealização de amor feminino do que uma realidade – ou melhor, é mais um contraponto as mulheres de antes e depois, na vida do herói. Haidée consegue unir desejo e ternura – enquanto as demais, no máximo, despertam desejo.

Assim esse 'Ulisses' moderno é salvo por sua 'Nausíaca' – e é o leitor (ou leitora) que espera o affair desse Don Juan. Mas haverá um sério impedimento – o pai da mocinha, como veremos. De início, a afeição resolve tudo. Como se comunicam? Ele não sabe grego, ela não sabe espanhol... Então, romanticamente, será o amor o nobre mensageiro...! Assim são várias stanzas dedicadas ao restabelecimento - e enamoramento – de Don Juan.

O eu-lírico – o Autor, o Poeta Byron – interrompe vez ou outra a narrativa para comentar ou ironizar. Quando Juan e Haidée tentam se comunicar, o Autor comenta os métodos de aprender idiomas com as jovens, principalmente belas jovens, e de que não foi assim que ele 'aprendeu' o inglês, “Tanto inglês eu não pretendo falar, / Ao aprender tal idioma com seus pregadores.” Em suma, o autor não perde uma oportunidade para ironizar os hábitos dos ingleses. No mesmo tom de um Swift (século 18) ou de um Oscar Wilde (século 19/20) .

Mas continuemos no idílio amoroso de Juan e Haidée. É assim amar e ser amado. Terá Juan esquecido os amores de outrora? Pois os sentimentos mudam; sabemos que o amor é inconstante (ainda que o Autor se revolte contra essa 'inconstância', nada pode fazer...), visto que o coração muda com o dia e a noite, e as nuvens, as estações. O Poeta odeia o amor efêmero e busca um 'amor constante'. (O mesmo ideal de Petrarca e Camões, como podem ver...)

O Eu-lírico não perde oportunidade de julgar o protagonista, a trama, a narrativa ('récit'), a desvelar as possíveis simbologias, onde certamente Haidée é uma espécie de Beatrice, aquele símbolo do amor singelo (ainda mais na primeira paixão de uma virgem) Este paralelismo (ou paródia, no sentido de 'narrativa paralela') se situa em relação a Dante e também Milton (se Eva pode ser a heroína da história), pois tratam-se de personagens femininas trágicas, pois as “tragédias findam-se em morte”, segundo sabe o Poeta.

O idílio de Juan e Haidée será interrompida e destruída pela chegada de um antagonista, o próprio pai da jovem grega. É justamente a intervenção do pirata Lambro que possibilita o ápice dramático. O pirata vem a cruzar os mares para afundar o amor dos jovens. Aqui há todo um conhecimento geográfico do Autor. Cenários no mar Mediterrâneo, o mar Egeu, o norte da África. Cenário das tantas sagas gregas, a Odisseia de Ulisses em sua volta para Ítaca...

O pirata Lambro é aquele tipo digno de sagas de piratas. Um homem astuto e paciente, acostumado ao comando, de temperamento forte. Acostumado às explorações marítimas, saque de outros povos. O personagem é moldurado pela descrição de belezas e riquezas da cultura grega e otomana. (Lembrar que a Grécia, na época, estava sob domínio otomano, e a Monarquia grega começaria em 1833 – durando até 1973, ora contando com apoio alemão ou britânico. Byron morreu justamente nas lutas de independência da Grécia, em 1823-24)

Em homenagem à Grécia há um poema dentro do poema, com 16 estrofes, entre as stanzas LXXXVI e LXXXVII, numa espécie de hino à cultura helênica – no mesmo sentimento que encontramos no Canto II de Childe Harold. Esta é uma parte de muitas referências, farta erudição. Em relação às chansons, baladas, Dante, Goethe, Homero, Shakespeare, Coleridge, Wordsworth, mais digressão, mais referências, a Ariosto, Horacio, Southey, mais Wordsworth, mais Homero, e Pope, Dryden, Boccaccio, ah, tantas leituras! É até pedante esta insistência autoral em ficar citando suas miríades de leituras – apesar de toda a fineza da ironia. (Está aqui a 'mania' do nosso romântico Álvares de Azevedo – em listar miríades de leituras e autores!)

Mas estou digressando”, se desculpa o Autor, sempre perdido entre leituras e vivências, out of time, fora do tempo, em vários tempos, em vários lugares, reais e imaginários – este 'esfumaçamento da realidade' também encontramos em poemas de Álvares de Azevedo, instáveis em épocas e lugares.

Isto porque o Autor – apossando-se do Narrador/Eu-lírico – permite-se divagar sobre o leitor ideal, imaginado, para o qual o escrito 'aparecerá exótico', aquele esperado “leitor gentil” a espera de algum conto exótico (aqui para rimar com “Quixotic”, quixotesco), “Ao leitor gentil do nosso clima sóbrio / Este modo de escrita aparecerá exótico” (“To the kind reader of our sober clime / This way of writing will appear exotic,” Canto IV, VI) O 'clima sóbrio' é uma referência a Grã-Bretanha, e seus habitantes, que 'torcem o nariz' para as digressões iconoclastas do Bardo – coisa que Sterne e Swift sempre provocaram, ou Rabelais e Voltaire, na França.

De digressão em digressão, atrasa-se o triste desenlace do idílio amoroso entre a jovem Haidée e o aventureiro Juan. Por que deve morrer um amor tão jovem, tão sincero? Até o Autor se comove... Algo aqui de “Romeo and Juliet” - e de Tristan & Isolda, com algumas referências a um tal rouxinol ('nightingale') – símbolo romântico por excelência, vide a peça de Shakespeare e a ode de Keats (Ode to a Nightingale).

Mas a presença do pirata Lambro – a interdição ao 'amor livre' – a autoridade paterna – a força de repressão – vem macular as estrofes onde a moça Haidée sente alegria e aflição, esperança e medo, enquanto Juan imagina-se diante de uma ameaça – mas é desprezado pelo prepotente patriarca. Eis o momento dramático (para arrepiar as leitoras!) quando Juan enfrenta o pirata e seus capangas. Ali o pai que Haidée obedece em submissão – e roga para que Juan também seja submisso! A moça se coloca entre o pai e o amante – quase dizemos que ela se oferece em sacrifício... A filha enfrenta o pai em nome da paixão. Mais romântico, impossível...!

Mas Juan é ferido ao enfrentar os piratas e em seguido vai preso para um navio, que deve seguir para o Oriente. O Narrador se comove com as 'vicissitudes' que narra – um jovem rico e belo, Don Juan, a sofrer assim por causa de um aamor sincero. (As leitoras, certamente, se comovem...) Haidée sofre de amor, enquanto Juan é embarcado para ser vendido como escravo. O herói sofre nas feridas o que a jovem sofre no peito. É quando Haidée morre de amor em ultraromântica poética narração. A Beleza morre em nome do Amor, pois “Mais cedo ou mais tarde o Amor é o seu próprio vingador” (LXXIII) E ferido e algemado, D Juan está no navio que navega para a Turquia, onde será um pobre escravo entre outros tantos prisioneiros.

Quem são os demais prisioneiros? Vítimas de piratas, de corsários, de turcos armados até os dentes. Há uma trupe de artistas italianos – que inserem comédia na tragédia: ironias com o universo italiano [absorvido nas leituras/ vivências, pois os Cantos III e IV foram escritos em 1820, quando Byron morava na Itália]. Em suas digressões, o Autor precisa encerrar o Canto IV, e debate-se como narrar para agradar leitores e editores, como manter um 'estilo' – tal um Ariosto ou um Fielding – como sobreviver para a posteridade. Tudo isso NO poema!

No plano narrativo, temos o mercado de escravos – uma 'salada' de nacionalidades. Uma digressão sobre a escravidão, a desumanização do Outro, o uso (compra e venda) de pessoas, um mercado mantido pela “Sagrada Porta” (ou seja, o Império Otomano). Pachás negociam escravos para algum grão-vizir ou para o Grande Sultão. Mas o canto já finda, por demais longo. No próximo, o leitor saberá para onde vai o herói Don Juan.

O Canto V abre com digressões autorais sobre 'poetas passionais' ('amatory poets'), certamente os sentimentais, que se envolvem nos relatos, enquanto discute a 'impessoalidade' de Platão, Ovídio, Petrarca, mestres de 'estilo'. Enquanto isso descreve a fronteira entre Europa e Ásia, ali no Mar Egeu. O Bósforo, o Ponto Euxino, e a bela Constantinopla. Seus recursos estilísticos são a mescla de conhecimento geográfico britânico da época mais mitologia grega (um estilo meio Defoe mais Homero...)

No meio dos escravos, o protagonista se destaca – tinha uma 'aparência de inglês' ('English look') ao permanecer altivo, com sangue-frio. (Aliás, este Don Juan é um hispânico demasiadamente anglo-saxão...!) Um outro escravo busca fazer amizade com jovem tão distinto meio a multidão de miseráveis. Juan não tem aparência de 'cão servil'. Aqui toda uma visão eurocêntrica dos povos orientais – onde se confundem turcos, russos, caucasianos, armênios, etc – no que são marcados pelo 'exótico' – povos curiosos para a ávida curiosidade dos leitores europocêntricos.

É este o choque cultural entre o Ocidente e o Oriente que foi muito explorado nos chamados 'contos orientais' – Lara, Giaour, Sardanapalus – onde as personagens exóticas, de turbante e sabres desfilam a sequestrarem mocinhas indefesas. E eis ali o cristão Juan meio aos servos turcos, como se fosse mercadoria de troca! Ah, a bela decadência do nosso bom mocinho europeu!

O Poeta não poupa ironias ao 'desmitificar' as 'fantásticas viagens' aos países estrangeiros, que 'qualquer idiota' publica e 'exige aplausos'. Aliás, o que não faltava na Inglaterra e França eram os livros sobre viagens, relatos de viagens, paródias de relatos de viagens, como os clássicos “Robinson Crusoé”, de Defoe, e “Viagens de Gulliver” de Swift, ou “Cândido” de Voltaire (mais inspirado nas 'digressões' dos ensaios de Montaigne...)
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À narrativa se mesclam considerações sobre o narrar, sobre outros narradores, sobre as circunstâncias em que se processam o ato de compor e escrever, sobre a época da escrita, sobre as leituras antigas e recentes – tudo forma um mosaico que enreda o leitor – no espaço de poucas stanzas, o Autor faz referências à mitologia grega, narrativas bíblicas, clássicos latinos, costumes ingleses, anedotas italianas, considerações filosóficas cheias de ironia.

É difícil acompanhar as voltas e reviravoltas, as vicissitudes deste herói picaresco Don Juan de Byron – que os críticos consideram diferente daquele Don Juan tradicional do folclore ibérico, típico das comédias de um Tirso de Molina – pois se o hispânico é mulherengo, debochado, e até perverso, em Byron, o Juan é seduzido, é sincero (e por isso irônico) e sempre a lutar pelo que considera justo.
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Sendo Don Juan a obra final de Byron, deixada pois incompleta, não podemos deixar de comparar com a primeira – Childe Harold – e observar as mutações, avanços e retrocessos da arte poética do Autor. Há claras diferenças. Se Harold é melancólico, é um tanto Hamlet (assim como Manfred é um anti-Fausto), Juan é um sujeito vitalista, instintivo, aventureiro, irônico.

Contudo, se traçamos um plano comparativo, a personagem mais plena – mais shakesperiana, digamos –, da obra Duan Juan, é a jovem grega Haidée – bela , singela, bucólica. Mais uma ninfa salvadora do que uma adolescente. É a presença de um sentimentalismo deveras 'lírico' num poema que se destaca pelo 'satírico'.

Na verdade, todo o meu interesse – enquanto leitor – se esgota após a morte de Haidée. Há um exagero digressivo (julgado 'estilístico) quando o essencial já foi dito. [Assim como é difícil ler os exageros cultistas de um Padre Vieira ou as figurações fáusticas-barrocas de Faust II.] Ler a sátira pela sátira não faz, hoje, mais sentido. Para ler Don Juan – e entender quem são os 'ironizados' – precisaremos de notas de rodapé.

Se comparamos Autor e Protagonistas, podemos dizer que Juan é o Byron errante, exilado – não o jovem nobre entediado, aquele Harold, cheio de sonhos. Pois os sonhos foram destruídos em contato com a realidade – esta mesmo descrita no poema final – onde encontramos naufrágios, canibalismo, piratas, escravidão, exploradores, cossacos, mercenários, e não aquela natureza maravilhosa, aqueles amores eternos, aqueles heróis nobres, aqueles patriotas que morrem pela dignidade.
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Influências da Poética de Lord Byron
nas artes plásticas e na música

A poética arrebatada de Lord Byron influenciou não apenas outros poetas, mas também pintores, escultores e músicos. Um pintor que se notabilizou por espírito romântico é William Turner (1775-1851), na Inglaterra, que se inspirou em Byron. O pintor Eugène Delacroix inspirou no Prisioneiro de Chillon para fazer um expressivo quadro. Também o artista William Daniell (1769-1837) retratou Bonnivard aprisionado.
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Entre os músicos, temos Paganini, Liszt, Strauss, Wagner, com destaque para o compositor L H Berlioz (1803-1869), que musicou não apenas Byron (obra 'Harold na Itália', 1834), mas também Goethe (a obra 'Danação de Faust', 1848)
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jul/ago / 10

por Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com

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Notas


(1)“Seja como for, o romantismo é um fato histórico e, mais do que isso, é o fato histórico que assinala, na história da consciência humana, a relevância da consciência histórica. É pois, uma forma de pensar que pensou e se pensou historicamente. Com efeito, o Romantismo é antecedido pelo Século das Luzes, que abandonou uma visão de História que se mantivera pelo menos formalmente, apesar da contestação maquiavélica do Renascimento, desde a instauração do Cristianismo. [...]


Mas o Romantismo pôs de lado não só o enfoque teológico judio-cristão, como também a concepção clássica da história, porque no século XVIII, embora já se fale de uma história natural das instituições, e pensamento dominante é aquele que considera a História como produto das 'vidas ilustres', do sábio, filósofo, herói, rei, gênio, cuja razão e ação (rei-filósofo, déspota esclarecido), ainda que às vezes toldadas pelas paixões e pagando por estas falhas trágicas o preço heróico, iluminam e melhoram o homem, produzindo o aperfeiçoamento ou progresso nas suas instituições. [...] p.14


“assim, porque tudo se faz 'história' no romantismo, a História se faz então 'realidade', integrando historiograficamente o estudo do desenvolvimento dos povos, de sua cultura erudita e de seu saber popular (folclore), de sua personalidade coletiva ou espírito nacional, de suas instituições jurídicas e políticas, de seus mores e práticas típicas, de seus modos de produção e existência material e espiritual, cada vez mais nas linhas de um tempo cada vez menos mítico ou idealizado. [...] p. 18


artigo de Guinsburg, “Romantismo, Historicismo e História” em “O Romantismo”, GUINSBURG, J (org.) SP: Ed. Perspectiva, 2002. 4a ed.


(2)“O amor romântico oscila entre extremos de abnegação e sacrifício, quando exaltado, e de libertinagem e deboche suicida (“Rolla”, de Musset), quando decepcionado. Mas sempre em íntima relação com o estado de fruição estética, incorporando a antecipada melancolia que o envenena diante da transitoriedade da beleza “Beauty that must die” - que Keats exprimiu na sua “Ode on Melancholy”, o amor é, como dirá Max Scheler, mais a consciência reflexiva do amor do que o próprio amor. Fantasma do desejo insatisfeito e indefinido, o amor será,a ssim compreendido, um autêntico paradigma da sensibilidade romântica, de que foi a motivação psicológica fundamental e o tema prioritário.


O pathos da rebeldia, implícito ao individualismo egocêntrico, desse desejo insatisfeito e indefinido, sublinhou-se no satanismo, transformando a sede de conhecimento e de poder na causa de um conflito dramático de proporções teológicas, pelo qual o homem não é o único agente responsável. Como potência espiritual externa de atuação ambígua, maléfica e benéfica, de que o homem se aproxima, com quem pactua por vontade própria, e contra quem se debate, Lúcifer, anjo caído e acólito de Deus, instiga a sede do poder e do conhecimento, a fim de tornar a consciência, tal como no Manfred de Byron, presa da morte e da consciência de culpa. Adversário e aliado, antagonista necessário que transfigura a árvore do Bem e do Mal na árvore da vida, ao encorajar o homem a, infringindo as interdições de Deus-Pai, defrontar-se com o seu destino e com a morte, Satã, fonte do vigor do espírito e da imaginação para William Blake, “aquele que fala aos homens nos desejos do coração e nos sonhos da alma” (Vigny), é o símbolo maior da sequiosidade ambivalente da alma romântica, de sua introversão, de seu desdobramento interno, do conflito entre as suas aspirações ideais e a sua impotência real: símbolo de tudo isso que o Primeiro Fausto de Goethe, já num plano que ladeia e supera o Romantismo, captou sintetizou como trágico embate do destino humano.


A ascensão e a descensão, a subida e a queda vertiginosas, verdadeiros padrões retporicos, que tipificam, na lírica e no romance, a conduta espiritual dos românticos, acompanharam a 'turbulência fáustica' em que se forjou 'o escudo de sublimação ou do ideal do eu' [RÓHEIM, Géza]” (p. 73)

Artigo “A Visão Romântica” de Benedito Nunes, em “O Romantismo”, GUINSBURG, J (org.) SP: Ed. Perspectiva, 2002. 4a ed.

O Autor lembram também os heróis de Victor Hugo, o 'Childe Harold', de [Lord] Byron, o herói romântico e seu 'titanismo'.
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sábado, 11 de setembro de 2010

sobre a Obra poética de Lord Byron (1/2)







Sobre as obras de Lord Byron (1788-1824)
poeta romântico inglês

Alegorias dramáticas do Herói Romântico

1/2

No contexto do Iluminismo e da ascensão burguesa ao poder, um movimento artístico – não apenas literário – se destacou na Europa – principalmente Alemanha, França e Inglaterra – antes de influenciar as colônias americanas. Trata-se do movimento romântico.

Advindo do chamado 'século das Luzes', o sentimento romântico contrapõem-se à 'contenção lírica' do Classicismo com a idealização do poeta original a expressar de forma original um sentimento pessoal. É o início do hodierno culto ao Indivíduo, que passa a expressar sua consciência íntima e estética na obra que recebe enfim uma assinatura (e não apenas tenta se 'adequar' a uma tradição e/ou convenção poética). (1)

Não se pretende aqui analisar o Romantismo. É um assunto cuja vastidão impressiona. Livros e livros já foram escritos e enchem estantes, prateleiras, HDs e 4shares. Então, como se trata do MEU Cânone Ocidental, abordarei a obra de dois poetas que acompanharam a minha juventude – Lord Byron e Álvares de Azevedo.

E, num segundo plano, teceremos comparações com outros literatos – Milton, Wordsworth, Coleridge, Keats, Shelley, Goethe, Schiller, Victor Hugo, dentre outros. (Antes destes temos os pré-românticos, que seriam Thomas Parnell, Thomas Gray, Edward Young, dentre outros do século 18, os chamados “Graveyard poets”, poetas que tematizam os cemitérios, local também de interesse dos 'ultra-românticos')
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É um assunto vasto, repetimos, e o foco em dois poetas se justifica pela minha preferência dentre tantos. Não leio apenas os dois poetas resenhados, mas eles se situam no 'centro canônico' do meu paideuma (como diria o poeta Ezra Pound).

Segundo Ezra Pound, Paideuma é "a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos". Ou seja, a seleção de um Cânone a nortear e justificar a Leitura.

Na época do Romance burguês, de Walter Scott, Dickens e Victor Hugo, temos o poeta romântico Lord Byron a tecer narrativas em versos, seus longos 'poemas narrativos', que arrebatam os leitores pela forma, pelo lirismo e pelas aventuras de um emblemático 'herói byroniano'. Algo de auto-biografia, digno de 'celebridades' e algo de idealização de cenários e dramas.

Os 'poemas narrativos' são o destaque na Bibliografia do bardo romântico (e também na Obra de seu influenciado Álvares de Azevedo, poeta brasileiro), com os extensos “Childe Harold's Pilgrimage” e “Don Juan” - um no início da carreira, outro ao final, deixado incompleto, devido a morte precoce do Poeta – , bem como 'contos em versos, geralmente com temáticas orientais - “The Giaour”, “The Bride of Abydos”, “The Corsair” e “Lara”, além de 'dramas' em versos – com destaque para “Sardanapalus”, “Manfred” e “Cain” - que englobam um ciclo de exaltação e melancolia, aventura e desventura.

Lord Byron tem algo de clássico assim como Baudelaire (ou o brasileiro Gregório de Matos, do século 17), mas tratou o 'classicismo' com retoques peculiares, devido a sua própria biografia – aqui o Autor apodera-se do Estilo tradicional para a criação da própria Obra. As vidas de Byron e Baudelaire (e Gregório de Matos) se aproxima pela ânsia sensualista, a 'vida de pecados', o gosto pelo luxo e pela luxúria.

O herói byroniano é aquele de um poeta solitário, inimigo da tirania (e assim 'amigo da liberdade'), um jovem belo e igualmente misterioso, com um passado não revelado. Assim é a análise de BARBOSA, O C. de Carvalho, em “Byron no Brasil: traduções”, SP: Ática, 1974, “As obras de Byron que melhor desenvolvem o mito byroniano são Childe Harold's Pilgrimage, um longo poema lírico-descritivo, e os contos metrificados: The Giaour, The Bride of Abydos, The Corsair, Lara, The Siege of Corinth, Parisina, Mazeppa. Essas são as mais representativas: mas inúmeras outras se ligam a elas pelo espírito e intenção: Manfred, os dramas históricos, os dramas bíblicos, e a sua obra lírica em geral.

Childe Harold, e os chamados 'tales', que narram histórias de amor, vingança e morte em ambientes exóticos – The Giaour, The Bride of Abydos, The Corsair e Lara – foram em seu tempo verdadeiros 'best-sellers', e, como escritor de 'best-sellers', Byron escrevia para seu público. Desde que alcançara a popularidade literária com a publicação dos dois primeiros cantos de Childe Harold's Pilgrimage, sabia que seria lido, e ia então ao encontro do gosto de seus leitores, oferecendo-lhes exatamente o que queriam. Através desses poemas, Byron foi compondo e desenvolvendo a imagem do herói byroniano, caracterização máxima de herói romântico, um ser demoníaco e fatal, de aspecto sombrio e misterioso, sob cujas feições belas e pálidas se escondem paixões violentas, sentimentos terríveis e indefinidos. De linhagem nobre, ele é orgulhoso, arrogante, rebelde, indomável, e seu passado encerra alguma ação maligna ou crime misterioso. É, portanto, um homem solitário, torturado pelo remorso. Sente que nada tem em comum com seus semelhantes – é diferente, superior. Esses, por sua vez, temem-no, e o evitam.” (p. 17-18)
Segundo a Autora algumas das características das obras se evidenciam, tais como, retórica e lirismo, digressão e narrativa, descrição e ação, mas com imagens óbvias e rimas forçadas, até uma sintaxe 'torcida' do inglês.

A Autora estuda os tradutores brasileiros do Lord inglês, ao comparar as várias traduções. Segundo ela, os tradutores queriam ser mais retóricos e mórbidos que o Byron original – ou então traduziam o inglês com uma leitura influenciada de Álvares de Azevedo. Ou seja, muitos tradutores deram um 'toque alvaresiano' aos poemas traduzidos, com 'exageros funéreos', sendo mais sombrios que o riginal, mais para o irônico.

Os tradutores mais conhecidos são o próprio Álvares de Azevedo, Castro Alves (que traduziu “Darkness” e “A Cup formed from a Skull”), Fagundes Varela (traduziu trechos de “Childe Harold”)

Esta diferença entre o Byron original e o Byron traduzido leva a uma análise da diferença entre os aspectos estéticos e temáticos do próprio Byron – que pode ser byroniano e anti-byroniano, quando ironiza a si-mesmo.

O outro Byron, o não-byroniano, é ao mesmo tempo, sob um aspecto negativo, o autor das sátiras à maniera de Pope em dísticos heróicos que tentam, inutilmente, evocar o estilo elegante e compacto do modelo; [...]

É um Byron inteligente, perspicaz, engraçado, irreverente. É o anti-Byron, e o Don Juan é essencialmente o anti-Childe, o anti-Conrad, o anti-Lara. É a negação do byronismo pelo próprio Byron, o Cervantes de seu próprio mito.” (p. 18/19)

Diferença que Álvares de Azevedo comenta em seu “Lira dos Vinte Anos”, quando faz a 'transição' de Ariel para Caliban (segundo veremos no próximo ensaio), pois percebe-se igualmente 'ambíguo', o jovem lírico e o poeta satírico, o tímido e o desiludido, o amoroso e o trágico. Assim apresenta-se enquanto 'voz poética' dividida – numa 'síndrome' de Médico e Monstro.

Um dos aspectos não-datados de Byron são justamente os olhares metalinguísticos sobre si-mesmo, sobre o 'fazer Poesia'. É um aspecto autoral que se avoluma ao longo da Obra. Os dois primeiros Cantos de “Childe Harold” ainda seguem um romantismo classicista (se podemos dizer assim...), mas os Cantos III e IV – escritos mais tardiamente – são bem diversos dos primeiros. Mostram um 'amadurecimento' da própria Consciência Autoral debruçada sobre a Obra.

Uma Poesia que fala de Poesia e Poetas. Uma Poesia influenciada pela Poesia, aquela resultante de um excesso de leituras digeridas (e não-digeridas). Uma leitura do mundo antes de vivenciá-lo (se Byron pode viver a vida adulta e em vários países, Álvares de Azevedo, em comparação, aqui no Brasil, morreu jovem e sem sair de sua terra, daí as experiências de Byron integrarem à obra poética, ao contrário de Álvares, mais vivida no 'plano imaginário', do possível...)

O máximo da sátira (e auto-sátira) é visível na obra “Beppo”, escrita na Itália, na mesma época que “Don Juan”. Em “Beppo”, podemos encontrar um Autor metalinguístico, visível nas digressões do eu lírico que funciona como Narrador (este é um 'poema narrativo'), dado a meditações e ironias sobre o 'fazer poesia' e o papel do Poeta.

O Eu lírico declara seu amor pela Itália – uma Itália idealizada em contraponto a Inglaterra hipócrita – enquanto critica o tradicionalismo britânico. O Poeta adora uma sublime arte italiana – assim também as belas italianas – mais pelas diferenças com relação às estéticas inglesas.

“I love the language, that soft bastard latin,
Which melts like kisses from a female mouth”
(XLIV)
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“England! With all thy faults I love thee still !
I said at Calais, and have not forgot it;”
(XLVII)
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“This is the case in England, at least was
During the dynasty of Dandies, now [...]”
(LX)
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(“Eu adoro o idioma, este suave latim bastardo, / Que derrete igual ao beijo de uma mulher”, XLIV; “Inglaterra! Com todas as tuas faltas, ainda te amo! / Disse isso em Calais, e não esqueci;”, XLVII; “Era o caso da Inglaterra, ao menos era / assim durante a dinastia dos Dândis, agora [...]”, LX)

Enquanto auto-exilado o Poeta adota sentimentalmente a nova Pátria. (Encontramos algo semelhante no Narrador de “The Marble Faun” - O Fauno de Mármore – do norte-americano Nathaniel Hawthorne, segundo veremos )

O eu-lírico, enquanto Narrador, perde-se em digressões, perde o 'fio da meada', a deixar a estória 'fora de prumo',

To turn, - and to return; -the Devil take it!
This story slips for ever through my fingers,
Because, just as the stanza likes to make it;”
(LXIII)
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(“Ir e voltar! O diabo o leve! / Este relato vaza entre os meus dedos, / Pois, é assim mesmo que a estrofe faz;” LXIII)

Esta característica de digressão e meditação esta presente deste os primeiros Cantos de “Childe Harold”, mas se acentuando nos Cantos finais, escritos na maturidade poética. Assim, alguns críticos apresentam uma leitura em 'duas partes' – o primeiro Childe (Cantos I e II), escrito em 1812, e o segundo Childe (Cantos III e IV), escritos em 1816 e 1817/18.
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No primeiro Childe temos o jovem nobre (“Childe” refere-se justamente ao nobre ainda sem título, não é ainda “Lord”) que, igual a todo aristocrata inglês, vai dar um passeio pelo 'Continente' – ou seja, a Europa – para 'educar-se', conhecer o mundo além das Ilhas Britânicas. Em suas perambulações, como todo bom nobre inglês, o protagonista entra em contato com a vida, uma vida que não reserva visões românticas – pois o idílio é mais idealizado do que vivido.

Assim, o jovem Harold passa pela península ibérica, Portugal e Espanha, na época do domínio napoleônico. Apresenta a cultura hispânica com suas resistências e seu lado lúdico-trágico, como as lutas de touros (que, um século depois, serão temas de obras de outro anglo-saxão, o norte-americano Hemingway).

Em seguida, o jovem inglês adentra as ruínas gregas em Atenas, onde deslumbra o que sobrou da glória da cultura clássica. Não hesita em denunciar um nobre inglês que atuou junto ao governo turco – então a potência hegemônica na região – para conseguir acesso aos monumentos helênicos. O de triste fama, Lord Elgin, o pior saqueador, insensível espoliador das relíquias gregas, aqueles monumentos que os godos e os turcos e o Tempo tinham poupado e tinham que ser um inglês a surrupiar tudo! Ó pobre England! (Realmente, isso sabemos bem, a Britannia navegou pelos sete mares a saquear relíquias e tesouros para armazenar em seu pomposo British Museum...)

Estes versos, onde o jovem nobre encontra-se diante do ideal e o vivido, estão intimamente unidos às vivências do Autor, quando de suas viagens pelos Continente, em visitas a Portugal, Espanha, Itália, Albânia, Grécia, Turquia. Enquanto os Cantos III e IV foram escritos no auto-exílio, quando o poeta abandonou definitivamente sua vida na Inglaterra. No Canto III temos mais auto-referência, onde o Narrador (o eu lírico) fala enquanto Autor, e não mantem o foco em Childe Harold (isto é, o Autor passa a ocupar o foco antes dado ao Protagonista).

O Autor aborda o passado nebuloso – antes parte do 'mistério' que envolvia o jovem nobre - “desde os meus jovens dias de paixão – alegria ou dor,” ("Since my young days of passion – joy, or pain," IV), onde o Autor não se confunde com a 'voz' de Harold. Quem é o Autor? Nada além de um criador de personagens, ou um artista da linguagem. Enquanto o protagonista, Harold, é ainda aquele que sofre por idealizar – e depois prcisar encarar a 'realidade', 'a vida em si mesma'. Desse modo, Harold continua deslocado, auto-exilado ('self-exiled') e solitário. “O auto-exilado Harold perambula ainda”, segue adiante, cada vez mais longe de casa, rumo a aventuras só existentes em sua própria mente. (“Self-exiled Harold wanders forth again, / With nought of hope left, but with less of gloom;”(XVI)

A narrativa não é menos sobre a viagem 'dentro de si mesmo' do que a viagem no Mediterrâneo, nos Alpes, nos mares revoltos, nos campo s de batalha. Por que não aceitamos o mundo tal como é? Por que existem tais 'descontentes', tais 'flutuantes'?

O poeta diante do campo de batalha lembra o belo e o horrível. “Thou fatal Waterloo!”. Temos a beleza no desfile das tropas e, em seguida, o horror dos cadáveres desmembrados no conflito. (Imagens que encontramos em “Cartuxa de Parma” de Stendhal e “Os Miseráveis” de Victor Hugo, onde a glória militar é um 'verniz' sobre a crueldade da guerra)

Não sabemos se o poeta foi realmente até Waterloo. Byron viajou para o continente europeu em abril de 1816, quase um ano após a terrível batalha, onde Napoleão assistiu a derrota de suas tropas. Certamente terrível este embate entre as tropas francesas, inglesas e prussianas! Mas Byron sequer poderia imaginar o horror da Guerra Civil norte-americana, ou as Grandes Guerras Mundiais do século 20!

Para fugir desses cataclismas humanos, o poeta busca consolo numa idealização da Natureza, da vida bucólica – certamente influenciado por classicistas e arcadistas – presentes nos versos de Worsdworth e Keats, onde sempre a Natureza é um tesouro de mistérios e o homem pastoral é bom. É aquele 'bom selvagem' de Rousseau em plena forma. (O mesmo encontraremos na segunda metade de “O Fauno de Mármore”, The Marble Faun, de N. Hawthorne, cujo cenário é a vida campestre no norte da Itália.)

Está idealização da Natureza também surge no final de “O Prisioneiro de Chillon” (veremos a seguir), em comparação com os poemas bucólicos (as 'baladas líricas') de Wordsworth e as odes de Keats,

Are not the mountains, waves, and skies a part
Of me and of my soul, as I of them?
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(“Não são as montanhas, ondas, e céus, uma parte / De mim e de minha alma, como eu delas?” LXXV)
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Esta presença da Natureza é tão sensível no romantismo quanto no Arcadismo. Mas com uma diferença: o poeta romântico não é tão 'impessoal', pois a forma de ver o 'natural' passa a ser coberto pelo 'sentimental'. Mas também encontramos a Natureza hostil, força incontrolável que ameaça o eu-lírico (assim o exemplo em “Manfred”, segundo veremos),

The sky is changed!--and such a change! O night,
And storm, and darkness, ye are wondrous strong,
Yet lovely in your strength, as is the light
Of a dark eye in woman! Far along,
From peak to peak, the rattling crags among,
Leaps the live thunder
! [...]
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(“O céu transmuta-se! - e que mudança! Ó noite, / E tormenta, e trevas, são força assombrosa, / Já amável em tua força, igual a luz / De um olho escuro de mulher! Longe ao longo, / De pico a pico meio a rochedos trêmulos, / Retumba o trovão vivaz! [...] XCII)
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Sky, mountains, river, winds, lake, lightnings! ye,
With night, and clouds, and thunder, and a soul
To make these felt and feeling, well may be
Things that have made me watchful; the far roll
Of your departing voices, is the knoll
Of what in me is sleepless,--if I rest.
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(“Céu, montes, rios, ventos, lagos, raios! Vós, / Com a noite, e nuvens, e trovão, e alma / A fazer este sentir e sentimento, devem ser / Coisas que fazem-me atento; o ressoar / De tuas vozes em fuga, é o auge / Do que em mim é insone, - se eu repouso. [...] XCVI)
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Esta posição do homem diante da Natureza á mais uma fuga da 'civilização' , da 'cultura', que é rejeitada pelo poeta misantropo, que prefere viver entre faunos e ninfas na inocência silvestre. O homem na Natureza foi tema de vários pintores românticos, entre eles o inglês Turner e o alemão Gaspar Friedrich.
O poeta misantropo? Sim, em muitos aspectos o ser em desacordo com a vida social hipócrita e mesquinha,

I have not loved the world, nor the world me;
I have not flattered its rank breath, nor bowed
To its idolatries a patient knee, -
Nor coined my cheek to smiles, nor cried aloud
In worship of an echo; [...]
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(“Não tenho amado o mundo, nem o mundo a mim; / Não tenho bajulado posição, nem reverenciado / Suas idolatrias ao ajoelhar paciente, / Nem distribuído sorrisos, nem louvado no culto d'um eco;” [...] CXIII )
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I have not loved the world, nor the world me, -
But let us part fair foes;

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(“Não tenho amado o mundo, nem o mundo a mim, / Mas deixe-nos afastar os inimigos;” [...] CXIV )
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O Canto IV de “Childe Harold” foi escrito e publicado em 1817/18, quando o Poeta vivia em Veneza, no norte da Itália (ainda não era uma 'nação', mais a se assemelhar a uma 'colcha de retalhos'...), a lembrar seu passado que o exilara da Inglaterra, a pátria distante, amada e rejeitada.

O próprio Poeta lembra o 'intervalo de oito anos' entre os primeiros Cantos e o derradeiro, na conclusão das peregrinações do jovem Harold. Assim muito do narrado é vivenciado – ou uma idealização de fatos vividos – mais que os Cantos I e II, onde 'destila' as influências de leituras – que são comparadas com o 'mundo real'.

Assim há todo um 'olhar de turista' – pois os cenários incluem Espanha, Grécia, Itália, Albânia, Turquia, com destaque para as cidades de Atenas, Veneza, Roma, Constantinopla/Istambul – a derramar-se em descrições, ora exaltadas, ora irônicas, sobre outras culturas, povos, civilizações – a sentir todo o peso da História.

A thousand years their cloudy wings expand
Around me, and a dying glory smiles
O'er the far times [...]
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(“Mil anos abrem suas nubladas asas / Ao meu redor, e uma Glória agônica sorri / Sobre os tempos remotos, [...] I)
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Os versos se nutrem da 'cor local', em aclamações diante de Veneza (“a ti, bela Veneza!”), em referências às peças de Shakespeare - que se passam nas terras italianas (a Veneza de Shylock, “O Mercador de Veneza”, ou Othelo; ou a Verona de “Romeu e Julieta” e “Os Cavaleiros de Verona”; ou a Pádua de “A Megera Domada”), em amostras de 'adoção' de uma nova pátria – que fascinava o jovem nobre tanto quanto o Bardo em suas peças.

The commonwealth of kings, the men of Rome!
And even since, and now, fair Italy!
Thou art the garden of the world, the home
Of all Art yields, and Nature can decree;
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(“A comunidade dos reis, os homens de Roma! / E desde então, e agora, bela Itália, / Tu és o jardim do mundo, o lar / De todo criar Arte, e ordenar Natureza;” XXVI)
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Esta adoração pela Itália idealizada, sublimada desde os 'tempos de glória', os clássicos latino – Horácio, Ovídio, Virgílio, Cícero, Sêneca -, terra dos humanistas renascentistas – Boccaccio, Dante, Petrarca, Ariosto, Da Vinci, Michelangelo, Rafael - está evidenciada também em obras de Goethe (“Elegias Romanas”), Shelley, Keats , Stendhal (“Cartuxa de Parma”), Victor Hugo, Hawthorne (“Marble Faun”), Hemingway (“Adeus às Armas”),

Italia! O Italia! thou who hast
The fatal gift of beauty, which became
A funeral dower of present woes and past,
On thy sweet brow is sorrow ploughed by shame,
And annals graved in characters of flame
.
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(“Itália! Ó Itália! Tu tens / A fatal dádiva de beelza, que tornas / Um funéreo dote de aflições atuais e passadas, / Sobre teu cenho é mágoa lavrada por vergonha, / E arquivos gravados em caracteres de chama.” XLII)
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Nem pretendemos comentar os 'deslizes' históricos do Autor – é tudo aceito pela 'licença poética' – Roma é símbolo tanto da Grandeza quanto da Decadência.

Yet, Italy! through every other land
Thy wrongs should ring, and shall, from side to side;
Mother of Arts! as once of Arms; thy hand
Was then our Guardian, and is still our guide;
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(“Ainda, Itália! Por toda outra terra / Teus erros ressoariam, de um lado a outro; / Mãe das Artes, outrora das armas; tua mão / Era então nossa guardiã, e és ainda nossa guia; XLVII)
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O Rome! my country! city of the soul!
The orphans of the heart must turn to thee,
Lone mother of dead empires!
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(“Ó Roma, meu país! Cidade da alma! / Os órfãos do coração devem voltar-se a ti, / Mãe solitária de impérios mortos, [...]” LXXVIII )

Esta jornada na Cidade Eterna revisita as lendas da fundação de Roma, onde os dois gêmeos – Remo e Rômulo – foram amamentados pela loba. Este cenário histórico – onde aparcem vultos exumados de César, Cleópatra, dentre outros - é um imenso palco onde o Eu-lírico fala de si-mesmo ao falar de 'mundos' que estão fora.

O Eu-lírico é um ser feito de contemplação – diante da Roma manchada de sangue, respingado sobre colunas, colunatas, arcos do triunfo, arenas, onde morriam os escravos,os gladiadores, os mártires cristãos – numa perspectiva onde a História é um processo de vitórias e derrotas, alternadas e em série, e repetidos,

There is the moral of all human tales:
'Tis but the same rehearsal of the past,
First Freedom, and then Glory--when that fails,
Wealth, vice, corruption--barbarism at last.
And History, with all her volumes vast,
Hath but ONE page,
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(“Eis a moral de todos os relatos humanos; / É nada além do mesmo ensaio do passado, / Primeiro Liberdade e então Glória – quando aquela falha, / Riqueza, vício, corrupção, - enfim, barbárie./ E a História, com seus volumes vastos, / Tem nada além de UMA página, [...]” CVIII)
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São as obras humanas que se esforçam para resistir ao Tempo – que sobra na peneiragem dos tempos torna-se, então, 'obra clássica'. O Tempo é tanto cicatrizador ('healer') quanto vingador ('avenger'), é efêmero e eterniza os ecos do passado – ruínas, montes de pedras de uma Glória perdida.

É nesse sentimento de finitude que o Romantismo encontra o Barroco – assim como Shakespeare encontra Calderón na temática da efemeridade (“a vida é sonho”) - para ressaltarem o 'carpe diem' – o gozar o dia, antes que a vida acabe.

O que faz compreender a meditação romântica sobre a fragilidade do Existir. Mas numa metafísica de base religiosa, mais do que filosófica (o que somente o Existencialismo faria após Schopenhauer, Nietzsche, Sartre), o que leva o homem a indagar sobre a vida enquanto penitência, o castigo advindo do pecado, a perdição ou a redenção.

Esta temática está nos dramas 'filosóficos' de Byron – Manfred e Cain – que dialogam com a tradição de Dante, Shakespeare e Goethe – a Literatura a desejar abarcar o mundo – onde o Poeta destila os ensinamentos puritanos da cultura inglesa da época, em contraponto com a própria vida de luxúria. Esta contradição leva ao auto-martírio. (2)

No drama “Manfred” temos o anti-fausto, pois ao contrário de Fausto (que deseja saber tudo), Manfred deseja esquecer seu passado de sofrer. Esta presença da consciência (e opressão da consciência) é sinalizada na epígrafe, tirada da peça shakespeariana “Hamlet”, “Há mais coisas no céu e terra, Horácio, / Que aquelas sonhadas em sua filosofia.” (“There are more things in heaven and earth, Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy.” )

Temos um cenário na Europa Central, nos altos Alpes (aliás, o Autor estava na Suiça, em 1816), onde o frio adentra o coração do protagonista. Para Manfred, 'saber é sofrer' e a punição é conhecer a verdade, degustar da Árvore do Conhecimento (Tree of Knowledge), pois a filosofia e a Ciência tornam-se tortura.

Igual a Fausto, aqui Manfred é um mago a invocar Espíritos, que são Agentes da Narureza, 'forças elementares', o ar, os montanhas, as águas, forças da terra, os ventos, as estrelas. Aos Espíritos, Manfred suplica por esquecimento (forgetfulness, oblivion), e estes respondem com um 'poema dentro do poema', um Encantamento (Incantation), em sete estrofes de dez versos, com força expressiva e riqueza lírica, as vozes espectrais condenam o mago,

Though thy slumber may be deep,
Yet thy spirit shall not sleep;
.
(“Apesar de teu sono ser profundo, / Ainda assim teu espírito não deve dormir;”)

É impossível aos Espíritos fazerem com que o Esquecer desça sobre Manfred, condenado a carregar seu passdo, “ Compelimos-te / Ti mesmo a ser teu próprio inferno!” (“I call upon thee! and compel / Thyself to be thy proper Hell!”)

Por que? Devido a rebeldia de Manfred, que faz com que ele seja da irmandade de Cain ('brotherhood of Cain') – outro protagonista importante para o Poeta. Então Manfred vai tentar se matar, vai pular do alto da escarpa na montanha – mas é salvo por um caçador,

Manfred:
Adeus, ó céus abertos!
Não olhem reprovadores sobre mim -
Não vos destinais a mim- Terra!
receba estes átomos!
.
Caçador:
Espere, louco! - apesar de cansado
de tua vida,
Não manche nossos vales puros com o
teu sangue culpado.
Venha comigo – não vou te soltar.
.
[Manfred]
-Farewell, ye opening heavens!
Look not upon me thus reproachfully--
Ye were not meant for me-- Earth! take these atoms!
[Chamois Hunter]
Hold, madman!-- though aweary of thy life,
Stain not our pure vales with thy guilty blood!
Away with me-- I will not quit my hold.

Mas – com ou sem sem caçador para salvá-lo – Manfred não pode morrer. É tal um vampiro a carregar a culpa de seu passado, pois não vai esquecê-lo. Sabemos do drama quando Manfred descreve sua aflição ao corajoso caçador. Os remorsos de Manfred fazem com que o fardo do tempo seja redobrado. As lembranças pesam – algo de muito cruel e trágico é o que este homem presenciou ou praticou!

Contudo, Manfred somente revelará seus infortúnios que sobrecarregam o seu passado quando, ao prosseguir suas andanças, ele encontrará (ou invocará) a Bruxa dos Alpes. Diante da Aparição ele o abre o coração – ao pedir não poderes, mas o mesmo, e sabe que em vão, o alívio da tortura da lembrança.

A confissão de Manfred lembra a daquele poema “Alone” de Edgar Allan Poe (escrito trinta anos depois) com a personagem sempre mergulhada em solidão.

[... ] From my youth upwards
My spirit walk'd not with the souls of men,
Nor look'd upon the earth with human eyes;
The thirst of their ambition was not mine;
The aim of their existence was not mine;
My joys, my griefs, my passions, and my powers,
Made me a stranger; [...]
.
(“Desde a minha juventude / Meu espírito não seguiu com os demais, / Nem olhou sobre a terra com olhos humanos; / A sede de ambição deles não era a minha, / O propósito das existências deles não era o meu; / Minhas alegrias, aflições,paixões, potências / Fizaram-me um estranho;” LdeM)
O jovem Manfred preferia a Natureza, as altas montanhas, os rios. Ou seja, a vida bucólica. Depois, a vida de estudos, a busca do conhecimento (aqui a clara semelhança com Fausto). Até que aparece a mulher amada – bela, suave, igualmente a buscar conhecimentos – mas o amor não traz benefícios, ao contrário, o amor acaba por destruir a amada. Sem humildade para aceitar as próprias falhas, o amor dele abafa o amor dela. E a solidão agora nem é a solidão – mas íntima companhia com a Fúrias – todo o saber é inútil diante do remorso, do desespero.

A Bruxa resolve ajudar o Mago, mas ela exige a mais rigorosa obediência. O Rebelde não é submisso, sua decisão é Non serviam (não servir). As cenas III e IV são povoadas de espíritos e entidades na antecâmara do Gênio do Mal Arimã. Os espíritos reverenciam o Gênio do Mal, quando Manfred se aproxima, mas não se ajoelha. Manfred deseja a invocação do Espectro da Amada – chamada Astarte [nome de deidade semita]. O cenário é de fantasmagoria e alegoria, onde o efeito vale mais que o bom senso. (Partes do Faust I e II, de Goethe, têm igualmente exageros de fantasmagoria)

No entanto, o espectro de Astarte conserva-se em silêncio, enquanto Manfred se entrega a uma crise de masoquismo, torturando-se. Mas a fantasmagórica Amada, esvanecendo-se, diz que no dia seguinte finda-se a vida terrestre do atormentado, “Manfred! Amanhã finda tuas aflições terrestres. Adeus!” E ele não sabe se foi perdoado...

No Ato III, Manfred encara o fim iminente, a tragédia anunciada. Há uma 'calma inexplicável' – onde toda filosofia é inútil. Mas aparece uma visita: um Abade. O religioso preocupa-se com a 'salvação da alma' do angustiado nobre. Boatos correm sobre as feitiçarias do mago. Manfred não se submete aos 'consolos' religiosos. Por mais que o Abade insista.

Há uma cena patética ao estilo do final do Faust II – ainda nem publicado, o que ocorreu após a morte de Goethe em 1832 – onde as forças do Bem e as forças do Mal disputam a alma do 'filho da terra'. É onde a 'força alegórica' do Barroco invade a exaltação romântica. E Manfred morre finalmente – acompanhado pelo desolado abade.
Estas temáticas barrocas – isto é, religiosas, - estão presentes ainda mais radicalmente em “Cain”, onde o mito bíblico (de origem semita) é relido com uma audácia de herege. Trata-se de um poema dramático, em três Atos, datado de 1821, e dedicado a Sir Walter Scott.

Voltamos ao cenário do Gênese, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso (jardim do Éden). Agora o primeiro casal constituiu família. Seus filhos Caim, Abel, Ada, Zila oferecem igualmente sacrifício ao Criador. Todos fazem suas preces bajuladoras – exceto Caim. “Por que eu deveria falar?” Caim nada tem a pedir, e nada a agradecer.

Adão: Mas não vives?
Caim: Não devo morrer?

Caim pensa que se os pais comeram do fruto da Árvore do conhecimento (do bem e do Mal) deviam ter comido também o da Árvore da Vida. Para Adão, isto é blasfêmia!

Adão: Ó meu filho, / Não blasfeme: estas são as palavras da serpente.

Mas para Caim, a serpente disse apenas a verdade, pois “conhecimento é bom, e vida é boa; como podem ser maus?”

Eva reconhece as próprias palavras na fala do filho Caim. Ela se arrependeu – mas teme que o filho repita o pecado. Caim aqui é um livre-pensador. Duvida, ironiza, polemiza. Não segue a 'moral de rebanho'. Caim prefere a solidão – nem sua irmã Ada é companhia desejável. (Aqui uma névoa de incesto: com que os filhos de Adão e Eva se casam? Com as irmãs...) Abel aqui é o mais 'carola' de todos – o mais beato.

Caim não aceita que o pecado dos pais seja transmitido aos filhos.

What had I done in this?—I was unborn: I sought not to be born; nor love the state To which that birth has brought me. Why did he Yield to the Serpent and the woman? or Yielding—why suffer?
(“Que tenho a ver com isso? Nem nascera: / Nem pedi p'ra nascer; nem amo a condição / A qual o nascer me trouxe. Por que ele [Adão] / Se rendeu à serpente e a mulher? Ou / Rendendo-se, por que sofrer?” (Ato I, Cena I)

Vamos abordar aqui o mito hebraico do Jardim do Éden em relação com a mitologia grega (Caim é uma espécie de Prometeu a desafiar os Deuses)

Enquanto Caim pensa, outra personagem adentra (e atenta). É o anjo decaído, o próprio Lúcifer – que aqui parece mais Iago tentando o pobre Othelo. E – numa certa leitura – Lúcifer não é Satanás. Expliquemos.

Para os Luciferianos, o anjo Lúcifer é tal qual um Prometeu, que vem trazer Luz e Liberdade aos Homens – não é, portanto, inimigo dos Homens, tal qual o Satanás da Bíblia – e de John Milton, em “Paraíso Perdido” (Paradise Lost, 1667 ). Lúcifer, então, era o 'bom', enquanto Deus era o Tirano, o caprichoso Criador que condena a Humanidade e afoga as criaturas, e bombardeia as cidades (vide Sodoma e Gomorra...)

Para o Satanista, o anjo mau, Satanás, não é mais Lúcifer. Satanás odeia Deus, e as criatuas de Deus, os Homens, inclusive. Assim, adorar Satanás é adorar o Mal pelo próprio mal. Um Satanista é um adorador do próprio inimigo? Assim, de certa forma, o Satanismo é ainda baseado no Cristianismo. Enquanto o Luciferianismo é mais complexo, filosófico. Tem raízes cabalísticas e gnósticas. Assim como Prometeu desafiou Zeus, ao dar o fogo aos Homens – Lúcifer desafia Javé, ao tentar a Mulher para cobiçar a Consciência (do Bem e do Mal).

Pois bem, aqui Lúcifer pode conhecer os pensamentos (em outra tradição, o anjo decaído não pode ler os pensamentos, por isso muitos cristãos preferem não orar em voz alta, resguardando-se em oração silenciosa...) Para Lúcifer, os pensamentos são provenientes da 'parte imortal' – assim, os argumentos do Anjo, agora Demônio, são para atrair a confiança do Humano, que logo aceita ter algo de 'imortal' – não apenas 'tentar', mas 'revelar'. (Interessante este aspecto no 'Satã' Settembrini, o pedagogo que 'tenta' Hans Castorp, em “A Montanha Mágica”, 1924, de Thomas Mann)

Lúcifer não fala em 'morte', mas que Caim 'deve viver'. Viver além, em espírito. Não exatamente feliz, mas eterno. Quem é Lúcifer? Ele mesmo diz, “Alguém que desejou ser o que te fez, e / Que não teria te feito o que tu és.” (“One who aspired to be what made thee, and /Would not have made thee what thou art.”)

Mas o Demônio resigna-se com a vitória do Criador, “Ele venceu; deixe-O reinar!” (“He conquer'd; let him reign!”) Aqui a Rebeldia – e a Liberdade – é coisa do diabo! Nada mais cristão, claro! Afinal, o Cristianismo prega a obediência e a resignação. Assim, ser livre (igual ao Sr. Settembrini, na obra de T. Mann) é ofensa à fé. (E não admira que muitos Iluministas tenham sido 'Luciferianos' quando da luta liberal contra a Monarquia Absolutista e contra o Clero, entre os séculos 18 e 19)

O Demônio é assim porque foi um 'espírito' que ousou encarar o Criador. Diz Lúcifer, “Almas que ousaram usar a imortalidade – / Almas que ousaram olhar o tirano Onipotente / em Sua face eterna, e dizer-lhe que / O Seu Mal não é bom;” (“Souls who dare use their immortality— / Souls who dare look the Omnipotent tyrant in / His everlasting face, and tell him that / His evil is not good!”)

Como pode surgir o Mal no domínio do Bem? Como um Ser perfeito pode permitir a imperfeição? Deus é um Criador todo-poderoso e infeliz, “Deixe-o sentar-se em seu vasto e solitário trono, / criando mundos, a fazer a eternidade / menos pesada à Sua imensa existência / e imparticipada solidão; / Deixe-o povoar orbe após orbe: ele está sozinho. / Indefinido, indissolúvel tirano;”
(“But let him / Sit on his vast and solitary throne— / Creating worlds, to make eternity / Less burthensome to his immense existence / And unparticipated solitude; / Let him crowd orb on orb: he is alone / Indefinite, Indissoluble Tyrant;”)

Assim, Anjos (ou Demônios) e Humanos se assemelham na parte espiritual : Anjos só Espíritos, enquanto Humanos são Espíritos dentro de Corpos feitos de barro, e que voltarão ao barro.

Antes Caim não encontrara alguém que conversasse francamente com ele – alguém que simpatizasse com suas dúvidas e angústias. Lúcifer prefere conversar do que 'tentar' – como ele fez no papel de serpente, ao aproximar-se de Eva, no Paraíso, “eu não tento alguém, / Exceto com a verdade: não era a árvore , a árvore / Do Conhecimento? E não era a árvore da Vida / Ainda frutífera?” (“I tempt none, / Save with the truth: was not the Tree, the Tree / Of Knowledge? and was not the Tree of Life / Still fruitful?”)

Claro que há muita Teologia neste drama em versos. Muito fatalismo, calvinismo, livre-arbítrio, condenação eterna. E não há assunto mais entediante do que Metafísica – e nada mais metafísico que a Teologia. (como se fosse possível às Criaturas 'estudar' o Criador, ou o imperfeito 'teorizar' sobre o Perfeito! É muita imaginação ou muita pretensão!)

Em resumo: por que Caim mata o irmão Abel? No diálogo com Lúcifer, aquelas ideias mais recônditas -e heréticas! - de Caim são reveladas. “Pensamentos inexpressados / povoam a arder em meu peito” (“Thoughts unspeakable crowd in my breast to burning;”) Parece ser a consciência de que Deus é tanto Criador quanto Destruidor

Lúcifer: O Criador – chame-o
Com o nome que desejares: ele cria, porém
para destruir.

A imortalidade é um atrativo para Caim – que teme a Morte. É um atrativo para as 'ovelhas' dos religiosos. A 'vida eterna' enquanto um 'consolo'. (Para outros, é justamente o contrário: a Morte é o consolo. Nada de Céu, ou Inferno, ou Deus, ou Julgamento; mas tão-somente a Noite eterna, o Nada.) Já o tal Lúcifer nada sabe sobre a morte, “Como eu não conheço a morte, /Não posso responder.” (“As I know not death, / I cannot answer.”) Para Caim, temer a morte é “temer o que eu não conheço” (“fear I know not what!”)

Tendo atraído Caim, agora Lúcifer quer ser adorado (“Deves inclinar-te e adorar-me – teu Senhor”) Mas se Caim não reverenciou o Deus Todo-Poderoso, por que deveria se ajoelhar perante um anjo Decaído? Mas Lúcifer admira este Humano que não reverencia a outros. Afinal , é um fiel da máxima 'non serviam'. Um Rebelde não adora nem Deus nem diabo. “És meu adorador: não adorando-O / és meu do mesmo jeito.” (“Thou art my worshipper: not worshipping / Him makes thee mine the same.”)

Ou seja, se o sujeito não acende uma vela para Deus, está torcendo para o diabo. Tudo o que o padre esbraveja na igreja, “Quem não está junto de Deus, está nas garras do diabo!” Caim precisa escolher entre seguir Lúcifer ou se reunir aos irmãos para o próximo sacrifício. Lúcifer trata logo de separar Caim e sua amada irmã Ada, sempre desconfiada diante do Anjo de Luz, que insiste que a serpente traiu a mulher, Eva, com a Verdade: o fruto traz conhecimento, consciência. E a consciência traz o sofrer.

O Autor seguramente 'toma liberdades' com o texto bíblico, ao introduzir esta paixão entre irmão e irmã – traços biográficos?, é de se perguntar. Mas trata-se de uma alegoria, e o mito religioso sofre uma 'apropriação' autoral – e os Românticos não primavam pelos Cânones, mas pela originalidade, pela re-criação do que era considerado clássico.

O tal Lúcifer não hesita em apontar que o que agora não é pecado – o amor entre irmãos – em breve será – trata-se do 'tabu do incesto', no sentido de desviar o impulso sexual para fora da família e/ou da clã. Ada não entende um pecado que não seja 'pecado em si mesmo'. Como pode algo hoje ser 'certo' e amanhã ser 'errado'. Pecado é pecado, e virtude é virtude. (É que a Humanidade ainda não tinha inventado a História, e a História não era objeto do Historicismo...)

Semelhantes alegoria percebemos no romance “O Fauno de Mármore” do autor norte-americano Hawthorne, onde o mito da Queda do Homem é encenado, onde o pecado pode unir os cúmplices numa paixão, onde a virtude não aceita a 'coexistência pacífica' com o Pecado. (Esta obra de Hawthorne será assunto de ensaio próximo)

Ao identificar a Onipotência com a tirania, e a adoração com a bajulação, Lúcifer acaba por embaralhar os valores – algo de iconoclasta aqui! - o que ofende a humana Ada, sempre virtuosa (“Onipotência deve ser completa bondade”, “Omnipotence / Must be all goodness”) e que o tal Anjo de Luz não é exatamente 'abençoado'. Ao que o tal responde, “Se ser abençoado / consiste em ser escravo – não”, onde o argumento é basicamente: ser abençoado é 'ser cooptado' pela Tirania.

A perda dos laços de identificação com a família, e os laços amorosos com a irmã-esposa Ada, enfim, a revelação da completa solidão – ter consciência, saber é não criar laço afetivo. Saber é não amar. Quem tudo sabe há-de amar os ignorantes? (E lembramos o insulto do Cristo crucificado: “Perdoai-vos, pois não sabem o que fazem” (!)) Caim não escolhe o amor – e segue o Anjo Decaído. (Para Ada, a solidão é até pecado. Não se pode ser feliz ao viver sozinho. Ada é o tipo 'boa mãe de família'...)

No Ato II, uma viagem astral – outros mundo, outras alegorias. Eis aqui um Byron metafísico. Vários mundos, vários pecados, várias redenções, várias condenações... O desejo do Poeta é transformar o mito hebraico numa verdadeira tragédia grega – e quase conseguiu. Vide o final do Ato III.

O final é aquele que todos conhecemos. O Anjo Decaído não veio melhorar o drama, e sim acelerar o desenlace. O Rebelde Caim torna-se o primeiro homicida – ao golpear violentamente o irmão Abel, junto aos altares de sacrifício. (Caim: Teu Deus adora sangue!) E o sacrificado será o próprio Abel. Consequência que Caim nem mesmo previra – ele se encontra responsável diante da primeira morte, e morte violenta.

[Recentemente, em 2009, o escritor português José Saramago publicou um romance - “Caim” - com essa temática – tão herética quanto aquela do anterior, de 1991, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”]
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continua...
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por Leonardo de Magalhaens
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