domingo, 27 de junho de 2010

Os Miseráveis - Parte 2 (Cosette)





Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor-Hugo (1802-1885)
.
As Obras Clássicas (ensaio 3)
.
O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna

... ...

Livro II

As páginas seguintes continua as 'odisseias' do ex-forçado, agora novamente preso, Jean Valjean, que recebe um novo número (9430). Obviamente que os jornais não poderiam deixar de noticiar o fato inusitado : aquela transmutação do boníssimo prefeito, Sr. Madeleine, na figura andrajosa de um 'forçado'. Um homem tão respeitado, empresário de fortuna, agora revela-se um fugitivo? É assombroso. Os trechos dos artigos de imprensa – o Narrador cede lugar a íntegra das 'reportagens' – mostram um certo despeito por parte dos 'burgueses'. Claro, que as 'interpretações políticas' não faltam, a depender se o jornal é 'liberal', ou 'conservador'.
Quem sofreu com a nova prisão? O povo. Ficaram sem prefeito, sem patrão, as oficinas foram fechadas, os operários foram embora, tudo faliu. Então, onde a Justiça? Por que uma lei tão rigorosa que não aceita a 'nova vida' de um ex-prisioneiro? Não é aceita a 'regeneração'? O pecado cometido deve ser eternamente punido? (Basta ver o 'sistema carcerário brasileiro' para pensarmos nestas questões...)

Abrindo um parêntese, em curta narração, temos um mistério nos bosques de Montfermeil – localidade do albergue dos Thénardier, bem lembramos – onde uma figura pode ter enterrado um cofre sob as árvores. Há quem diga que seja o próprio diabo. Há quem tenha procurado o tesouro em vão.

Continuando, temos informações sobre a guerra da Espanha, em abril de 1823, quando a intervenção francesa derrubou o governo liberal [constitucionalista] espanhol e restaurou o Absolutismo. Eis o cenário da Restauração, ao apoiar o 'antigo regime' contra as políticas liberais (na época, o 'liberalismo' era o subversivo! Ainda não havia um movimento pró-socialismo organizado... ) A França sofria a Restauração e impunha o 'conservadorismo' aos demais países – a interferir do mesmo modo que Napoleão interferiu, apenas com outros propósitos políticos.

Em Toulon, a cidade mediterrânea, aliás, onde iniciou-se a ascendente carreira de Napoleão [ no Cerco de Toulon, em 1793], no famoso porto, navios de guerra se movimentam rumo às áreas de combate. A Marinha sempre causou sensação – basta lembrarmos a grande Batalha de Trafalgar, em outubro de 1805, onde o Almirante inglês Nelson derrotou as forças francesas, que ambicionavam invadir as Ilhas Britânicas. [No século 20, foi a vez dos alemães, sob ordens de Hitler, mas foram repelidos pela defesa aérea, a combativa RAF ] Ou ainda antes, a vitória da Marinha britânica, comandada por Francis Drake, corsário e almirante, contra a Grande Armada Espanhola, na Batalha de Gravelines, em julho de 1588, superando os espanhóis nos mares.

Em um dos navios ocorre um acidente. Um marinheiro está ponto de se precipitar ao mar. Um simples cordame, ao qual se agarra, o mantem em frágil equilíbrio. De repente, um forçado, forte, de idade avançada, mas cheio de agilidade e ânimo decidido, se destaca dos demais condenados às galés e ousa se esforçar para salvar o marinheiro. Obtém sucesso, mas, por sua vez, desequilira-se e cai ao mar. Quem era essa homem tão corajoso?

Não foi mais encontrado. Mergulhadores se cansaram em vão. Quem era? O livro de bordo é consultado. Uma notícia é impressa no Jornal de Toulon, “17 de novembro de 1823. Aqui, um forçado, a cumprir pena a bordo do Orion, depois de prestar socorro a um marujo, acabou caindo no mar e se afogou. Não puderam encontrar o cadáver. Presumiram que tenha se prendido nas estacas da ponte do Arsenal. Este homem era registrado sob o número 9430 e se chamava Jean Valjean.” “«17 novembre 1823.--Hier, un forçat, de corvée à bord de l'Orion, em revenant de porter secours à un matelot, est tombé à la mer et s'est noyé. On n'a pu retrouver son cadavre. On présume qu'il se sera engagé sous le pilotis de la pointe de l'Arsenal. Cet homme était écroué sous le nº 9430 et se nommait Jean Valjean.” III, p. 394)
.
Livro III
.
O drama continua. À qual personagem volta-se o olhar do Narrador? Ao lermos “Montfermeil” lembramos logo da pequena Cosette, a filha de Fantine, aquela moça arruinada, desventurada que acaba morrendo na miséria e na prostituição. A pequena cidade, situada na região de Paris, é palco para o drama da menina que cresceu sem o carinho da mãe, sem a proteção de um pai. A menina que constantemente é explorada, ameaçada, desrespeitada. A personificação da vida desvalida, aqueles seres 'humilhados e ofendidos' tão amargamente descritos por Dostoiévski.

Em Montfermeil o problema da água se resolve com os lagos do bosque, ou com uma fonte, quase nos limites da vila. Assim entende-se que um empregado dedicado ao serviço de 'buscar água' era ali muito requisitado. E na casa dos Thénadier, quando à noite não havia mais serviço do empregado, quem executava a tarefa – árdua e terrificante – de ir buscar água?

“Esse era o terror dessa pobre criatura, que o leitor talvez não tenha esquecido, a pequena Cosette. Lembram-se que a Cosette era útil aos Thénardier de duas maneiras, eles se faziam pagar pela mãe e se faziam servir pela criança.” (“C'était là la terreur de ce pauvre être que le lecteur n'a peut-être pas oublié, de la petite Cosette. On se souvient que Cosette était utile aux Thénardier de deux manières, ils se faisaient payer par la mère et ils se faisaient servir par l'enfant.” I, p. 396 )

Estamos – na narrativa – às vésperas do Natal de 1823, e numa noite fria, gélida mesmo, a pequena Cosette é obrigada a ir ao poço buscar água para os inescrupulosos Thénardier. Sim, os Thénardier que assombram este Romance. Aquela mulher que exalta as filhas – Eponine e Azelma – enquanto humilha a criança da qual devia cuidar, a desprotegida Cosette. E o aproveitador Sr. Thénardier que se vangloria de ter salvo “um general perigosamente ferido” - sabemos que ele antes roubava a vítima, do que salvava – a ponto de batizar seu albergue de “Hospedaria do Sargento de Waterloo” (“cabaret du sergent de Waterloo”)

Sonhando com o conforto e com bem trajadas bonecas, a menina Cosette avança na noite escura e gélida, reconhecida por uma ou outra vizinha, para as quais a menina é sempre a “Cotovia”, “l'Alouette”, até o poço, onde um vulto de homem desliza na sombra. Presenciaremos algum ato de violência?

Quem é o homem? Vemos que ele anda pelo bosque, a apalpar uma ou outra árvore, a conferir se tal ou qual lugar está com a terra revirada. Será o homem que procura o 'tesouro' enterrado? Será aquele que enterrou o 'tesouro'?

Mas parece que o homem quer apenas conversar – e ajudar. Ao levantar o balde d'água, ele pergunta quem é a mãe da criança - “Não tenho mãe. Os outros têm. Mas eu não.” - e qual o seu nome - “Cosette” - e ele então tem um estremecimento. E nós, os leitores, também. Quem mais poderia cumprir a promessa feita a mãe de Cosette? Quem senão o imprevisível, o homem de sete vidas, Jean Valjean? (O Narrador só dirá no fim do capítulo XI, em suposto 'suspense', mas nós, os espertos leitores, já sabemos)

“A figura magra e doentia de Cosette se desenhava vagamente ao brilho lívido do céu. -Como se chama? Disse o homem. -Cosette.
O homem teve quase um choque elétrico. Ele a observou ainda, pois depois tirou suas mãos dos ombros de Cosette, ergueu o balde, e pôs-se a andar.”

La figure maigre et chétive de Cosette se dessinait vaguement à la lueur
livide du ciel.
--Comment t'appelles-tu? dit l'homme.
--Cosette.
L'homme eut comme une secousse électrique. Il la regarda encore, puis il ôta ses mains de dessus les épaules de Cosette, saisit le seau, et se remit à marcher.
(VII, p. 418)

Obviamente os Thénardier não gostam nada de recém-chegado, ainda mais a ajudar a pobre Cosette. O casal pensa que é apenas um pobre das redondezas, mas logo imaginam se não é um homem com dinheiro, pois o viajante paga até o dobro do preço da hospedagem! Como pode ser um pobre se paga o dobro dos demais? Vá entender estes taverneiros!

Mas o Narrador despreza os Thénardier e convence os leitores a fazerem o mesmo. Perplexos e apiedados contemplamos a miséria de Cosette, feia e esquelética, vestida com trapos. Encolhida de medo e indefesa, ela andavapelos cantos, ou debaixo das mesas.

“Este medo era tão grande que ao chegar, toda molhada como estava, Cosette nem ousou ir se secar junto ao fogo e voltou silenciosamente ao seu trabalho.
A expressão do olhar dessa criança de oito anos era habitualmente tão sombria e por vezes tão trágica que parecia, em certos momentos, que ela estava a ponto de tornar-se uma idiota ou um demônio.”

Cette crainte était telle qu'en arrivant, toute mouillée comme elle était, Cosette n'avait pas osé s'aller sécher au feu et s'était remise silencieusement à son travail.
L'expression du regard de cette enfant de huit ans était habituellement si morne et parfois si tragique qu'il semblait, à de certains moments, qu'elle fût en train de devenir une idiote ou un démon.”
VIII, p. 422)

O viajante – e nós leitores não somos ingênuos – só poderá ser alguém que conhecemos, alguém que volta e meia desaparece e reaparece, quem mais senão Jean Valjean? Pois somente ele poderia cumprir a promessa de resgatar a menina das mãos de rapina daqueles Thénardier! Mas o casal vai fazer de tudo para ainda 'ganhar' com esta exploração. O visitante não poupa esforços em tudo fazer para alegrar a pequena Cosette. Oferece moedas reluzentes ao taverneiro, para que deixem a menina brincar. Compra uma boneca nova, a mais bonita, para a menina. Deixa uma moeda de presente na noite de Natal.

O velho Thénardier logo percebe que o hóspede não é nenhum pobretão. Pensa que ele pode estar interessado na menina Cosette, e assim o taverneiro poderá 'vendê-la' por bom preço! O velhaco finge toda uma estima pela órfã, além de todos os 'gastos' para cuidar da pobrezinha – sem mencionar que fazia a menina 'trabalhar pesado' – e passa a falar em 'valores', 'quantias', como se leiloasse um utensílio da casa!

Enquanto isso, Cosette sente, com sua intuição de criança, que o visitante é alguém que dedica-se a melhorar seu destino de misérias! Ela ganhou uma boneca, ganhou uma moeda de ouro! Quem será este forasteiro? Ele que mesmo negocia com o Sr. Thénardier o valor de mil e quinhentos francos para levar a menina. E a Sra. Thénardier acha pouco! O velhaco segue no encalço de Valjean (sabemos que é Valjean!) e Cosette. Ameaça e diz querer a menina de volta! Na verdade, quer mais dinheiro, óbvio.

O novo tutor de Cosette, em pleno caminho no bosque, abre a carteira e tira a carta de Fantine. Em seguida, o viajante apresenta cifras que demonstram o quanto o cidadão taverneiro é um mesquinho desonesto e mercenário! O porte físico do forasteiro humilha a insignificância fisica e moral do taverneiro. Assim Valjean e Cosette se livram do velhaco e seguem caminho. O Narrador decide revelar que trata-se de Jean Valjean – que caiu no mar e não se afogou , segundo pudemos ler no final do Livro II - com até um 'senso de humor', “O número 9430 reaparece e Cosette ganha-o na loteria” (“Le numéro 9430 reparaît, et Cosette le gagne à la loterie”)

No Livro IV, temos a descrição dos arredores de Paris, próximos aos lugares de prisão ou de execução, onde numa casa modesta, de apenas um andar, chamado aqui “pardieiro Gorbeau”, podem descansar Valjean e Cosette, depoias de 'fugirem' das mãos do casal Thénardier. [Nós, leitores, achamos que finalmente nos livramos dos Thénardier, mas isso pode ser um trágico engano...] O Narrador monta o cenário e insere as personagens, o estilo do Autor está aí. Victor-Hugo quer que saibamos – em 1862 – como era Paris em 1823. Sabemos que o Autor se ausentou de Paris, devido a questões políticas, de 1848 a 1870, e neste momento a metrópole sofreu grandes transformações. Foi a chamada “reforma urbana” feita por Haussmann.

Finalmente, o ex-forçado Jean Valjean consegue sentir um afeto por uma criatura humana. Sofrendo um vida de desventuras, o pobre homem nunca pôde se afeiçoar a alguém, não recebeu afeto. Sua família não passava de uma lembrança vaga. Ao adotar a criança, a menina órfã Cosette, ele viu a oportunidade de 'ter uma família', alguém a quem dedicar atenção e carinho. Ele, o velho de 55 anos, seria uma espécie de pai e avô da menina de oito anos. Pois também Cosette não tivera oportunidade de afeiçoar-se a alguém, ela que crescera rejeitada e humilhada.
“A natureza, com cinquenta anos de intervalo, havia criado uma separação profunda entre Jean Valjean e Cosette; esta separação, o destino a preenchera. O destino unia bruscamente e afiança com seu irresistível poder essas duas existências sem raízes, diferentes devido a idade, mas semelhantes devido ao luto. Uma, realmente, completava a outra. O instinto de Cosette procurava um pai assim como o instinto de Jean Valjean buscava uma criança. Ao se encontrarem foi como se encontrassem a si mesmos. No momento misterioso quando suas mãos de tocaram, ele se uniram. Quando suas duas almas se perceberam, eles reconheceram a necessidade um do outro e se abraçaram estreitamente.”

La nature, cinquante ans d'intervalle, avaient mis une séparation profonde entre Jean Valjean et Cosette; cette séparation, la destinée la combla. La destinée unit brusquement et fiança avec son irrésistible puissance ces deux existences déracinées, différentes par l'âge, semblables par le deuil. L'une en effet complétait l'autre. L'instinct de Cosette cherchait un père comme l'instinct de Jean Valjean cherchait un enfant. Se rencontrer, ce fut se trouver. Au moment mystérieux où leurs deux mains se touchèrent, elles se soudèrent. Quand ces deux âmes s'aperçurent, elles se reconnurent comme étant le besoin l'une de l'autre et s'embrassèrent étroitement.” III, p. 462
Valjean precisava de Cosette para continuar um 'bom' cidadão. Afinal, ele sempre fora vítima da sociedade e passara a desprezar as pessoas. Ele vira o destino miserável de Fantine, a rigidez policialesca de Javert, a nova prisão nas galés, a mesquinharia de Thénardier, e não espera nada de 'bom'.

Fez bem em desconfiar, o nosso Valjean. Pois as comadres cochicham, os vizinhos comentam. Quem será aquele forasteiro? E mesmo com os cuidados de Valjean, em tratar bem a todos, em sair mais à noite, em passar em total anonimato. Mas como poderia? A opinião pública é implacável. No mais, há a figura de um mendigo. Ás vezes, não parece ser o 'mesmo' mendigo. Há quem diga que é alguém 'da polícia'. Certa noite, Valjean julga reconhecer na figura cabisbaixa do mendigo, que levanta o olhar po um instante, alguém de outrora. Mas quem? Quem o observava deste modo?

Ele se pergunta se não será o velho 'cão farejador', sim, o agente Javert!
“Com custo ele ousava confessar a si-mesmo que esta figura que acreditava ter visto era a figura de Javert.
De noite, ao refletir, ele se arrependeu de não haver questionado o homem para o forçar a levantar a cabeça uma segunda vez.”
C'est à peine s'il osait s'avouer à lui-même que cette figure qu'il avait cru voir était la figure de Javert.
La nuit, en y réfléchissant, il regretta de n'avoir pas questionné l'homme pour le forcer à lever la tête une seconde fois
.” V, p. 467)

O protagonista desconfia – e com razão – do comportamento da locatária, além de ouvir passos pesados no corredor. Será mesmo um novo inquilino? Melhor não ficar para saber. Novamente temos Valjean em fuga. Uma fuga que se dá numa Paris brumosa de início de século – não a Paris de 1862, quando Victor-Hugo recomeça a escrever “Les Misérables”, como o Autor mesmo se justifica –com lampiões projetando sombras de árvores nos muros de pedras, com pontes estreitas sobre os ruas – imaginemos uma cidade semelhante, o centro histórico de Praga atualmente – e então como poderá o protagonista ver-se livre mais uma vez?

O Autor se refere a uma planta de Paris desenhada em 1727, ou seja, quase um século antes da época da narrativa! Estes anacronismos permitem um texto cheio de referências, como se um mapa aberto possibilitassem coordenadas, e ao mesmo tudo se confunde, como uma cidade existente apenas na imaginação do Autor. [Não temos aqui qualquer acesso a mapas topográficos e urbanísticos de Paris, logo não sabemos qual o sentido de tal descrição minuciosa] Mas o efeito é este: desorientação, desespero, improvisação de fuga, para onde seguirá o robusto e esperto Valjean?

Há um muro. Poderá escalar semelhante paredão? Não há tempo para pensar, pois se eram quatro perseguidores agora é uma patrulha inteira! Valjean arranca uma corda de um lampião e então amarra Cosette junto a si, enquanto prepara a escalada do muro. Não se sabia o qua havia do outro lado... Mas certamente seria melhor que a prisão. Enquanto ele teme Javert, a menina Cosette aterroriza-se com as ameaças da Sra. Thénardier.

Onde estão? Vozes cantam um hino religioso. Também um distinto tinir de um sininho.
“Ele tombou dos terrores quiméricos aos terrores reais. Ele se dizia que Javert e os soldados não teria talvez ido embora, sem que tivessem antes, sem dúvida, deixado na rua alguém em observação, que, se este homem o descobrisse no jardim, ele denunciaria o ladrão, e o entregaria. Ele apertou docemente a Cosette adormecida em seus braços e a carregou para trás de uma pilha de velhos móveis usados, no canto mais obscuro do galpão. Cosette não se mexia.”
Il retomba des terreurs chimériques aux terreurs réelles. Il se dit que Javert et les mouchards n'étaient peut-être pas partis, que sans doute ils avaient laissé dans la rue des gens en observation, que, si cet homme le découvrait dans ce jardin, il crierait au voleur, et le livrerait. Il prit doucement Cosette endormie dans ses bras et la porta derrière un tas de vieux meubles hors d'usage, dans le coin le plus reculé du hangar. Cosette ne remua pas. VIII, p. 490)

Valjean precisa abrigar a pequena criança desacordada, naquela noite fria, e não tem outra solução senão abordar o guarda-noturno que vagueia ao longo do barracão – aquele mesmo homem com um sininho... E – eis uma romance que sabe entrelaçar e unir personagens! - o home é ninguém menos que o velho Fauchelevent, aquele que Valjean-Madeleine salvara de sob a carroça [livro V da Parte I] Lembramos que o velho foi para Paris, trabalhar no Convento de Petit-Picpus. Agora, o ancião poderá retribuir o favor prestado pelo 'prefeito', identidade que é atribuída novamente ao fugitivo Valjean.

E Javert? Como chegou ao 'rastro' de Valjean? Ao procurar o fugitivo Valjean em Paris, e recapturá-lo, Javert foi nomeado para o distrito de Paris. Quando soube da morte do forçado Vajean, no porto de Toulon, em 1823, logo acreditou. Até ler uma outra notícia sobre o rapto de uma criança em Montfermeil. Uma criança de oito anos chamada Cosette, filha de uma Fantine. Ora, justamente o caso que Javert cuidara em Montreuil-sur-Mer!

Seria o homem raptor o próprio Valjean? Mas, o forçado não estava morto?! Javert investigou, mas os Thénardier já haviam mudado a 'versão' de rapto para 'o avô veio buscar a menina'. Assim, a 'pista' se apagou. Até que um certo pobre que dava esmolas desperta a atenção de alguns moradores. Um pobretão e uma menina de 8 anos, vindos de Montfermeil. Então, Javert resolver 'fingir-se de mendigo' para ver de perto o tal 'pobretão'. E tão grande foi a surpresa de Javert quanto a de Valjean. Mas o inspetor ainda não podia acreditar. Tanto que cuidou do caso sem revelar ao departamento de polícia. Queria a façanha somente para si!

“Javert havia solicitado reforços à chefatura, mas ele não dissera o nome do indivíduo que esperava prender. Era o seu segredo; e ele o guardava por três razões: primeiro, porque a mínima indiscrição poderia criar suspeitas em Jean Valjean; segundo, porque prender um velho forçado fugitivo e dado como morto, um condenado que os relatos da justiça classificavam entre os malfeitores da espécie mais perigosa, era um sucesso magnífico que os veteranos da polícia parisiense certamente não deixaria a um novato como Javert, e que ele acreditava que lhe levariam seu forçado; por fim, porque Javert, sendo um artista, tinha o gosto do imprevisto. Ele odiava o sucesso anunciado que murcham ao serem ditos antes da hora. Preferia elaborar suas obras-primas na sombra e depois revelar todas de uma vez.”

Javert avait réclamé main-forte à la préfecture, mais il n'avait pas dit le nom de l'individu qu'il espérait saisir. C'était son secret; et il l'avait gardé pour trois raisons: d'abord, parce que la moindre indiscrétion pouvait donner l'éveil à Jean Valjean; ensuite, parce que mettre la main sur un vieux forçat évadé et réputé mort, sur un condamné que les notes de justice avaient jadis classé à jamais parmi les malfaiteurs de l'espèce la plus dangereuse, c'était un magnifique succès que les anciens de la police parisienne ne laisseraient certainement pas à un nouveau venu comme Javert, et qu'il craignait qu'on ne lui prît son galérien; enfin, parce que Javert, étant un artiste, avait le goût de l'imprévu. Il haïssait ces succès annoncés qu'on déflore en en parlant longtemps d'avance. Il tenait à élaborer ses chefs-d'oeuvre dans l'ombre et à les dévoiler ensuite brusquement.” X, p. 498)

Inusitado o fato do Narrador comparar o severo inspector a um artista. Mas faz sentido. Depois de quase 500 páginas já estamos interessadíssimos em Valjean, e mais interessados em quem se interessa por Valjean : o 'cão-farejador' Javert. Se no início Javert é apenas um 'inspector' de polícia de província, sob uma descrição pré-naturalista [se considerarmos pleno Naturalismo o estilo de um Zola] ao longo das vicissitudes do Romance sua imagem também se alonga, se distende, perde o tom caricatural anterior – em suma, Javert passa a ser importante.

Somente devido a escrúpulos – e medo da imprensa! - o agente Javert não prendeu logo o 'pobretão' com a menina. De repente, fosse mesmo apenas um avô com sua netinha! Assim somente quando teve certeza de reconhecer Valjean, o policial solicitou os reforços. É justamente quando Javert começa sua 'caçada'- a descrição cênica é mesmo uma 'paródia' da caça a raposa! -, distribuindo os soldados e seguindo a sombra de Valjean, trôpego naquele labirinto de ruelas parisienses! [Lembrar que ainda a cidade-luz não passara pela reforma urbana que tanto a modificou...]

Quando Valjean simplesmente sumiu na noite, o inspector estremeceu. “Quando ele chega ao centro da teia, ele não encontra mais a mosca. Imagine-se seu desespero.” (“Quand il arriva au centre de sa toile, il n'y trouva plus la mouche. On imagine son exaspération.” p. 501) Em seguida, o narrador não hesita em 'entrar na história' em digressões/comentários sobre os 'erros' do antagonista: relembra estrategistas históricos (Alexandre, Ciro, César, Napoleão...), o que devia Javert ter feito, onde pecou por imprudência, pois ao divertir-se com a caçada deixou escapar a presa!

“Javert comete todas essas faltas, e não era menos que um dos espiões mais sábios e mais corretos que teriam existido. Ele era, por definição, o que em caça poderia se chamar 'um cão inteligente'. Mas quem é que era perfeito? Os grandes estrategistas têm seus eclipses.”
Javert commit toutes ces fautes, et n'en était pas moins un des espions les plus savants et les plus corrects qui aient existé. Il était, dans toute la force du terme, ce qu'en vńerie on appelle un chien sage. Mais qui est-ce qui est parfait? Les grands stratégistes ont leurs éclipses.” p. 502)

Livros VI e VII

Após despistar o 'cão farejador', o agente Javert, aqui um antagonista tão necessário a Narrativa – tal como em “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” onde é difícil imaginar o enredo sem o agente Fix no encalço do nobre Fogg, ou então, mais atualmente no mundo do HQ, ou comics, a ausência de um Curinga nas atribulações de um Batman... - o protagonista Valjean se instala no convento de Petit-Picpus, onde poderá passar incógnito, a cuidar de sua 'filha adotiva' Cosette.

As digressões do Narrador são esperadas, fazem parte do 'estilo'. Aqui ele narra uma 'possível' história do tal convento, das ordens religiosas de estilo monástico, que nem sabemos se existem, ou existiram, tudo isso para 'criar o cenário', onde pretende movimentar as personagens nas páginas seguintes. Seu assunto aqui é a vida monástica (“vie monacale”).

O importante é que a longa digressão – que compõe os Livros VI e VII – num total de 50 páginas, num estilo enunciativo de 'livro de História' é um exercício de historiador feito pelo Narrador – tanto quanto o Clero (ao situar o Monsenhor Bienvenu) quanto a Waterloo (ao situar o pai de Marius e o velhaco Thénardier, num contexto de derrota nacional). Aqui a 'história' da vida monática, onde as mulheres trocam as alegrias pelas severidades, as diversões pelas solenidade, a futilidade da 'vida mundana' pela obediência, está situada no plano da Restauração – uma vida medieval numa época 'herdeira' das Luzes [Lumières], do Iluminismo [Enlightment], do Esclarecimento [ Aufklärung]

O Liberal saúda a Democracia com sua 'liberdade de crença' contra o niilismo. Mesmos filósofos ditos 'profanos' – pois não ligado à Santa Igreja – tinham suas crenças .
Livro VIII
Assim foi nesse universo religioso solene e disciplinado que 'Valjean caiu do céu', ao fugir do policial Javert, cerca de 50 páginas antes. Lá, com a ajuda do velho Fauchelevent, outrora salvo de ser esmagado sob uma carroça, que o ex-forçado, ex-prefeito, poderá criar a menina Cosette, na 'pureza e na santidade'.

Antes, os dois homens precisam convencer a Madre-superiora, e inventam toda uma história de que o antigo prefeito era irmão de Fauchelevant, assim poderiam 'entrar pela porta da frente' sem despertar suspeitas – o principal para poderem fugir a vigilância obstinada de Javert. Assim é preciso sair num funeral, ser resgatado do túmulo e voltar como parente. (Qualquer semelhante com a 'cena dos coveiros' em “Hamlet” será mero acaso? Qualquer simbolismo com a 'ressurreição dos mortos' será mera coincidência?)

A Narração se caracteriza por uso de longos diálogos, algo de uma dramatização, a explorar a fala provincial, ou as expressões religiosas, meio as dificuldades de adaptação – visto a diferença 'vida mundana' e 'vida monástica'.

Aprovado durante a apresentação, sem dizer uma palavra, Valjean-Madeleine, agora “o outro Fauvent”, como as freiras passam a chamar aquele que apresentado como “o Último Fauchelevant”, ele passará a integrar aquele 'ambiente de beatitude' e verá Cosette crescer – ela será mesmo feia? - e se tornar moça.

“Pois agora Cosette ria.
A figura de Cosette estava até certo ponto mudada. A sombra havia sumido. O riso é o sol; afasta o inverno da face humana.
Cosette, mesmo não bonita, devia ser simpática aos outros. Ela dizia pequenas coisas sensatas com uma doce voz infantil.”

Car maintenant Cosette riait.
La figure de Cosette en était même jusqu'à un certain point changée. Le sombre en avait disparu. Le rire, c'est le soleil; il chasse l'hiver du visage humain.
Cosette, toujours pas jolie, devenait bien charmante d'ailleurs. Elle disait des petites choses raisonnables avec sa douce voix enfantine
.” (IX, p. 597)

O tempo passa, Cosette pode apenas sentir-se livre na clausura, o mundo daquele convento, num canto de Paris. Há agora um momento para se respirar, deixar a vida fluir na tranquilidade. Tudo sem atrair as suspeitas de um policial chamado Javert. Até o próximo volume, a Parte 3 (Marius).


.


Continua...


.
Leonardo de Magalhaens


.




.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Les Misérables - Parte 2 - Batalha de Waterloo






Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor-Hugo (1802-1885)

As Obras Clássicas (ensaio 3)

O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna
.
Parte 2 – Cosette – Livro 1 (Waterloo)
.
O Narrador descreve o Campo de Hougomont, em 1861, o mesmo local onde em junho de 1815 aconteceu a terrível Batalha de Waterloo, onde as forças francesas do imperador Napoleão Bonaparte foram derrotadas pelos ingleses, holandeses, belgas e prussianos.

Além das descrições dos momentos decisivos da Batalha, o Narrador traça um paralelo com outras batalhas, tais como a de Austerlitz (dezembro de 1805) e a das Nações (ou de Leipzig, outubro de 1813), apresentado os combatentes e suas desventuras, enquanto a figura de Napoleão 'personifica' o 'gênio militar'. Além de comparar até as 'condições meteorológicas' antes das Batalhas!

O cenário épico é confuso para o Narrador, imagine-se para as personagens... Lembramos logo daquele Fabricio del Dongo que atravessa o campo de Waterloo - sem saber o que acontece! - em “Cartuxa de Parma” (“La Chartreuse de Parme”, 1839), outro romance de Stendhal. Em “Guerra e Paz”, no Livro II, temos a descrição da Batalha de Austerlitz, quando as forças francesas derrotaram os austríacos, prussianos e russos.

A Batalha das Nações foi uma das maiores da Europa, antes da Primeira Guerra Mundial (um século depois), ao congregar austríacos, prussianos e russos, além de suecos e saxões, para derrotarem os franceses de Napoleão.

As imagens evocadas no campo de Waterloo são realmente muito fortes, com um evidente propósito de incomodar, chocar a sensibilidade do Leitor, no sentido de apresentar os horrores da guerra, e não um alegado aspecto 'glorioso',

“A tormenta do combate está ainda neste espaço; o horror é visível; a irrupção do conflito é de petrificar; tanto vive, tanto morre; foi bem aqui. Os muros agonizam, as pedras tombam, as fendas gemem; os buracos na campina, as árvores pendidas e trêmulas parecem faze esforço para se libertarem.” (“L'orage du combat est encore dans cette cour; l'horreur y est visible; le bouleversement de la mêlée s'y est pétrifié; cela vit, cela meurt; c'était hier. Les murs agonisent, les pierres tombent, les brèches crient; les trous sont des plaies; les arbres penchés et frissonnants semblent faire effort pour s'enfuir.” II, p. 324)
.
“Após a ação, tem-se pressa para enterrar os cadáveres. A morte tem uma maneira toda dela de empestar a vitória, e logo depois da glória envia a peste. O tifo é um anexo do triunfo. Se o poço é profundo, faz-se dele um sepulcro. Ali se joga uns trezentos mortos.” (“Après l'action, on eut une hâte, enterrer les cadavres. La mort a une façon à elle de harceler la victoire, et elle fait suivre la gloire par la peste. Le typhus est une annexe du triomphe. Ce puits était profond, on en fit un sépulcre. On y jeta trois cents morts.” II, p. 326)
O Narrador tem 'visão panorâmica' ao usar o seu 'direito' de 'flashback', “Voltemos atrás, eis um dos direitos do narrador, e nos localizemos no ano de 1815, e mesmo um pouco antes da época onde começa a ação narrada na primeira parte desse livro.” (“Retournons em arrière, c'est un des droits du narrateur, et replançons-nous em l'année 1815, et même un peu avant l'époque où commence l'action racontée dans le première partie de ce livre.”)

O Narrador aqui vem lembrar que temos uma 'ação narrada' situada numa dada cronologia – Jean Valjean 'surge na página' em outubro de 1815, sendo percebemos no Segundo Livro do Volume I – e se preocupa em relocalizar o leitor na 'sequência' da Narrativa, demasiadamente densa.

A descrição da Batalha no campo de Hougomont não é de 'historiador', sabemos, mas de 'romancista', há toda uma 'voz poética' a florear os eventos (lembramos que Victor-Hugo foi reconhecido poeta, além de prosador e dramaturgo). Mas não faltam os detalhes da 'arte militar', onde sabemos como estavam dispostas as forças combatentes, o número de canhões, o avanço e o retrocesso de cada ala, de cada regimento. Enquanto Napoleão explora o uso da artilharia concentrada para romper as frentes inimigas, os soldados são as vítimas que marcham diretamente para a morte. Há uma voz de comando e uma miríade de vozes de obediência.

Mas o 'gênio militar' de Napoleão não mostra muito brilho. A chuva certamente teria influenciado a firmeza do solo, e assim a dificultar o avanço da artilharia, o que acabou por atrasar a batalha – cerca de cinco horas de atraso, segundo o Narrador – e houve tempo para a chegada das tropas prussianas, para reforçarem as tropas inglesas e holandesas-belgas, em retirada.

“Suponha que a terra seque, a artilharia poderia rolar, a ação começaria às seis horas da manhã. A batalha estaria ganha e acabada às duas horas, três horas antes da peripécia prussiana. // Qual a quantidade de falhas existiram por parte de Napoleão na perda desta batalha? O naufrágio é imputável ao piloto?”(“ Supposez la terre sèche, l'artillerie pouvant rouler, l'action commençait à six heures du matin. La bataille était gagnée et finie à deux heures, trois heures avant la péripétie prussienne. // Quelle quantité de faute y a-t-il de la part de Napoléon dans la perte de cette bataille? le naufrage est-il imputable au pilote?” III, p. 330

A culpa da derrota: a chuva? O atraso da artilharia? O cansaço de Napoleão (após 20 anos de guerras)? Aqui o Narrador se permite ter opinião sobre o fato histórico! Não se limita a narrar – mas assume ares de historiador – em pleno romance. Se fosse uma personagem (como fará depois o Tolstoy) até poderíamos desculpar, mas... O Narrador preocupa-se com a 'veracidade' dos eventos narrados, e depois ainda se explica, se justifica.

“Desnecessário dizer que não pretendemos fazer aqui a História de Waterloo; uma das cenas primordiais de um drama que narramos se prende à esta batalha. (...)”
"Il va sans dire que nous ne prétendons pas faire ici l'histoire de Waterloo; une des scènes génératrices du drame que nous racontons se rattache à cette bataille;" p. 331

Pois “essa história não é nosso assunto” (“Il va sans dire que nous ne prétendons pas fare ici l'histoire de Waterloo...” “cette histoire n'est pas notre sujet.” p. 331)

E, em seguida, o Narrador lembra os nomes de 'historiadores' famosos (na época), tais como Walter Scott, Lamartine, Vaulabelle, Charras, Quinet, Thiers, e diz não ter “competência estratégica” para julgar os fatos de Waterloo, pois o próprio se justifica, “nós julgamos igual ao povo, este juiz ingênuo” (“nous jugeons comme le peuple, ce juge naïf”)

Napoleão, o Imperador, o “dernier césar”, encara o destino do seu Império, em pleno 'Governo dos Cem Dias', diante da 'confusão' do campo de batalha, a mesma que confundiu Fabricio Del Dongo, e confunde até hoje os especialistas da 'arte militar'. “Quid obscurum, quid divinum” (algo que é 'divino' por ser 'obscuro')

O Narrador assume que seu relato é resumo de resumo, um capítulo de romance baseado na História, que é um resumo dos acontecimentos. “O historiador, nesse caso, tem o direito evidente de resumir” (“L'historien, em ce cas, a le droit evident de résumé.” p. 336) O que o Leitor tem acesso é a uma das narrativas – ou seja, 'versão' – dos fatos.

Sabemos que os ingleses, e holandeses-belgas, recuam às 16 horas, quando a 'linha de defesa' é abalada. Sabemos que Hougomont e Haie-Sainte estão em mãos francesas. Sabemos que Napoleão sorri (“Napoléon de belle humeur”, VII), diante da retirada dos aliados. “O homem que foi sombrio em Austerlitz ficou alegre em Waterloo. Os grandes predestinados eram de contrasensos.” (“L'homme qui avait été sombre à Austerlitz fut gai à Waterloo. Les plus grands prédestinés font de ces contresens.” p. 339) E entendemos essa contradição ao lembramos que em Austerlitz, o General francês venceu, enquanto em Waterloo foi derrotado.

Foi preciso que milhares de homens, os mais fortes e bravos, se matassem naquele longo dia de combates para que odestino da Europa – e do mundo! - fosse decidido. E para que fossem escritas estas páginas memoráveis sobre a glória e a estupidez das guerras, sobre o sangue e o ferro nos campos de Waterloo, nas obras “Cartuxa de Parma” e este, “Os Miseráveis”.

O Narrador vê o campo de batalha como uma enorme sepultura francesa, “duas grandes sepulturas; uma, a tumba inglesa, à esquerda; a outra, a tumba alemã, à direita. Não há uma tumba francesa. Para a França, toda esta planície é sepulcro.” (“deux grands sépultures; l'une, le tombeau anglais, à gauche; l'autre, le tombeau allemand, à doite. Il n'y a point de tombeau français. Pour la France, toute cette plaine est sépulcre.” VII, p. 543)

Segundo as estimativas, em Hougomont, 1500 mortos em menos de uma hora, enquanto em Haie-Sainte, 1800 mortos em menos de uma hora, ou ainda menos! Toda esta carnificina aos olhos de Napoleão, p. 345

A narrativa da batalha tem algo de 'cubista', expressionista quase poética (poema em prosa)

“Tais narrativas parecem ser de outra época. Algo de semelhante a esta visão aparecia sem dúvida nas velhas epopeias órficas narrando sobre homens-cavalos, os antigos centauros, esses titãs de face humana e corpo equino, cujo galope escalou o Olimpo, horríveis, invulneráveis, sublimes; deuses e bestas.”
(“Ces récits semblent d'un autre âge. Quelque chose de pareil à cette vision apparaissait sans doute dans les vieilles épopées orphiques racontant les hommes-chevaux, les antiques hippanthropes, ces titans à face humaine et à poitrail équestre dont le galop escalada l'Olympe, horribles, invulnérables, sublimes; dieux et bêtes.” IX, p. 348)

Quem derrotou Napoleão? Os ingleses? As fatalidades? O terreno acidentado? O Narrador garante que é a 'vontade divina', “Bonaparte vencedor em Waterllo não estaria na regra do século dezenove. Uma outra série de fatos de preparava, onde Napoleão não tinha lugar. A má vontade dos acontecimentos se anunciavam de longa data. // Era tempo de que esse homem poderoso tombasse.” (“Bonaparte vainqueur à Waterloo, ceci n'était plus dans la loi du dix-neuvième siècle. Une autre série de faits se préparait, où Napoléon n'avait plus de place. La mauvaise volonté des événements s'était annoncée de longue date. // Il était temps que cet homme vaste tombât.” IX, p. 350)

A História enquanto 'lei da estatística', se X não acontecesse então Y seria diferente, o século XIX seria outro com a vitória de Napoleão, etc... E não dizemos o mesmo hoje, quando nos referimos às guerras mundiais? Se os alemães vencessem, se Hitler vencesse os Aliados, se os japoneses vencessem os norte-americanos... Como seria o nosso mundo? (Eis toda um 'segmento de mercado' para os autores de distopias históricas, vejam http://en.wikipedia.org/wiki/Category:World_War_II_alternate_histories)

O Narrador de Victor-hugo sabe ser grandioso (ou melhor, exagerado) em suas descrições demasiadamente românticas, a lembrar as cenas épicas de um Sir Walter Scott, ou as batalhas descritas no clássico português “Euríco, o Presbítero” (1844) de Alexandre Herculano (1810-1877), na guerra entre godos e árabes,“O chão pareceu afundar-se com o encontro daquelas duas mós enormes de homens armados, e o eco dos botes das lanças nos escudos convexos e nas armas sonoras dos cavaleiros repercutiu nas encostas fronteiras e desvaneceu-se ao longe, murmurando entre as quebradas. Desde o primeiro embate, não mais fora possível distinguir os exércitos travados como dous lutadores furiosos.” (11, Dies Irae)

“Esta estranha batalha era como um duelo entre feridos furiosos que, cada qual de seu lado, sempre resistindo e combatendo, e perdendo todo o sangue. Qual dos dois tombará primeiro?” (“Cette étrange bataille était comme un duel entre deux blessés acharnés qui, chacun de leur côté, tout en combattant et en se résistant toujours, perdent tout leur sang. Lequel des deux tombera le premier?” X, p. 353 )

A ponto de vencer os ingleses (e holandeses e belgas), os franceses receberam na retaguarda o ataque prussiano (cap. XII, La Guarde), “Como ela [a Guarda Imperial] sentia que iria morrer, ela gritava: 'Viva o Imperador!' A história nada mais tem de mais emocionante que esta agonia a romper em aclamações.”(“Comme elle sentait qu'elle allait mourir, elle cria: vive l'empereur!
L'histoire n'a rien de plus émouvant que cette agonie éclatant en acclamations.”
, XII, p. 357)

O Narrador – de um Autor francês – nesse ponto perde toda a pretensa 'objetividade' (ou 'imparcialidade') pois não hesita em exaltar o Imperador Napoleão e o 'nosso' exército – a glória da França (assim como Tolstoy, em “Guerra e Paz”, exalta a resistência russa às ofensivas napoleônicas...), “nas brumas deste conflito, o inimiga sentia o respeito pela França” ("dans le brume de cette mêlèe, l'ennemi sentit le respect de la France” p. 357)

Sabemos que o Marechal Ney perdeu cinco cavalos – mas não morreu! - e acabou fuzilado pelos 'monarcas', culpado por ter apoiado Napoleão! E que os prussianos se vingaram do que sofreram nas mãos dos exércitos franceses em 1806, em Austerlitz e em Leipzig, 1813. “Blücher ordena o extermínio” (“Blücher ordonna l'extermination”) e “A vitória se completa com o assassinato dos vencidos. Posto que somos a história, devemos punir: o velho Blücher se desonra.” (“La victoire s'acheva par l'assassinat des vaincus. Punissons, puisque nous sommes l'histoire: le vieux Blücher se déshonora.” (XIII, La Catastrophe, p. 359)

Conclui-se (se podemos concluir algo) que os franceses e os britânicos (ingleses e escoceses, e juntamente com holandeses e belgas) combateram o dia todo e não se derrotaram, e quando os britânicos já recuavam então foram 'salvos' pelos prussianos. [Continuando, uma vez que 'somos a história', podemos lembrar que nas Grandes Guerras do século XX, franceses e britânicos não conseguiram vencer os alemães – foi preciso uma força aliada congregando norte-americanos e russos. Na Primeira Guerra Mundial, quando os alemães já estavam exaustos, chegaram os norte-americanos em prontidão.] Em Waterloo, os franceses exaustos caíram aos pés dos recém-chegados prussianos. Então, os franceses que dominaram por vinte anos a política europeia, os franceses da “Grand Armée”, se debandaram em fuga: foi o dia do desastre, o fim do império de Napoleão (depois foi enviado para outro exílio, ainda mais distante, na ilha de Santa Helena, onde escreveu suas memórias, que tanto influenciaram – como já vimos – o aventureiro Julien Sorel, de “Le Rouge et Le Noir”, de Stendhal )

“Essa vertigem, esse terror, essa queda em ruína da mais alta bravura que já assombrou a história, seria pois sem uma causa? Não. A sombra de uma mão enorme se projeta sobre Waterloo. Era o dia do destino.” (“Ce vertige, cette terreur, cette chute en ruine de la plus haute bravoure qui ait jamais étonné l'histoire, est-ce que cela est sans cause? Non. L'ombre d'une droite énorme se projette sur Waterloo. C'est la journée du destin. XIII, p. 360)

O século 19, então, é fruto de Waterloo, “Waterloo é a dobradiça do século dezenove. O desaparecimento de um grande homem era necessário à ascensão do grande século.” (“Waterloo, c'est le gond du dix-neuvième siècle. La disparition du grand homme était nécessaire à l'avènement du grand siècle.” XIII, p. 360)

[Então, é de se perguntar: o século 20 é fruto de que? De Verdun? De Brest-Litovski? De Stalingrad? De El-Alamein? Do Dia-D na Normandia? A história é mesmo movida por batalhas ganhas e batalhas perdidas?]

O Narrador se dirige ao Leitor (aquele imaginado, idealizado), “O leitor francês querendo ser respeitado, talvez a mais bela palavra que um francês tenha dito não poderá ser repetida. Evita-se o relatar o sublime na história.” (“Le lecteur français voulant être respecté, le plus beau mot peut-être qu'un Français ait jamais dit ne peut lui être répété. Défense de déposer du sublime dans l'histoire." XV, p. 362)

Sempre a exaltar o heroísmo dos franceses (caso contrário, somente haveria o derrotismo francês...), o Narrador lembra do oficial da 'velha Guarda' que disse um impronunciável 'merde' aos oficiais ingleses, que exigiam a rendição. [No século XX, em plena Segunda Guerra, é famoso o caso do general norte-americano McAuliffe a responder com um 'nuts!' - 'ora bolas!' - a uma ordem de rendição dos alemães, em Bastogne, em plena Batalha do Bulge, dezembro de 1944] Assim a fanfarronice de Cambronne ao final da tragédia, é possível dizer que Waterloo finda em carnaval, a completar Leónidas [dos 300 de Esparta contra os persas] com Rabelais [o autor de comédias e sátiras].

Enquanto Leitor podemos dizer que o 'estilo' de um Machado de Assis, nosso tão louvado escritor brasileiro, está quase todo aqui em Victor-Hugo, só faltando mesmo os 'toques' de Sterne e Xavier de Maistre, com suas digressões... A relação Narrador (ou, par conséquence, Autor) e o Leitor é sempre tensionada pela 'cumplicidade' exigida, num 'flerte' entre o pedagógico e o irônico, pois tanto Victor-Hugo quanto Machado de Assis querem 'ensinar' algo – uma moral – aos leitores, confiam em tão sublime missão da Literatura.

A narrativa épica pretende algo semelhante: o sublime para melhor 'edificar os espíritos', despertar as mentes com as 'visões da glória'. Mas no campo de batalha, em Waterloo, não há qualquer 'glória'. A noite e a morte dominam. “foi assim que as legiões francesas, maiores que aquelas de Roma, expiraram em Mont-Saint-Jean sobre a terra molhada de chuva e de sangue, nos trigais sombrios, ...” (“c'est ainsi que les légions françaises, plus grandes que les légions romaines, expirèrent à Mont-Saint-Jean sur la terre mouillée de pluie et de sang, dans les blés sombres", XV, p. 364)

Quando Victor-Hugo escreveu Les Misérables (1861-62) ainda havia paz entre as nações – europeias, entenda-se – com apenas um conflito de 'renome', a Guerra da Crimeia, entre 1853 e 56, quando os britânicos (apoiados por franceses e italianos da Sardenha) e os turcos enfrentaram a expansão russa no Mar Negro – lá os ingleses enfrentaram dificuldades dignas das 'guerras napoleônicas' onde a carga da cavalaria ('brigada ligeira') inglesa na Batalha de Balaclava – outubro de 1854 – foi tão disastrosa quanto a carga da cavalaria ('cuirassiers') francesa em Waterloo. Na Europa, na época em que o Autor redigia sua obra-prima, despontava a guerras de unificicação da Itália e da Alemanha. Nesta última, destacava-se o 'punho forte' do chanceler prussiano von Bismarck, em guerra contra a Dinamarca (1864), Áustria (1866) e França (1870-71). Logo, o Victor-Hugo pode dizer que a Queda de Napoleão trouxe paz (de 1815 a 1870 a paz era quebrada por 'revoluções internas' em cada país – 1830, 1832, 1848). É nesse sentido que pode se entender que “o desmoronamento da monarquia militar' (“écroulement de la monarchie militar”) [de Napoleão] trouxe a “ derrota da guerra” (“déroute de la guerre.”)

A grandeza de um povo não está nas armas (cap. XVI, Quot libras in duce? , Qual o peso, o valor, de um chefe?), “Os povos são grandes além das lúgubres aventuras da espada. Nem a Alemanha, nem a Inglaterra, nem a França, têm sua grandeza numa bainha de espada.” ( “Les peuples sont grands en dehors des lugubres aventures de l'epée. Ni l'Allemangne, ni l'Angleterre, ni la France, ne tienent dans un fourreau." p. 365) Pois, além dos generais – Wellington, Blücher, Napoleão – existem os poetas, os literatos – Goethe, Schiller, Lord Byron, Shelley, Baudelaire – que 'humanizam' a civilização tão manchada de sangue.

O que a Inglaterra e a Alemanha foram no século XIX não se deve a Waterloo, “O que elea stiveram de engrandecimento no século dezenove não tem origem em Waterloo.” (“Ce qu'elles ont d'agrandissement au dix-neuvième siècle n'a point Waterloo pour source.” p. 365) Então o que foi Waterloo? Uma partida! “O que é Waterloo? Uma vitória? Não. Uma partida. // Partida ganha pela Europa, paga pela França” (“Qu'est-ce que Waterloo? Une victoire? Non. Un quine. // Quine gagné par l'Europe, payé par la France.” p. 365)

As estratégias de guerra dependem das idiossincrassias dos generais? Parece que sim. Wellington, o inglês, é a precisão e o cálculo, enquanto Napoleão é a intuição, a arte, a genialidade. “Wellington era o Barême da guerra, Napoleão era o Michelângelo; e dessa vez o gênio foi vencido pelo cálculo.”(“Wellington était le Barème de la guerre, Napoléon en était le Michel-Ange; et cette fois le génie fut vaincu par le calcul.” p. 366)

Barême aqui evoca o prodigioso matemático francês do século 17, enquanto Michelângelo é aquele magistral artista italiano, pintor, escultor e arquiteto, que viveu entre os séculos 15 e 16. Assim, temos o confronto entre o Cálculo e a Intuição. Além disso, haviam as tropas coligadas que os generais esperavam como 'reserva estratégica', “De ambos os lados esperava-se alguém. E foi o calculador exato que foi bem sucedido. Napoleão esperava Grouchy; ele não veio. Wellington esperava Blücher; ele veio.” (“Des deux côtés on attendait quelqu'un. Ce fut le calculateur exact qui réussit. Napoléon attendait Grouchy; il ne vint pas. Wellington attendait Blücher; il vint.” p. 366)

Também nas guerras modernas encontramos o clássico (iguais a Wellington) e o românticos (semelhantes a Napoleão), por exemplo, na Segunda Guerra Mundial, temos o genial general alemão Rommel em contrapronto ao metódico Montgomery; ou no plano político, o clássico Churchill contra o revolucionário-alucinado Hitler). São paradigmas dados pelo próprio Napoleão, que revolucionou a guerra, com o uso de artilharia concentrada, exército popular, guerra total, etc. , a ponto de atemorizar as Monarquias – principalmente a Inglaterra, Prússia e Rússia – que se uniram contra o Imperador francês. A fama de Napoleão era tanta que aquele que o venceu – Wellington – foi glorificado. E o Narrador (voz do Autor) declara que a Inglaterra ao glorificar Wellington (o ingrato) acaba por desmerecer o bravo exército inglês, que mantinha a ordem até em retiradas (enquanto o exército francês entrou em pânico...) “Ao fazer Wellington tão grande, a Inglaterra se faz pequena.” (“Faire Wellington si grand, c'est faire l'Angleterre petite.” p. 367)

É a velha mania de engrandecer os 'grandes homens', os heróis, enquanto são os povos que se matam nas batalhas e os nobres levam a fama. Ainda mais a Inglaterra que mesmo após as revoluções de 1688, 1789, 1848, ainda conserva a Nobreza – seria diferente se a Inglaterra fosse derrotada em 1815? ou em 1918? ou em 1940? é uma boa questão...)

Mas, afinal, o que foi Waterloo? Um massacre. “Para concluir, digamos que em Waterloo houve mais massacre do que batalha” (“Au total, dison-le, il y eut à Waterloo plus de massacre que de bataille” p. 368 ) Na campina próxima a Waterloo morreram 60 mil dos 144 mil combatentes! Das baixas, mais da metade (cerca de 56 por cento) eram franceses.

Os liberais, estranhamente, parecem não odiar Waterloo, a derrota que restaurou o Absolutismo. Uma discussão que já encontramos nas páginas de “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal, escrito em 1830, quinze anos após a terrível batalha. Para o Narrador, Waterloo é a “vitória contrarevolucionária”, pois venceram as velhas monarquias contra o novo César, o novo Imperador. Assim, seria Napoleão – com seu 'liberalisme bonapartiste' - um 'revolucionário'? Ou outro imperialista a ameaçar os imperialistas de antes? (De modo semelhante, se Churchill é o conservador, então Hitler era o 'revolucionário'?)

Encontramos algo de bom em Waterloo? Afinal, o status quo foi mantido – as velhas Monarquias. (Muitas sobreviveriam até 1918, ou mais, 1945), “é o status quo contra a iniciativa, é o 14 de julho de 1789 atacado através do 20 de março de 1815; é o ressoar do combate das monarquias contra a indomável revolta francesa.” (“ c'est le statu quo contre l'initiative, c'est le 14 juillet 1789 attaqué à travers le 20 mars 1815, c'est le branle-bas des monarchies contre l'indomptable émeute française.” XVII, p. 369)

Após Waterloo, iniciou-se o ciclo de 'monarquias constitucionais', daí a aprovação dos liberais, contrários ao 'droit divin' (Absolutismo) Para Victor-Hugo, a 'revolução' é o Progresso. E Waterloo foi um retrocesso, mas aceitando (sendo condescendente) o Constitucionalismo – daí se dizer “Monarquias Constitucionais” para se distinguir das “Monarquias Absolutistas” - que 'amansou' (momentaneamente, como sabemos) o 'espírito revolucionário'.

“Não vejamos em Waterloo mais do que há em Waterloo. Nenhuma liberdade intencional. A contrarevolução era involuntariamente liberal, do mesmo modo que, por um fenômeno correspondente, Napoleão era involuntariamente revolucionário. Em 18 de junho de 1815, derrubaram Robespierre do cavalo.”

(“Ne voyons dans Waterloo que ce qui est dans Waterloo. De liberté intentionnelle, point. La contre-révolution était involontairement libérale, de même que, par un phénomène correspondant, Napoléon était involontairement révolutionnaire. Le 18 juin 1815, Robespierre à cheval fut désarçonné.” XVII, p. 369)

Após Waterloo, volta-se a simbiose Nobreza + Clero, como é explítico em “O Vermelho e o Negro”, quando “O altar e o trono se fraternizaram majestosamente.”( "L'autel et le trône fraternisèrent majestueusement” XVIII, p. 371) Foi a famosa “Restauração”, patrocinada pelas Monarquias Centrais (Áustria, Prússia e Rússia, congregadas na “Santa Aliança”), “e o antigo regime tronou-se o novo, e toda a sombra e toda a luz do mundo mudaram de lugar” (“et l'ancien régime est devenu le nouveau, et toute l'ombre et toute la lumière de la terre ont changé de place,” XVIII, p. 371)

O Antigo retorna dizendo-se 'novo', “As velhas realezas malsãs e venenosas se cobriram de novas aparências. A mentira desposa 1789, o direito divino se mascara com uma Constituição [Carta Magna], as ficções tornaram-se constitucionais, os preconceitos, as superstições e as ambiguidades [pensamentos dúbios], com o artigo 14 no coração, se envernizaram de liberalismo. Troca de pele de serpentes.”(“Les vieilles réalités malsaines et vénéneuses se couvrirent d'apparences neuves. Le mensonge épousa 1789, le droit divin se masqua d'une charte, les fictions se firent constitutionnelles, les préjugés, les superstitions et les arrière-pensées, avec l'article 14 au coeur, se vernirent de libéralisme. Changement de peau des serpents.” p. 372)

O liberalismo das 'monarquias constitucionais' seria uma 'aparência', discurso demagógico, apenas 'verniz' sobre o 'antigo Regime'. Assim é atualmente, em nosso início de século 21, onde as Democracias liberais são apenas 'verniz' de 'decisão popular'. A dominação continua.] Após o terremoto chamado Napoleão Bonaparte, o que sobrou? Um vazio de poder, cobiçado pelos reis. “Os reis cobiçaram este vazio. A velha Europa aproveita para se reformar. Teve até uma Santa-Aliança. Bela Aliança, teria dito antes o campo fatal de Waterloo.” (“Les rois se mirent dans ce vide. La vieille Europe en profita pour se reformer. Il y eut une Sainte-Alliance. Belle-Alliance, avait dit d'avance le champ fatal de Waterloo.” XVIII, p. 372)

Interessante que Waterloo, para os prussianos, é a Batalha de Belle-Alliance. Na verdade, cidade belga Waterloo ficava a 4 quilômetros de distância, e meia légua de Mont-Saint-Jean, o acampamento britânico.

Pois bem, os capítulos I a XVIII do Livro I (Waterloo) – sabemos agora – é uma longa digressão, épica-romântica, pois há uma cena que integra o romance, a 'narrativa propriamente dita'. Assim revela o capítulo derradeiro (XIX, O campo de batalha à noite), “Voltemos, é uma necessidade desse livro, sobre esse fatal campo de batalha.” (“Revenons, c'esr une nécessité de ce livre, sur ce fatal champ de bataille.” p. 373)

Waterloo. 18 de junho de 1815. Noite de lua cheia. Os prussianos perseguem os franceses. Os ingleses dormem no acampamento dos franceses (“eis a constatação habitual da vitória; dormir na cama do vencido.”, “c'est la constatation habituelle de la victoire; coucher dans le lit du vaincu.” p. 373) Nada mais que a vã-glória da guerra, “Não somos daqueles que elogiam a guerre; quando a ocasião se apresenta, nós dizemos as verdades.” (“Nous ne sommes pas de ceux qui flattent la guerre; quand l'occasion s'en présente, nous lui disons ses vérités.” p. 373)

Após a batalha, sobre os corpos sangrados dos 'heróis' voam os abutres, os corvos e ... perambulam os ladrões! “Quem são estes ladrões a se aproveitarem da glória?” (“Quels sont ces filous faisant leur coup derriere la gloire?” p. 374) Podem ser soldados do exército vencedor? “O herói do dia é o vampiro da noite. Se acham no direito de, após tudo, espoliar os cadáveres dos quais são causadores. Quanto a nós, não pensamos assim.” (“Le héros du jour est le vampire de la nuit. On a bien le droit, après tout, de détrousser un peu un cadavre dont on est l'auteur. Quant à nous, nous ne le croyons pas.” p. 374)

O Narrador não acusa os soldados, mas os desertores, os mercadores de beira de estrada, mesmo que alguns generais tenham permitido a 'pilhagem' como um 'troféu'. Um exemplo é o general francês Turenne, nas guerras do século 17. Foram terríveis os saques franceses durante a Guerra dos 30 Anos, que vitimou principalmente a região dos Estados germânicos, a atual Alemanha.

Lá estão, os ladrões a saquearem os mortos em Waterloo. Para coroar o horror da batalha, eis a mesquinharia dos ladrões. Quem é aquele ladrão a perambular nas sombras? E quem é o agonizante que se reanima? Na cena final, sabemos que o ladrão diz se chamar Thenardier, e ser sargento. E o homem ferido é o oficial Pontmercy.

... ...
.
por Leonardo de Magalhaens
.
.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

continua o ensaio sobre Os Miseráveis





Sobre Os Miseráveis (Les Misérables, 1862)
do escritor francês Victor-Hugo (1802-1885)
.
As Obras Clássicas (ensaio 3)
.
O Romance Burguês enquanto Epopeia moderna

Livro 5 – La descente ( a queda)
.
O fato é que a miséria de Fantine ainda terá mais um capítulo. De volta a cidadezinha de Montreuil-sur-Mer, a moça vai encontrar emprego nas oficinas de um próspero patrão, que aliás é também o prefeito. Um homem já idoso chamado afetuosamente por 'le pére Madeleine',

“Era um homem de cerca de cinquenta anos, que tinha o ar preocupado e que era bom, Eis tudo o que se podia dizer.” (“C'était un homme d'environ cinquante ans, qui avait l'air préocupé et qui était bom. Voilà tout ce qu'on em pouvait dire.” II, p. 171)

O pai Madeleine era o empresário, o patrão, compreensivo que só exigia uma coisa – seja um homem honesto, seja uma moça honesta!

Mas quem era esse Madeleine? De onde viera? Qual o seu passado? Morava há cinco anos na cidade, e pouco se sabia. Era próspero, mas solitário. Um patrão a exigir honestidade, e não lucros. Certo dia, em 1821, ele foi visto trajando luto, com ares pesarosos. A notícia nos jornais dizia: morte do bispo de Digne, Monsenhor Myriel, dito Benvindo. Assim, muitos julgaram que o 'pai Madeleine' fosse algum parente do piedoso sacerdote.

Aqui, nós, os leitores, afogados em informações, descrições e digressões, começamos a entender – a encontrar o 'fio de Ariadne' neste labirinto de 900 páginas! O fato é que Madeleine é o Jean Valjean de 50 páginas antes. E porque acompanhamos a vida da alegre e depois desiludida Fantine? Haverá algo a unir as vidas do ex-forçado e a mãe solteira? Nós, leitores, esperamos um caso amoroso, talvez...

Mas Madeleine é um patrão modesto, e discreto, não se envolve com as trabalhadoras (como vários patrões faziam, a transformarem as mulheres pobres em empregadas e concubinas...), assim também evita compromissos políticos. Mas sua prosperidade e fama resulta num convite para assumir a prefeitura da cidade – ele hesita mas acaba por aceitar.

Na chefatura de polícia há uma personagem de excêntrico fanatismo em suas funções, o rigoroso agente Javert, cuja descrição é ao estilo naturalista (aos moldes usados com o casal Thénardier)

“Certos oficiais de polícia têm uma fisionomia distinta e que se complica com um ar de baixeza unida a um ar de autoridade, Javert tinha tal fisionomia, mesno a baixeza. (“Certains officiers de police ont une physionomie à part er qui se complique d'un air de bassesse melé à un air d'autorité. Javert avait cette physionomie, moins la bassesse.” V, p. 181)

“Esse homem era composto de dois sentimentos bem simples, e relativamente bons, mas que se faziam quase prejudiciais devido ao exagero: o respeito a autoridade, o ódio da rebelião; e aos seus olhos o roubo, o assassínio, todos os crimes, nada mais eram do que formas da rebelião.” (“Cet homme était composé de deux sentiments très simples, et relativement très bons, mais qu'il faisait presque mauvais à force de les exagérer: le respect de l'autorité, la haine de la rébellion; et à ses yeux le vol, le meurtre, tous les crimes, n'étaient que des formes de la rébellion.” V, p. 183)

A descrição de Javert tem algo de 'naturalista' que realmente pode ter influenciado a 'estilística' de um Zola (mas aí é dizer que Victor-Hugo é um pré-naturalista?) O Autor aqui não enfatiza um estilo – adequa o estilo ao tipo de personagem (ou ao tipo de efeito que pretende causar no Leitor) Tanto é seu interesse o 'efeito' que 'dá uma pausa' na narrativa para descrever a personagem, fisica e psicologicamente, ou um dado local, como se fosse um 'cenário' – e Victor-Hugo era também dramaturgo – cria e descreve o cenário para então inserir as personagens.

Enquanto o romance na virada dos séculos 19 para o 20, passa a 'fundir tudo', quando o Leitor aprende mais sobre a personagem, ou sobre o local, ao longo da Narrativa. O autor modernista entrega o cenário e as personagens entrelaçados, e o Leitor 'monta' o espetáculo. Assim, o Leitor moderno é convidado a ser co-Autor.

O didatismo de Victor-Hugo é proverbial. Faz uma referência à Batalha de Waterloo, e depois dedica-se, ao longo de 60 páginas, a explicar o que foi a batalha. Refere-se aos esgotos de Paris, e dedica longa digressão a topografia subterrânea da capital francesa...

O 'pére' Madeleine sentia o olhar agudo do agente Javert. E não pôde evitar um colóquio quando de um acidente nas ruas. O acidente com o velho 'pére' Fauchelent, um desafeto de Madeleine. O velho de repente viu-se caído sob as rodas da própria carroça. E quem poderia ajudar? Era preciso suspender a carroça... Javert posicionou-se junto a Madeleine, perplexo diante da impotência geral. O agente somente conhecia uma pessoa com tamanha força para levantar uma carroça, e esta pessoa era um velho forçado. Madeleiene sente o 'olho de falcão' sobre ele, mas não pode deixar de suspender a acarroça e salvar o velho Fauchelevent.

“Javert replicou: 'Só conheci uma vez um homem capaz de substituir uma alavanca. Era um forçado.' -'Ah! Isso me esmaga! Grita o velho.' Madeleine levanta a cabeça, encontra o olho de falcão de Javert sempre sobre ele, observa os camponeses imóveis, e sorri tristemente. Depois, sem dizer uma palavra, se inclina de joelhos, e antes que a multidão tenha tempo de dar um grito, ele estava sob a carroça. Seguiu-se um agônico momento de espera e silêncio.”

Javert reprit:
--Je n'ai jamais connu qu'un homme qui pût remplacer un cric. C'était ce
forçat.
--Ah! voilà que ça m'écrase! cria le vieillard.
Madeleine leva la tête, rencontra l'oeil de faucon de Javert toujours attaché sur lui, regarda les paysans immobiles, et sourit tristement. Puis, sans dire une parole, il tomba à genoux, et avant même que la foule eût eu le temps de jeter un cri, il était sous la voiture.
Il y eut un affreux moment d'attente et de silence.

(VI, p. 187)

Assim, o velho Fauchelevent foi salvo, tratado num hospital e depois foi trabalhar como jardineiro num convento, em Paris. Pensamos: por que tantos detalhes? Por que o Narrador é tão detalhista? Mas guarde o nome do convento – 'couvent de femmes du quartier Saint-Antoine à Paris' – que será essencial (ou providencial) em outro capítulo.

Ficamos sabendo que foi após o incidente narrado que Madeleine aceitou a nomeação para ser o prefeito. Então o agente javert redobra a atenção. Seu 'faro' indica 'presa grande'.

Em seguida, temos a reentrada da personagem Fantine. Boatos sobre o passado da moça ameaçam a nova vida, como empregada em uma das oficianas das empresas do 'père' Madeleine. Uma das colegas, daquelas 'inconvenientes', descobre que Fantine é mãe e não é casada. Uma mãe solteira é motivo de 'deboche'. Assim, Fantine é logo demitida.

A demissão de Fantine acelera a 'queda' daquela bela e modesta moça dos capítulos anteriores. O Narrador capricha na decadência para fazer o Leitor sofrer, ampliar o 'efeito'. Moça singela, iludida, engravidada, abandonada, mãe solteira que abandona a vida parisiense, volta para a província, depois perde o emprego, cai na miséria. E ainda precisa sustentar a 'fome de dinheiro' do casal Thénardier, os 'abutres' do Romance.

“Passou-se um tempo. Fantine já trabalhava há um ano na fábrica, até que um dia a encarregada do ateliê a ela entregou, da parte do Sr. Prefeito, cinquenta francos, e lhe dizia que ela não fazia mais parte do ateliê e se empenhar, segundo o Sr. Prefeito, em deixar a região.
Foi precisamente nesse mesmo mês que o casal Thénardier, após ter pedido doze francos ao invés de seis, vinha exigir quinze francos e não mais doze.”

(“Tout cela prit du temps. Fantine était depuis plus d'un an à la fabrique, lorsqu'un matin la surveillante de l'atelier lui remit, de la part de M. le maire, cinquante francs, en lui disant qu'elle ne faisait plus partie de l'atelier et en l'engageant, de la part de M. le maire, à quitter le pays.
C'était précisément dans ce même mois que les Thénardier, après avoir demandé douze francs au lieu de six, venaient d'exiger quinze francs au lieu de douze
.” VIII, p. 191)

Claro está que o Sr. Prefeito, o pére Madeleine nada sabe da história. Nada sabe sobre a demissão da empregada Fantine, agora condenada à miséria. (Pior que ser explorado, é não ser explorado, é ser desempregado, excluído, marginalizado...) A queda de Fantine se acelera, num processo infernal e doloroso, perde a alegria, perde a filha, perde o emprego, perde a beleza. Tudo porque na província o que não falta é 'maledicência': todos falam da vida de todos. Enquanto em Paris, ao menos, tem-se o anonimato. O 'cada um por si' que abriga os santos e pecadores.

Esta comparação entre metrópole e província, cidade e campo, está em todos os grandes romances do século 19, quando a Europa (e outras partes do mundo) sofriam o processo de urbanização, exôdo rural, industrialização, concentração populacional nas metrópoles, etc, em que, seja em Paris, Londres ou San Petersburg, uma massa de despossuídos aumentava a decadência das cidades. Esta dicotomia está nos romances de Stendhal, de Dickens, de Balzac, de Dostoiévski, de Zola.

Enquanto a miséria envolve a pobre Fantine, os Thénardier exigem mais dinheiro, a ponto da mulher precisar vender os cabelos. E nisso tudo, a Fantine ainda culpa o Sr. Madeleine – que obviamente não sabe da vidas dos empregados. E outra carta dos Thénadier anuncia que a menina Cosette está doente! Então Fantine hesita e hesita, mas acaba por vender os belos dentes. A narrativa é mesmo dolorosa – a miséria é o Protagonista deste Romance.

A miséria fragmenta o psíquico e o corporal, a perda da alegria, da identidade, dos cabelos, dos dentes... E o dramático: Cosette nem estava doente! Trata-se apenas de uma nova artimanha do casal de trapaceiros. (Realmente, este sinistro casal Thénardier consegue projetar uma sombra de abutre por toda a narrativa...) A decadência de Fantine parte a parte é completada com uma vida de prostituição. Ela 'vende o resto', “ a infeliz tornou-se mulher pública.” (“L'infortunée se fit fille publique.” p. 199)

O Narrador apresenta os culpados. O que pretende esta história de Fantine? Que a sociedade aceita outro escravo da miséria. “À fome, ao frio, ao isolamento, ao abandono, ao desnudamento. Uma marcha dolorosa. Uma alma por um pedaço de pão. A miséria oferece, a sociedade aceita.” (“A la faim, au froid, à l'isolement, à l'abandon, au dénûment. Marché douloreux. Une âme pour un morceau de pain. La misère offre, la societé accepte.” p. 199)

Meses depois, o Narrador apresenta uma cena noturna, onde uma mulher prostituída é humilhada por um dândi boêmio. Desta vez, a mulher não se deixou resignar – avançou e golpeou o farrista. E não demorou a chegada das 'autoridades'. E a vítima torna-se a ré. Era Fantine. Diante das autoridades – quem mais além de Javert, severo e implacável? - ela será condeanda. O farrista aproveita-se para fugir.

Novamente, encontramos a 'justiça' punindo a vítima e deixando livre o criminoso. O pobre é culpado pela pobreza, a prostituta é culpada por prostituir. O Narrador tece longas considerações sobre as questões de polícia – ao estilo “vigiar e punir”, a mesma temática re-analisada pelo filósofo Michel Foucault no século 20 – onde a revolta diante da desigualdade social é represada pelo medo-terror diante da autoridade policialesca.

Como poderá a pobre Fantine enviar dinheiro para que os Thénardier? Estes que continuam guardando (ou melhor: explorando) sua filha Cosette. Será uma solução a prisão – por seis meses – da mulher que não passa de uma vítima de sedutores e exploradores? Mas parece que um 'deus ex machina' que vai salvar a vítima, a desabafar suas misérias para ouvidos surdos. Quem ali surge é a figura austera do Sr. Madeleine, o prefeito. Mas ele é justamente quem Fantine considera o 'culpado' por sua miséria! E ele é recebido por uma mulher desfeita que lhe cospe no rosto!

O Sr. Madeleine não altera sua decisão de libertar a mulher. Javert não pode suportar tamanha interferência ao exercício de sua profissão. Ainda, mais que nutre suspeitas de que Madeleine seja aquele ex-forçado, o tal Valjean. Fantine, desesperada, dedica-se a ofender o que se dedica a libertá-la. Parece que Fantine até prefere ser motivo de zombaria – e de tortura! - dos soldados, do que aceitar a ajuda do prefeito! O prefeito que sequer faz queixa do insulto sofrido. Ainda que Javert considere que “não o prefeito quem foi insultado, mas Justiça” (“Je demande pardon à monsieur le maire. Son injure n'est pas à lui, elle est à la justice.” XIII, p.210)

Não é a Justiça que serve aos humanos, mas os humanos que servem à Justiça! Belo policial temos aqui. O 'dever' impõe prender uma vítima da miséria à seis meses de prisão, é o que pensa o inspector Javert. Mas o embate entre os dois homens – ou dois sistemas – é decidido ainda pela 'força da lei', quando Madeleine afirma “Devo lembrar ao senhor o artigo oitenta-e-um da lei de 13 de dezembro de 1799 sobre detenção arbitrária.” (“Je vous rappelle, à vous, l'article quatrevingt-un de la loi du 13 décembre 1799 sur la détention arbitraire.”, p. 210)

Mas a intervenção de Madeleine – em promessas de pagar as dívidas de Fantine, e resgatar sua filha – terá vindo tardiamente. A mulher emocionada, extenuada, cai diante do prefeito, desmaiada. Conduzida a um hospital, ela ardia em febre. Adoentada, Fantine espera que o prefeito possa cumprir a promessa – e finalmente ter Cosette ao seu lado. Madeleine bem que se esforça – envia quantias elevadas para os Thénardier - mas o casal de exploradores não deseja se desfazer de semelhante fonte de dinheiro: Cosette torna-se objeto de negociação. E o tempo passa, Fantine não melhora. Madeleine mesmo precisará buscar a menina.

Mas – estava demorando! - o Narrador provoca uma 'reviravolta' no enredo. Alguma coisa precisava acontecer. Afinal, Javert, humilhado pela autoridade do prefeito, ficaria parado? O próprio inspetor vem denunciar-se diante de Madeleine: Cometi um ato culpável. Um agente inferior que falta ao respeito com um magistrado comete uma to grave. Venho aqui, como é o meu dever, trazer tal fato ao vosso conhecimento. Venho pedir minha destituição. Após aquele cena com a aquela mulher, há seis semanas, quando eu estava furioso, eu o denunciei.”

Voilà! Ai está! Madeleine pode novamente precisar vestir os trapos de Valjean, e aceitar um número no uniforme de forçado! Mas parece que há algo mais! Afinal, por que Javert se deunciaria? O fato é que há outro preso que é acusado de 'ser Jean Valjean'. Então, o prefeito certamente NÃO é Jean Valjean. Daí o 'arrependimento' de Javert! Um tal Champmathieu será julgado, e Javert será testemunha de acusação. E o inspector insiste – quase exige! - que ele, o 'subordinado em falta', deve ser destituído.

“-É que eu devo ser destituído.
O Sr. Madeleine se levanta.
-Javert, sois um homem honrado, e eu vos estimo. Exagerais a vossa falta. Ainda é uma ofensa que me diz respeito. Javert, sois digno de subir e não de descer. Deveis conservar o vosso cargo.”
“-C'est que je dois être destitué.
Madeleine se leva.
-Javert, vous êtes un homme d'honneur, et je vous estime. Vous vous exagérez votre faute. Ceci d'ailleurs est encore une offense qui me concerne. Javert, vous êtes digne de monter et non de descendre. J'entends que vous gardiez votre place
.” II, p. 223)

Mas o severo – até consigo mesmo! - Javert decide permanecer no cargo, até ser substituído.

Percebemos agora o impasse de Madeleine – que é Jean Valjean! “O leitor sem dúvida já adivinhou que o Sr. Madeleine não é outro senão Jean Valjean.” (“Le lecteur a sans doute deviné que M. Madeleine n'est autre que Jean Valjean.” III, p. 233) - quando ele precisa decidir se continua a manter a prosperidade da cidade, e também ajudar a pobre mulher agonizante a recuperar a filhinha, OU se se entrega à Justiça, para livrar o 'falso' Valjean de uma condenação injusta!

“Nós não temos mais que pouco a acrescentar àquilo que o leitor saberia do que aconteceu a Jean Valjean depois da aventura de Petit-Gervais. A partir desse momento, pode-se ver, ele foi um outro homem. O que o bispo tinha desejado dele, ele cumpriu. Foi mais que uma transformação, foi uma transfiguração.”
Nous n'avons que peu de chose à ajouter à ce que le lecteur connaît déjà de ce qui était arrivé à Jean Valjean depuis l'aventure de Petit-Gervais. À partir de ce moment, on l'a vu, il fut un autre homme. Ce que l'évêque avait voulu faire de lui, il l'exécuta. Ce fut plus qu'une transformation, ce fut une transfiguration.” III, p.234)

Agora, Madeleine-Valjean não é aquele 'homem raso' dos primeiros capítulos. É uma consciência profunda da condição humana – ainda mais na exaltação do Narrador. Resumindo: a ânsia do Narrador em se 'aprofundar' na personagem cria um discurso que não é possível imaginar na mente de Madeleine-Valjean. A 'profundidade', e mesmo erudição, aqui é um aspecto do Narrador, não da personagem. ['Descompasso' que os narradores do século 20 vão procurar resolver, com cada personagem exigindo um 'discurso' diverso. Basta ver os vários 'estilos' em “As Ondas” e “Orlando” de Virgina Woolf, e “Retrato do Artista quando Jovem” e “Ulisses” de James Joyce.] O esforço de narrativa recorre até aos 'pensamento soltos' – um protótipo do 'fluxo de consciência' de meio século depois...

“-Onde estou? -Não sonhei isso? O que me contaram? - É mesmo verdade que eu vi este Javert e que ele me disse isso? - Que poderia ser esse Champmathieu? - Então ele se parece comigo? - Será possível? -Quando eu penso que estava tranquilo e longe de me preocupar! - O que eu faria numa hora assim? - O que ele tem a ver com esta questão? - Como se vai se livrar? - O que fazer?
Eis os tormentos ele enfrentava. Sua mente perdia a força de reter ideias, elas passavam como ondas, e ele segurava a cabeça com as duas mãos para a sustentar.”

--Où en suis-je?--Est-ce que je ne rêve pas? Que m'a-t-on dit?--Est-il bien vrai que j'aie vu ce Javert et qu'il m'ait parlé ainsi?--Que peut être ce Champmathieu?--Il me ressemble donc?--Est-ce possible?--Quand je pense qu'hier j'étais si tranquille et si loin de me douter de rien!--Qu'est-ce que je faisais donc hier à pareille heure?--Qu'y a-t-il dans cet incident?--Comment se dénouera-t-il?--Que faire?
Voilà dans quelle tourmente il était. Son cerveau avait perdu la force de retenir ses idées, elles passaient comme des ondes, et il prenait son front dans ses deux mains pour les arrêter.

III, p. 237

Valjean pensa em toda a benfeitoria, pensa na doença de Fantine, na ausência de Cosette, na severidade de Javert, as oportunidades que teve de ser bom cidadão – e agora deverá arriscar tudo para poder livrar um homem de uma falsa acusação? Ele hesita. Outra razão diz que ele deve ser um outro homem, esquecer o passado. Deixar que o outro seja condenado como sendo o perigoso Valjean. Assim, as suspeitas sobre ele, agora Madeleine, cessariam para sempre.

O que ele fará?, nos perguntamos, mergulhados no mesmo sofrimento. O que faríamos se estivéssemos em tal dilema? Depois de uma noite de dúvidas e incertezas, numa paródia do Getsemâni [aqui então Valjean uma espécie de Cristo?!] ao ouvir o chamado do cocheiro, Valjean-Madeleine se levanta, ainda é madrugada, e resolve ir ao julgamento em Arras.

A enferma Fantine, esperançosa, imagina que a viagem do prefeito é para resgatar a pequena Cosette, “Amanhã! Amanhã! Eu verei a minha Cosette, amanhã!” Justamente esta esperança mantem a mulher ainda viva.

Após dificuldades de transporte, Madeleine chega ao tribunal, em Arras, e precisa fazer esforços heróicos para entrar na sala da audiência. O que só é possível quando ele usa o nome do prefeito, “M. Madeleine, maire de Montreuil-sur-mer”. Nome que certamente era famoso, útil para 'abrir portas', como é o caso. Madeleine consegue acesso ao 'aparelho do processo criminal'.

Uma fina ironia do Narrador (e certamente do Autor Victor-Hugo) é a presença de um certo burguês, um dandi, entre os jurados : o nome é Sr. Bamatabois. Pois bem, voltamos algumas páginas, pois o nome não é estranho... voilà! É o mesmo personagem daquela cena patética e trágica que vitimou Fantine (Livro 5, cap. XII) O burguês boêmio que se envolve em brigas com prostitutas agora sentado no banco dos jurados! Essa incoerência – e essa injustiça! - mostra bem o estilo que descreverá o julgamento. Não tem aquele tom dos 'romances anglo-saxões' quando há julamento. O tom é mais do que descritivo-narrativo, é digressivo, há o fato e a opinião do Narrador sobre o fato. Julgamos ter 'acesso' ao fato – mas a 'lente narrativa' a desfocar as imagens. Não podemos levar à sério – nem o evento, nem o Narrador.

Não vamos discutir a cena do julgamento por desconhecermos o sistema judicial francês, ainda mais o de 1823! Mas não é óbvio que Champmathieu não é Jean Valjean. A aparência parece ser idêntica – até antigos forçados dizem reconhecer o ex-prisioneiro, colega de suplícios. O acusado não tem uma defesa muito competente, não tem como provar todos os 'alibis'. Parece mesmo condenado, por mais que se afirme em completa inocência. O que julgam um roubo, foi uma oportunidade aproveitada, não uma invasão de propriedade. Sutilezas à parte, a Justiça não demora em condenar um pobre.

É nesse momento – 20 páginas depois da entrada de Madeleine – que o prefeito se manifesta, prontamente reconhecido pelos cidadãos. O que ele diz? Solicita a atenção dos colegas de outrora – para que o reconheçam. Pois ele é Jean Valjean!

“-Não me reconheceis? Ele disse.
Todos os três demoraram interditos e indicaram por um sinal de cabeça que ele não o reconheciam. Cochepaille intimidado fez uma saudação militar. O Sr. Madeleine voltou-se para os jurados e para a Corte e disse em voz doce:
-Senhores jurados, façam soltar o acusado. Senhor presidente, faça-me prender. O homem que procurais, não é ele, sou eu. Eu sou Jean Valjean.”

--Vous ne me reconnaissez pas? dit-il.
Tous trois demeurèrent interdits et indiquèrent par un signe de tête qu'ils ne le connaissaient point. Cochepaille intimidé fit le salut militaire. M. Madeleine se tourna vers les jurés et vers la cour et dit d'une voix douce:
--Messieurs les jurés, faites relâcher l'accusé. Monsieur le président, faites-moi arrêter. L'homme que vous cherchez, ce n'est pas lui, c'est moi. Je suis Jean Valjean.
XI, p. 294)

De pronto, o assombro total. Como pode o 'honorável prefeito' dizer coisas tão tresloucadas? Há toda uma ruptura na narrativa do julgamento – efeito que muitos outros romances pretendem causar [ainda mais os anglo-saxões!] Mas as provas de Madeleine são irrefutáveis – ao contrário daquelas antes apresentadas no solene tribunal... “Vejam bem, eu sou Jean Valjean”, repete o prefeito, como a dizer eu aquele forçado que vocês odeiam, eu não sou o 'honorável prefeito', eu sou aquele 'número' que fugiu, o que causará toda uma 'desconstrução' da imagem sublime do 'père Madeleine'.

O prefeito abandona a audiência, diz estar 'à disposição da justiça', e retorna para casa. No final, Champmathieu é libertado – a julgar o quanto os homens são loucos (“et Champmathieu, mis em liberté immédiatment, s'en allait stupéfait, croyant tous les hommes fous et ne comprenant rien à cette vision.” p. 297)

O reencontro de Fantine e Cosette – tão esperado pelos leitores – não ocorrerá. Parece que a promessa não poderá ser cumprida. O verdadeiro Valjean precisa se entregar à Justiça. Sequer terá tempo para buscar a menina em Montfermeil. Até porque as garras de Javert estão prontas e próximas – imagine! Deixar um ex-forçado viajar para ir buscar a filha de uma prostituta! - e agora todo o castelo se desmorona. Nenhum 'louvor' a atitude de Madeleine – aliás, agora apenas Valjean – apenas os 'rigores da lei'.

Javert mostra-se contente ao 'cumprir o seu dever' – parece até uma vingança pessoal isso que ele chama de 'dever' – onde a vontade do agora prisioneiro Valjean não tem qualquer valor. Não há mais 'senhor Prefeito', há e haverá sempre a penúria de um forçado nas galés!

-Eu te disse que não há mais nenhum Sr. Madeleine e nenhum Sr. Prefeito. Há um ladrão, há um criminoso, há um forçado chamado Jean Valjean! Ele que eu vou prender! Eis o que há!
--Je te dis qu'il n'y a point de monsieur Madeleine et qu'il n'y a point de monsieur le maire. Il y a un voleur, il y a un brigand, il y a un forçat appelé Jean Valjean! c'est lui que je tiens! voilà ce qu'il y a!
(IV, p. 310)

Todo esta discussão diante de uma mãe doente, uma mulher febril, que somente espera o momento de reencontrar a filha! E toda essa decepção acaba por completar a lenta agonia – o rigor da lei provoca a morte da infeliz Fantine.

Seguem-se algumas proezas. Valjean é preso. Consegue fugir. Resolve algumas pendências. O dinheiro, os bens, o enterro da pobre morta. Logo, Javert pressiona até mesmo as freiras, piedosas e que não mentem. Acabam por recapturar o nosso protagonista.

Todo o bem que 'père' Madeleine fez foi logo esquecido. Toda a prosperidade com as oficinas foi brutalmente interrompida. Empregados foram demitidos. O comércio viu-se prejudicado. Até a assistência aos pobres decaiu.

....




.
continua
.
.
por Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/