quarta-feira, 28 de abril de 2010

sobre O Vermelho e o Negro - 3 de 3







sobre “O Vermelho e o Negro” (Le Rouge et le Noir, 1830)
romance de Stendhal (Henry-Marie Beyle, FRA, 1783-1842)

Literatura enquanto Obra Clássica
(outras obras : Morro dos Ventos Uivantes; Os Miseráveis;
Fauno de Mármore; Bel-Ami)

O Romance da Vitória do Mundo Burguês

3 de 3

Julien passa então a ser convidado para integrar a 'rodinha' de jovens nobres que se reunem ao redor da beleza da Senhorita de La Mole. Os jovens nobres afogam o tédio ao ironizar os convivas, principalmente os arrivistas aduladores à espera de cargos e comissões. (Mostra que os jovens – e os aduladores – não mudaram muito...) Verdade é que Julien pouco entende da 'graça' das “charmants finesses d'une moquerie légère”, onde os nobres ironizam os artistas e os escritores, mas os nobres eles mesmos são incapazes de criar arte ou escrever uma simples carta! Então os burgueses letrados/eruditos passam adiante e os nobres são superados. Entende-se porque os nobres não suportam os escritores (sejam ou não liberais...)
Os nobres ironizam os autores liberais: “Querem falar de tudo e não têm mil escudos de renda” (Hoje são os liberais que ironizam os socialistas: “Querem mudar o mundo, mas não conseguem pagar as contas do mês”) Assim, enquanto Julien for erudito sobre poetas clássicos, tudo bem. Se ele escrever algo sobre autores liberais, cairá em desgraça...! No mais, os nobres ironizam os próprios nobres. O que fariam então com um plebeu tal qual o Sr. Julien Sorel?!
Julien assessorando o Marquês na administração dos bens/propriedades. É tão bem sucedido que até ganha um cavalo de presente: eis a generosidade do nobre. Mas, Julien continua a frequentar o curso de Teologia, “em seu espírito a ideia de religião está irredutivelmente ligada a de hipocrisia e enriquecimento” ("Julien fut étonné, l'idée de la religion était invinciblement liée dans son esprit à celle d'hypocrisie et d'espoir de gagner de l'argent” cap. V, p. 311) Os devotos e, ao mesmo tempo, liberais deixam Julien perplexo.

O Narrador evita apresentar cenas onde o amor-próprio de Julien foi ferido, “Passemos em silêncio um bocado de pequenas aventuras onde Julien sofreu com o ridículo, se ele não tivesse tido envolvido em algo abaixo do ridículo. Uma sensibilidade louca fazia com que ele cometesse milhares de deselegâncias.” (“Nous passons sous silence une foule de petites aventures qui eussent donné des ridicules à Julien, s'il n'eût pas été en quelque sorte au-dessous du ridicule. Une sensibilité folle lui faissait commettre des milliers de gaucheries.” p. 312)

Romance do século 19 tem que ter duelo! Julien sofre o insulto de um estranho, num café de Paris. O grosseirão atira-lhe cartões ao rosto. Julien agora precisa de um amigo, para ser testemunha no duelo. Será um tenente, que o acompanha ao endereço no faubourg Saint-Germain. Recanto das belas residências dos nobres! Lá, Julien e o tenente encontram um cavalheiro 'très elegant', um “ideal de homem amável”: não o grosseirão do dia anterior. O 'figurão' é o Sr. Charles de Beauvoisis, chevalier e diplomata.

O grosseirão é apenas o cocheiro do nobre. Julien não hesita em derrubar o serviçal à golpes. Mas o nobre não recusa o duelo! E sem perder o bom humor! O duelo é rápido: resulta num tiro de raspão que Julien sofre num braço. E os nobres não perdem a 'afetação diplomática', em anedotas 'picantes', ousando (ou posando) um 'espírito livre'. Mas o nobre não gosta da ideia de ter duelado com um secretário do Marquês de La Mole! Afinal, os nobres somente duelam com nobres! Logo inventam uma história na qual Julien seria o 'filho natural' de uma nobre amigo do Marquês.

Romance do século 19 não pode ignorar a figura do 'nobre decadente', meio entediado meio dândi, meio cínico meio sedutor. Aqui é o Sr. Beauvoisis. Com rápida passagem – assim também o filósofo liberal P. Vane e o conspirador hispânico Conde de Altamira – como persongens para 'montar o cenário', não sofrendo toda a 'dissecação' psicológica que o Narrador exercita com as personagesn principais, Julien, Madame de Rênal e Mademoiselle de La Mole. [Outro exemplo de 'nobre decadente' num romance sobre adultério? Vejam o Visconde Reinaldo em “Primo Basílio” (1878) do português Eça de Queiroz. ]

De início, o Marquês culpa Julien pela mentira, mas depois passa a aceitar a 'fantasia', Julien tem um 'ar tão nobre' que não pode ser apenas o 'filho de um carpinteiro'. Mas o duelo não gera nada além de uma projeção maior de Julien no mundo parisiense, ao mesmo tempo em que assessora o Marquês, além de fazer leituras de autores latinos (Roma antiga). Assim, o secretário faz companhia ao nobre e conquista-lhe a confiança. “Uma época de uma franqueza total entre o patrão e o seu protegido” O Marquês percebe o quanto Julien é diferente dos outros provincianos. E também Julien se afeiçoa ao Marquês (que sabe tratar o jovem com respeito, assim como o abade, e outrora o velho cirurgião-major, liberal, das tropas de Napoleão) O Marquês – quando não trata de negócios – trata Julien como se o secretário fosse o filho de um amigo. E diz que tal fato é verdade – diante do abade Pirard. “Eu sei sobre o nascimento de Julien.” Ao fim da doença do Marquês, este envia Julien a London (Londres).

Em Londres, na pátria dos inimigos de Napoleão e da França, Julien encontra o pedantismo exibicionista dos dandys, e o filósofo Philippe Vane, preso por suas ideias heréticas, “A ideia mais útil aos tiranos é a de Deus” (L'idée la plus uttile aux tyrans est celle de Dieu” cap. VII, p. 326) Julien não gosta dos ingleses, mas admira as paisagens britânicas.

De volta, Julien fica sabendo que o Sr. Valenod, agora “M Le baron de Valenod” será o novo prefeito de Verrières. E que o Sr. de Rênal é acusado de ser 'liberal' ! Julien descobre que a política é mesmo um jogo, e que o poder é um exercício de injustiças. “Ainda precisarei cometer outras injustiças, se eu quero subir na vida e ainda saber ocultá-las” (p. 329) Enquanto isso, o tempo passa. A Senhorita Mathilde De La Mole passa a ver Julien com 'outros olhos'. Julien não é mais aquele provinciano, é agora confundido com um nobre – parece mais um espirituoso parisiense! Ainda mais, conserva um ar sério e introspectivo.

Mathilde faz com que o irmão, Conde Norbert, convide Julien para um baile da nobreza. “Não sou um bom julgador de bailes, senhorita; eu passo a vida a escrever. É esse o primeiro baile de tal magnificência que eu já vi”, diz Julien a Senhorita. Ainda diálogos em que os nobres ironizam os republicanos e os liberais. Aqui, o Narrador não hesita em mesclar diálogos políticos no meio do enredo 'romanesco' : bailes não podem faltar nos romances do século 19!

Enquanto os nobres zombam dos arrivistas, Mathilde admira a 'forte ambição' de Julien, prevê que ele fará fortuna. (Afinal, o 'sucesso' de um homem é a volumosa conta bancária dele!) Ironias com os 'liberais' (que os nobres chama de 'jacobinos', mais por depreciação), enquanto a Senhorita admira/despreza o perseguido exilado político Conde de Altamira. “O olhar de Mathilde zomba do liberalismo de Altamira com o Marquês de Croisenois [o pretendente dela], mas ela o escutava com prazer.” (p. 338, cap. VIII) Afinal, era algo a afastar o tédio, imaginem: um conspirador aqui no baile!

Liberal espanhol, o Conde de Altamira conta com os movimentos latino-americanos de libertação, numa época em que batalhavam Bolívar, San Martín e Sucre, generais que derrotavam as hostes espanholas. Assim, o Conde logo se afasta para conversar com um general peruano.

O Narrador alterna os pontos-de-vista: ora acompanha Mathilde, ora o Marquês de Croisenois, ora o Conde de Altamira. Mathilde, a heroína romântica, acha a vida nobre muito entediante, um excesso de luxo com pessoas sem caráter – que é marcante em Altamira e em Julien! Mesmo no ápice da vida social, a Senhorita não está feliz! (O que mostra que a insatisfação humana independe de classe social) Mathilde compara a fina educação dos nobres – que ela admira, mas 'morre de tédio' – com o jovem Julien em ascensão, sempre sério, com algo de 'heróico'. “Este Sorel é singular”.

Vejamos. Duelos, bailes, nobres decadentes – e triângulo amoroso, adultério. Peças básicas para um bom romance do século 19. Aqui temos dois triângulos. O casal (ou possível casal) Mathilde e Marquês de Croisenois sofre uma 'torção' pela presença de Julien. Assim também antes sofrera o casal Madame e Monsieur de Rênal. O 'triângulo amoroso' é o ambiente de conflito ideal para qualquer trama romanesca. Outros exemplos? Vejam o clássico Rainha Guinevere e o Rei Arthur que são 'torcidos' pela presença do chevalier Lancelot, ou bravo Tristan e a bela Isolda que acabam traindo o Rei Mark. Ou Julieta que deveria se casar com o nobre Páris, mas acaba se apaixonando tragicamente por Romeu. E no século 19: Madame Bovary entedia-se com o marido Charles Bovary. Logo ela se entrega a casos extra-conjugais. O proprietário Rodolphe, ou o escrevente de notário Léon Dupuis. Ou Luísa que vai trair o marido Jorge ao surgir a figura galante do primo Basílio. Ou Anna que vai trair Karênin com o Conde Vronski. Se há algo de comum nestas obras de Flaubert, Eça de Queiroz e Tolstoi é a trama baseada no desvelamentos da hipocrisia e das infidelidades do mundo burguês (e que não se restringem ao mundo burguês...)

A cena do Baile continua – e o Narrador ainda a inserir 'dissertações políticas' no meia da cena romanesca – e Mathilde sempre a comparar os nobres tediosos com os arrivistas heróicos. O que seria esta 'figura heróica'? “Danton era um homem!”, ela provoca. Os revolucionários, ao menos, são heróicos. “Danton não era um açougueiro?”, ela pergunta a Julien, que responde: “aos olhos de certas pessoas”, istoé, dos nobres! E ele lança aquele olhar de desprezo aos convivas do salão, os nobres e grandes burgueses, em busca de medalhas, rendas, promoções, cargos, títulos, tronos, enquanto lutam a vida toda, derrubando uns aos outros! (De fato, nada mudou nos últimos 200 anos!)

Mathilde admira-se com a conversação política entre o Conde de Altamira e o Sr. Julien durante um baile onde a 'elite' se diverte. O conde diz: “Estamos eu e vós aqui neste jantar, somos os únicos genuínos, mas eu serei desprezado e odiado, tal um monstro sanguinário e jacobino, e vós desprezado por ser um homem do povo que entrou de intruso na boa sociedade” (“Vous et moi à ce dîner, nous serons les seuls purs de sang, mais je serai méprisé et presque haï, comme un monstre sanguinaire et jacobin, et vous méprisé simplement comme homme du peuple intrus dans la bonne compagnie.” cap. IX, p. 345)

Não é raro que Mathilde e Julien se vejam face a face na grande biblioteca. Mas o orgulho de ambos é uma parede espessa. Mas a curiosidade dela rompe a frieza dele. A moça nobre dirige a palavra ao serviçal, que é indiferente a ela. Afinal, percebemos que a Senhorita também é uma pessoa 'singular', a nutrir toda uma obsessão pelo 'heroísmo', e assim como Julien idolatra Napoleão, Mathilde admira fervorosamente a Rainha Marguerite de Navarra, a Rainha Margot da macabra “Noite de São Bartolomeu” de triste lembrança, em pleno século 16, meio as 'guerras de religião' desencadeadas pela Reforma de Lutero e Calvino. Mathilde lembra da decapitação, em abril de 1574, de Boniface de La Mole (amante de Marguerite), devido ao um complô, por isso no aniversário do evento histórico, a Senhorita veste trajes de luto. Eis o culto ao passado: os nobres se mantêm olhando para trás!

A Senhorita desabafa as tragédias históricas diante do lisonjeado Julien, mero secretário. “O amor-próprio de Julien estava lisonjeado” (“L'amour-propre de Julien était flatté”) e “Ele esquecia seu triste papel de plebeu revoltado” (“Il oublait son triste rôle de plébéien révolté.” p. 355) Basta apenas que a mocinha nobre passe a dar atenção ao serviçal para que ele esqueça a revolta! A idealização do passado contagia Julien, que torna-se confidente da Senhorita. E ele ousa até uma meia confissão sobre a admiração dele por Napoleão.

Em dias de orgulho e mal-humor voltam a ser 'filha do patrão' acima do 'secretário'. E ele diz não ser pago para manter conversações e confidências com a 'filha do patrão'. Julien tem consciência de encontrar-se diante de uma jovem de 'espírito forte' que 'faz tremer' a família toda, principalmente o pretendente, o Marquês de Croisenois. Mas Julien sente-se admirado mais que o jovem nobre que deve desposar a Senhorita. Então, Julien se mostra frio e respeitoso, e Mathilde é que se aproxima, e ele se deixa envolver. Mas conserva desconfianças! “Essa moça zomba de mim!”

Por mais singulares que sejam os romances, os relacionamentos erótico-afetivos, uma série de eventos – tal uma 'curva normal' – se generaliza: o casal se conhece (pessoal ou virtualmente), há uma curiosidade mútua, um enamoramento ou encantamento, uma paixão (dura em média três a seis meses), um conhecimento físico, uma fase de tentar 'mudar o outro' ou 'adaptar' o Outro a um estilo de vida comum, depois começam as frustrações, e ressentimentos, até a separação (amigável ou ressentida).

Mathilde idealiza os séculos de batalhas e a bravura dos homens. Considera os nobres da Restauração como acomodados e entediantes, para a Senhorita o amor é um 'sentimento heróico'. A Senhorita pensa: Julien, um Danton em potencial? “Serait-ce un Danton?” Julien é pobre, mas tem estudos. Os nobres só têm a força das armas e o peso da tradição.

Julien duvida da afeição de Mathilde: nada mais que um capricho de moça entediada. Os interesses de 'trono e altar' (ou seja, da nobreza e do matrimônio) certamente farão a Senhorita hesitar em confessar em público seus afetos por um simples secretário. E Julien pensa se não é melhor aperfeiçoar sua atuação de 'tartufo', ou seja, de devoto hipócrita. Ele pensa consigo, “Não serei idiota. Cada um por si nesse deserto de egoísmo que se chama vida” (“Ma foi, pas si bête; chacun pour soi dans ce désert d'egoïsme qu'on appelle la vie.” cap. XIII, p. 376) [Logo veremos que – quatro décadas depois – Maupassant coloca ideias semelhantes na mente de Georges Duroy, em “Bel-Ami”]

As hesitações de Julien: a que riscos estará exposto se aceitar o encontro com Mathilde? ... Uma hora após a meia-noite, usando uma escada, Julien sobe ao quarto de Mathilde. (Qualquer semelhança com a cena de Julien adentrando os aposentos da Madame de Rênal não é mera coincidência! As escadas são uma 'imagem' da ascensão de Julien até as amadas: a grande burguesa Madame de Rênal e a nobre Mademoiselle de La Mole.) Mathilde mostra-se polida e formal, sem o calor de uma paixão que Julien esperava... As precauções de uma heroína de romance! Descer a escada até o jardim, por uma corda...! E também Julien revela as suas precauções com as cartas. Quando o casal se livrará das desconfianças?

A paixão heróica-romântica ainda é 'literária', extraída das leituras dos livros, visto que tanto Mathilde quanto Julien nutrem admirações pelas obras clássicas. Mathilde relembra cenas de Manon Lescaut (obra de 1753, do abade Prévost) enquanto Julien recita trechos de Nouvelle Heloïse (romance epistolar de 1761, de Rousseau, inspirado nas cartas medievais dos apaixonados Heloïse e Abélard) Em suas falas as personagens fazem referências a Madame de Staël, Molière, Rousseau, Voltaire... As próprias epígrafes mostram a 'intertextualidade' influenciada pelas leituras do autor Stendhal, a citar as obras de Mérimée, Schiller, Goethe, Jean Paul, Musset, Lord Byron, Shakespeare! O romântico e o ultraromântico num romance com predominância realista, ou psicologismo e sociologismo com testemunho histórico.

Logo surgem os ressentimentos. Julien despreza a vaidade e o orgulho de Mathilde, que o diminui lembrando sempre as origens plebeias e provincianas do secretário. E não podem faltar as cenas 'romanescas': as brigas de amantes, discussões épicas na Biblioteca, onde Julien ergue uma espada medieval contra a Senhorita! Mas mantem o sangue-frio e devolve a arma à bainha. “Tout ce mouvement, fort lent sur la fin, dura bien une minute; Mlle de La Mole le regardait étonné. J'ai donc été sur le point d'être tuée par mon amant” se disait-elle.” p. 403) Mas o furor esfria. Nada acontece. Cai o pano.

Após uma semana de frieza e distância, Mathilde e Julien passeiam pelo jardim, e ela aproveita para humilhá-lo, ao abordar o tema dos pretendentes nobres. O que a Senhorita deseja é sufocar a admiração pelo jovem, desprezando-o. No capítulo seguinte, diante do anúncio da viagem de Julien, a afeição e a admiração de Mathilde por ele faz derreter o orgulho da moça. É oportunidade que Julien não ignora: sobe novamente ao quarto dela, onde é prontamente recebido. Ela confessa o próprio orgulho.

Mas Mathilde tem horror a entregar-se, ainda mais a um homem que não é nobre, por mais que Julien tenha 'gênio' ou 'heroísmo'. Mathilde não quer, mas admira a força de vontade do jovem. No rompimento, no entanto, é Julien quem sofre, e denuncia o 'orgulho infinito' da nobre Senhorita.

“Nos caracteres ousados e orgulhosos não há senão um passo de cólera contra si mesmo à exaltação contra os outros; em tais casos, os arrebatamentos de furor são nesse caso um intenso prazer.” (“Dans les caractéres hardis et fiers il n'y a qu'un pas de la colère contre soi-même à l'emportement contre les autres; les transports de fureur sont dans ce cas un plaisir vif.” cap XX, p. 423)

A narrativa – nos capítulos seguintes – foge a temática amorosa e destaca a vida política da época – as epígrafes mudam (citações de Napoleão, Machiavel, Schiller, Lope de Vega, etc) com as reuniões dos conservadores monarquistas contra as campanhas liberais.

Na reunião dos nobres reacionários contra os liberais (que são chamados de 'jacobinos'), o Marquês de La Mole diz claramente: “Quereis continuar a falar sem agir? Dentro de cinquenta anos, na Europa, não haverá mais que presidentes de república, e nenhum rei. E com essas três letras, R, E, I, acabam-se os padres e os nobres. Não vejo mais que candidatos cortejando maiorias imundas” (“Voulez-vous continuer à parler sans agir? Dans cinquant ans il n'y aura plus em Europe que des président de république, et pas un roi. Et avec ces trois lettres R, O, I, s'en vont les prêtres et les gentilshommes. Je ne voi plus que des candidats faisant la cour à des majorités crottées.” cap. XXII, p. 440) Não imaginamos hoje um discurso mais 'anti-democrático'!

Que os nobres franceses se ajudem - “Aidez-vous vous mêmes” - sem esperar o apoio dos reacionários da Inglaterra, da Áustria, da Prússia, da Rússia (os mesmos do Congresso de Viena, que 'desmontou' o Império Napoleônico) Um importante Cardeal lembra o poder do clero na manutenção da monarquia, e cita o episódio de Vendéia [de 1793]. E hostiliza o Sr. De nerval, o primeiro-ministro, que reafirma, então, sua missão de restaurar a monarquia na França, 'ao tempo de Luís XV'. O bispo de Agde execla Paris, onde se encontra a podridão, a “nouvelle Babylone”, “nova Babilônia”, a causa da decadência da França. “É preciso decidir entre o altar e Paris” (“Entre l'autel et Paris, il faut en finir. Cette catastrophe est même dans les intérets mondains du trône.” cap. XXIII, p. 445)

Distração para um jovem apaixonado. Uma missão de Julien: encontrar com um importante nobre. Viagem para Strasbourg. Lá Julien permanece uma semana, e reencontra o Prince Korasoff, próximo a fronteira alemã. O Narrador comenta os modos do russo, caricaturas galantes e cartas de amor, e solta uma ou outra ironia. “Os russos copiam os modos franceses, mas sempre com cinquenta anos de atraso. Atualmenre, eles estão no século de Luís XV.” (“Les Russes copient les moeurs françaises, mais toujours à cinquante ans de distance. Ils em sont maintenant au siècle de Louis XV. “ p. 452) Confissões epistolares – cartas entre Mathilde e Julien: quem zomba de quem?

Nas entrelinhas – paralelo ao embate amoroso entre Julien e Mathilde – temos as intrigas dos bastidores da política (só para os leitores da época...!) A influência da Marechala de Fervaques invade a hegemonia do Marquês de La Mole: títulos e cargos eclesiásticos em disputa. A figura da Madame de Fervaques invade literalmente o romance, a partir da cena na ópera. Aqui uma montagem baseada no clássico “Manon Lescaut”, que foi ao palco em maio de 1830.

Julien ainda espera se reconciliar com Mathilde. A frieza dele apens aumenta o orgulho dela. Numa cena romanesca, na Biblioteca, Mathilde desfalece aos pés de Julien, que exclama “Eis a orgulhosa aos meus pés!” E Julien passa a manter uma correspondência com a Sra. De Fervaques, a marechala. Será para fazer ciúmes em Mathilde?

Na ópera, Julien acorre ao camarote da Madame de La Mole, ao notar as lágrimas de Mathilde. Mas ele não se entrega. Julien esforça-se por mostrar-se digno. Ele realmente acredita que mostrar desprezo faz aumentar o domínio passional sobre Mathilde, que se humilha.

E realmente Mathilde se entrega, enquanto Julien é prudente. Não que ela tenha perdido o orgulho,

“Engravidou e comunicou o fato a Julien com alegria. Essa notícia feriu Julien com um espanto profundo.” “-Posso ter compaixão do meu benfeitor; vou ficar desolado por dar-lhe este desgosto; mas não temo e não temerei ninguém.”
Elle se trouva enceinte et l'apprit avec joie à Julien. Cette annonce frappa Julien d'un étonnement profond. “ “-Je puis avoir pitié de mon bienfaiteur, étre navré de lui nuire; mais je ne crains et ne craindrai jamais personne.” (pp. 492/ 493)

Mathilde escreve ao pai uma longa carta de desabafo. E percebemos o 'Inferno da fraqueza' quando Julien é levado a presença do Marquês, que descarrega sobre o secretário toda a ira e frustração. Julien procura conselho junto ao Abade Pirard. O religioso aconselha o nobre a apoiar o casamento público do casal. Enquanto isso, Mathilde, desesperada, desafia o pai. Ele pede a Julien que se afaste até que o rancor do Marquês se apague. E o Abade passa a apoiar o casal [algo que vem lembrar o Frei Lourenço que ajuda Romeu e Julieta.] E o Marquês acaba por culpar de tudo a “decadência do século”, “O século vem confundir tudo! Seguimos direto para o caos” (“Le siècle est fait pour tout confondre! Nous marchons vers le chaos” p. 501)

Passa-se um mês para a apaziguar a fúria do Marquês. Enquanto isso, Julien pensa na paternidade (“La destinée de son fils absorbait d'avance toutes ses pénsees.” p. 503) Mathilde se encontra com Julien no presbitério do Abade Pirard. Destaca-se neste e nos capítulos seguintes, o uso narrativo de correspondências – típicas nos 'romances epistolares', tais como “Nouvelle Heloïse” e “Les Liaisons dangereuses” (de 1782, de Choderlos de Laclos)

O Narrador concentra-se nos pensamentos e ações do Marquês, que finalmente – num momento de crise familiar – revela uma riqueza psicológica que o leitor desconhecia. O Marquês doa ao casal algumas propriedades no Languedoc. Com uma renda de 36 mil libras, acende-se a ambição de Julien – com seu mérito pessoal' ele se elvara da posição de nascimento. Agora falta somente a presença de seu sogro no casamento, evitando uma afronta a família e uma ação violenta do Conde Norbert, na defesa da honra da irmã. O Marquês nomeia Julien, Chevalier Julien Sorel de La Vernaye, tenente de hussardos, e a filha insiste: quer o casamento público.

Julien, ou o Cavaleiro de La Vernaye, assume o posto de tenente no 15o regimento de Hussardos, em Strasburgo. E ele volta àquela fantasia de ser um 'filho natural' de um nobre. “Seu ar impassível, seus olhos severos e quase maus, sua palidez, seu inalterável sangue-frio deram-lhe reputação desde o primeiro dia. - Há de tudo nesse jovem - diziam os velhos oficiais veteranos - menos juventude.”(“Son air impassible, ses yeux séveres et presque méchants, sa pâleur, son inaltérable sang-froid commencèrent sa réputation dès le premier jour”; “Il ya a tout dans ce jeune homme, disaient les vieux officiers goguenards, excepté de la jeunesse.” cap. XXXV, p. 510/511)

Mas desce a tormenta: o Marquês vê desmascarada a ambição de Julien. O nobre declara à sua filha, “Eu podia perdoar tudo, menos o projeto de seduzi-la por ser rica”. (“Je pouvais tout pardonner, excepté le projet de vous séduire parce que vous êtes riche” p. 512) Por que isso? O caso é que o Marquês mandara investigar a vida de Julien, e descobrira a Madame de Rênal, que ainda ressentida com sua antiga paixão, envia uma carta na qual acusa Julien de hipocrisia e ambição.

“Não posso culpar o Sr. De La Mole, diz Julien, após findar [a leitura da carta]; ele é justo e prudente. Qual pai desejaria entregar a filha querida a um homem assim! Adeus!” (“Je ne puis blâmer M de La Mole, dit Julien, après l'avoir finie; il est juste et prudent. Quel père voudrait donner sa fille chérie à un tel homme! Adieu!” p. 513)

O que se precipita então? Julien abandona Mathilde e cavalga para Verrières, onde adquire um par de pistolas. Encontrando a Madame na missa, ele logo atira contra ela.

Julien atira contra a Madame e é logo preso. A vítima não morre, sendo ferida no ombro. Ela intercede, junto ao carcereiro, pela segurança de Julien. Seguem-se os interrogatórios.

O cura Chélan visita Julien em Besançon, onde ocorre o julgamento. Cruel abatimento prosta o antes febril prisioneiro. “Não havia mais nada de rude e de grandioso nele, mais nada da virtude romana; a morte lhe aparecia a grande altura, e como coisa menos fácil.” (“Il n'y avait plus rien de rude et de grandiose em lui, plus de vertu romaine; la mort lui apparaissait à une grande hauteur, et comme chose moins facile.” cap. XXXVII, p. 524) Também Fouqué, o velho amigo, aparece para aliviar o fardo de Julien.

No XXXVIII Mathilde encontra Julien e mostra-se finalmente fiel – até o crime o distingue! Ele tenta conter dela o desvario. A jovem nobre resolve apelar ao (todo-poderoso) Vigário de Frilair (que é adversário do Marquês de La Mole!) Mas Mathilde é também amiga da Marechala de Fervaques, “que faz os bispos” na França, e Frilar, em sua ambição, assinala pronta cooperação. E o vigário sabe como 'dominar' a apaixonada jovem. (“M. De Frilair tortura voluptuesement et à loisir le coeur de cette jolie fille, dont il avait surpris de côté faible.”cap. XXXVIII)

No XXXIX, A Intriga, Prontamente Mathilde escreve a Marechala de Fervaques, e menciona o Sr. De Frilair. Enquanto isso, Julien entedia-se, não sendo tocado pelo heroísmo idealizado pela jovem Mathilde, que esforça-se por salvar o abalado réu. A ambição no peito de Julien cede lugar ao remorso por ter alvejado a Madame de Rênal. Mathilde acaricia um desejo de suicídio, caso Julien seja condenado. Ele insiste que ela deve viver, e casada com o Sr. De Croisenois.

No âmbito do processo, o Narrador apresenta os trâmites judiciários da época, onde havia pouca separação dos poderes (na terra de Montesquieu!) os grandes do Clero influenciavam os grandes do Judiciário... com troca de favores (e cargos) para manipular a 'justiça'. Afinal, os religiosos e os nobres indicavam seus favorecidos para os cargos públicos. Novo interrogatório. Julien confessa novamente, e recolhe-se à sua solidão, insensível até mesmo a dedicação de Mathilde, que já conseguira um contato epistolar entre a Sra de Fervaques e o Sr. De Frilair. A Sra de Rênal escreve aos jurados e pede clemência para o réu.

No XLI o Julgamento quando Mathilde confia na intervenção do Monsenhor de Frilair, e Julien resolve não se pronunciar. Ele é conduzido ao Palácio da Justiça, onde farta plateia feminina suspira. O promotor se arrasta em 'mau francês' e o advogado de defesa dedica-se a enternecer as damas. Julien decidira não falar, mas emocionado agora, não resite: fala aos 'messieurs les jurés' e ataca todos os que impedem a ascensão social dos jovens virtuosos, conservando um sistema de classes altamente escludente. Julien percebe que ali o julgam nobres decadentes e burgueses indignados, nenhum camponês enriquecido está presente ou representado. O julgamento assim se transforma numa denúncia da 'luta de classes'.

O júri se reúne – e o Sr Valenod (que ironia final!) declara Julien Sorel culpado, por ousar homicídio premeditado. Julien, condenado, nada espera do Deus cristão, “é um déspota, e, assim, cheio de ideias de vingança” (“c'est un desposte, et, comme tel, il est rempli d'idées de vengeance” p. 551)

Cedo pela manhã, Mathilde o abraça e destila seu furor contra o Monsenhor de Frilair. Mas logo ela está distante do ar febril de Julien, que resiste em mostrar fraqueza, e não pensa em assinar a Apelação. Lembra da Sra de Rênal: “Ela vai chorar lágrimas quentes, eu a conheço; em vão desejei matá-la, tudo será esquecido. E a pessoa a quem eu desejei roubar a vida será a única pessoa sinceramente a chorar a minha morte”. (“Elle pleurera à chaudes larmes, je la connais; en vain j'ai voulu l'assassiner, tout sera oublié. Et la personne à qui j'ai voulu ôter la vie sera la seule qui sincèrement pleurera ma mort” cap. XLII, p. 555)

Os eventos finais se precipitam, os capítulos (XLII a XLV) não tem epígrafes e sequer título. Todo o castelo de cartas já caiu, o Narrador quer logo fazer cair o pano. No XLIII Julien é desperto pelas lágrimas da Senhora de Rênal. Então Julien perde todo o auto-controle. Ela roga aflita para que ele assine a apelação. Ele concorda, e o escândalo se propaga. No XLIV o ambiente da província enfraquece o ânimo de Julien... Cada vez mais ele se deixa envolver – e percebe o ridículo de sua 'atuação'...

No XL Julien é finalmente executado. Fouqué resgata seus restos mortais. Mathilde sepulta a cabeça do amado – tal qual fizera a Rainha Marguerite de Navarra com a cabeça do amante De La Mole. E a Senhora de Rênal morre de desgosto.

“A Senhora de Rênal foi fiel a sua promessa. Ela não busca de nenhum modo atentar contra a própria vida; mas três dias após Julien, ela morre abraçando seus filhos.” (“Mme de Rênal fut fidèle à sa promesse. Elle ne chercha em aucune manière à attenter à sa vie; mais trois jours après Julien, elle mourut em embrassant ses enfants.” p. 576)

Tal qual uma grande ária ou uma ópera italiana – ah, como Stendhal amava a Itália! - o Autor fecha o livro num retorno ao início – a paixão de Julien pela Madame de Rênal que abre o romance é concluída com a morte de ambos, num fechamento romanesco e trágico que agradaria a Shakespeare, que nos alegou a morte por amor 'clássica', a união na morte de Romeu e Julieta. Os leitores – e outros escritores influenciados - do século 19 não suspiraram em vão.

jan-mar/10

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Stendhal / O Vermelho e o Negro - 2 de 3



sobre “O Vermelho e o Negro” (Le Rouge et le Noir, 1830)
romance de Stendhal (Henry-Marie Beyle, FRA, 1783-1842)

Literatura enquanto Obra Clássica

(outras obras : Morro dos Ventos Uivantes; Os Miseráveis;
Fauno de Mármore; Bel-Ami
)

O Romance da Vitória do Mundo Burguês

2 de 3

A partir daqui a história se precipita, pois o Sr. Valenod recebe uma visita da camareira Elisa, serviçal dos Rênal, aquela que foi 'rejeitada' por Julien. Ambos enciumados com a 'felicidade' do casal Julien e Madame. Valenod está enlouquecido – não pode acreditar que a Madame o desprezou e agora se entrega a um plebeu! Assim, o enciumado escreve uma carta anônima. E cartas anônimas não faltam nos próximos capítulos. Onde o Narrador não poupa a fina ironia – a elegância francesa é insuperável até quando sarcástica!

Onde está a senhora singela dos primeiros capítulos? Agora a Madame escreve 'cartas anônimas' para despistar o marido, horrorizado com as cartas indignas que recebe. A Madame quer se mostrar 'digna' de Julien, sendo tão dissimulada quanto ele! O Narrador explica que “as verdadeiras paixões são egoístas” (“les vraies passions sont égoïstes” p. 166) Realmente, com esta leitura de Le Rouge eu não preciso escrever sobre Madame Bovary ou Anna Karenina ou O Primo Basílio (e 90 % das novelas globais...) Está tudo aqui: os ciúmes, as intrigas, os crimes velados. Não há 'mocinhos' e 'vilões': no 'amor' – e no 'jogo' – todas as armas são válidas.

Seguem-se digressões sobre a condição da mulher no início do século 19, submissa e discreta. Mulher, filhas e jovens esposas desconhecendo a paixão e temendo os escândalos. Tudo isso Julien observa, surpreendido com a 'esperteza' da Madame de Rênal. Quase lembra o pai de Desdêmona, em “Otelo” (“se ela enganou o pai, ela pode enganar o marido”) e despreza todo o 'falso moralismo' burguês. É necessário um afastamento, uma separação... Logo, o jovem recebe propostas para deixar a família Rênal. Será ele um 'jesuíta' entre os jesuítas, o mesmo que dizer: um hipócrita meio aos hipócritas.

Afinal de contas, Julien é bom de 'retórica', tem “verve jésuitique”, escreve uma carta de nove páginas para a Madame ! “A palavra foi dada ao homem para ocultar o seu pensamento” (“La parole a été à l'homme pour cacher sa pensée”, R. P. Malagrida) Mas a hipocrisia de Julien não está a altura da hipocrisia da vida social. Para quem considera Julien um anti-herói, o que pensará de um Sr. Valenod? Logo logo, o 'anti-herói' vai se tornar 'mocinho' se comparado a toda uma corja de vaidosos e ambiciosos na 'nata da sociedade'! (Tanto que para Julien, Napoleão é um símbolo de 'vida heroíca', acima da 'vida mesquinha'. O mesmo efeito provocado em Raskólnikov, a imaginar-se o 'homem superior', em “Crime e Castigo”)

Cenas da vida social. Julien recita o Novo Testamento em latim, aborda peças teológicas ou narra fábulas de La Fontaine, “auteur bien immoral”. Os proprietários comentam o preço das bebidas, enumeram as propriedades, exibem poder. Julien deseja 'subir na escala social', mas não suporta o desprezo pelos burgueses! Burgueses que apoiavam a Restauração, quanto os burgueses 'liberais' queriam uma nova revolução! Mas, em verdade, os revolucionários são os 'jacobinos', tal qual o geômetra M. Gros.

Cenas de famílias, cenas idílicas. As personagens da província: os grosseirões com pose de aristocratas. Cenas que não faltam nas obras de Balzac a comporem a “Comédia Humana”. Uns se aliam aos nobres realistas, outros se aproximam dos liberais. A figura da Autoridade e o ressentimento da plebe – que se vinga daqueles que se destacam. Como contraponto temos a figura do italiano Signor Geronino, mi-français, mi-italiano, que literariamente é um 'colírio nos olhos' – tal qual o Mercútio de “Romeo and Juliet” e o Signor Settembrini, de “A Montanha Mágica”. É uma personagem que evidencia todo o fascínio de Stendhal pela itália e pelo 'espírito italiano'. No que o francês se assemelha ao inglês Lord Byron, ao francês Victor-Hugo, ao norte-americano Hawthorne, ao alemão Thomas Mann.

Através de recursos tais como descrições, digressões, cartas, narrativa dentro da narrativa, o Romance de Sthedhal cria um paradigma da Escrita Romântica como testemunho de um mundo em pluralidade – fenônemo que Balzac exploraria com abundância no ciclo de romances já citado – onde o lugar do cidadão na sociedade seria resultado de um conjunto de escolhas dentro de um conjunto de oportunidades. Bem que Julien preferiria ser um artista do que um padre ou um funcionário, um político, mas a vida é feita de escolhas: casar com a criada, ou ser sócio de um amigo, ou entrar para o seminário, ou fugir com a amante... O Narrador se aproveita desses 'vários mundos possíveis' para apresentar suas críticas às instituições que limitam o ser humano nas prisões do casamento, do sacerdócio, da vida civil ou militar.

O plano de época: a nobreza e a alta burguesia provincial teme uma nova Revolução – que aliás recomeça em 1830 e seque em processo até 1848 – com os liberais e os jacobinos na vanguarda revolucionária. Depois de 1848 outros revolucionários se apresentam: os socialistas e os anarquistas. Depois os socialistas se dividem em 'comunistas' e 'social-democratas'; e os comunistas se dividem (na Rússia) em 'bolcheviques' (majoritários, radicais) e 'mencheviques' (minoritários, moderados).

Julien no Seminário de Besançon

Ainda na Parte 1, há uma mudança de ambiente. No capítulo XXV (Le séminaire) o jovem preceptor abandona de vez a mansão dos Rênal. Com uma carta de apresentação do cura Chélan, Julien segue para o seminário. Há toda uma introdução em estilo ultra-romântico, gótico, descritivo. “Lá, Julien foi deixado sozinho; ele estava aterrado, seu coração batia violentamente; ele se sentiria feliz se ousasse chorar. Um silêncio de morte reinva em toda o casarão.” (“Là, Julien fut laissé seul; il était atteré, son coeur battait violemment; il eût été heureux d'oser pleurer. Un silence de mort régnait dans toute la maison.” p. 205)

No seminário Julien precisará de defender do diretor Monsieur Pirard, severo e sombrio, além dos preceptores e dos colegas. O jovem logo será alvo da curiosidade geral (“Julien se viu objeto da curiosidade geral. Mas não se encontrava junto a ele nada além de discrição e silêncio”) Vivendo entre filhos de camponeses, citadinos hipócritas, jesuítas, suspeitos de jansenismo ou protestantismo, Julien se esforça,pois “sob Napoleão, eu teria sido sargento, entre esses futuros padres, eu serei um grande vigário”. O velho e sagaz Julien: sempre motivado pela ambição!

O amigo Fouqué visita Julien no seminário e comenta o ardor piedoso da Madame de Rênal, mas o seminarista quer saber dos jornais dos liberais. Fouqué entre surpreso e irônico, “O quê! Até no seminário, os liberais! Pobre França,” e assume o ar hipócrita de um abade. Claro que episódios como este evidenciam que Julien não se 'converteu'. Os seminaristas consideram Julien um 'esprit fort', com 'ideias próprias'. O que nada é nada 'apropriado' para a cultura de rebanho do seminário! O espírito altivo isola Julien dos demais, e estes – ressentidos – mantem o recém-chegado afastado. O moço já se sente cansado, “Que imensa dificuldade essa hipocrisia de cada minuto! É uma tarefa que empalidece os trabalhos de Hércules” (“Quelle immense difficulté que cette hypocrisie de chaque minute! C'est à faire pâlir les travaux d'Hercule.” p. 218)

Aqui, o Narrador reduz a narrativa das ações e passa à longos períodos de dissertação, digressão, sondagem psicológica, várias referências intertextuais, principalmente relembrando o polêmico Voltaire. O Narrador se dirige ao Leitor em alguns momentos – o que faz pensar que qualquer semelhança com o Narrador 'realista' de Machado de Assis não é mera coincidência... “O leitor, que sorri talvez...” (“Le lecteur, qui sourrit peut-être,” p. 219) ou “O leitor bem gostaria de nos permitir” (“le lecteur voudra bien nous permettre” p. 223) ou ainda, “Nós tememos fatigar o leitor com a narrativa dos mil infortúnios de nosso herói.” (“Nous craignons de fatiguer le lecteur du récit des mille infortunes de notre héros” p. 227)

Na ação, ressalta-se a 'vontade de potência' em Julien, ao suportar os clérigos, a hipocrisia religiosa, para 'subir na vida', ter 'poder', “A vontade do homem é poderosa, eu o leio em tudo; mas será ela suficiente para superar tal desgosto?” (“La volonté de l'homme est puissant, je le lis partout; mais suffit-elle pour surmonter un tel dégoût?” p. 224) Todo um poder que só é 'legítimo' se aprovado pelo 'poder espiritual' do 'vigário de Deus', o Papa. Sendo o 'clericalismo' o poder do clero sobre a realeza.

Daí o grande erro de Julien: ter opinião própria, ter o hábito de pensar. E no meio eclesiástico isto é pecado! “Pois todo bom raciocínio ofende” Pois todos devem seguir o Dogma! Assim o 'pecado' de Julien Sorel se aproxima daquele pecado enorme de um Martin Luther (Martinho Lutero)!

Aqui o Narrador apresenta a cena da procissão, os day-dreams de Julien e faz o desmaio de uma devota dilacerar a cena idílica: a madame prostrada é ninguém menos que a Senhora de Rênal ! E quem ampara a madame senão a Senhora Derville! Julien é obrigado a se afastar. A cena é cortada.

De volta ao seminário, Julien precisa tolerar os seminaristas. Pois consegue 'brilhar' aos olhos dos padres. Recebe elogios até do Diretor. O que somente aumenta o 'despeito' dos colegas. Mas ele mantem a dignidade, mesmo ironizado pelos colegas (que não hesitam em chamar o 'imodesto' de 'Martin Luther') Aqui, uma cena com pedreiros lembra muito a cena dos coveiros em “Hamlet”, de W Shakespeare. É época de convocação militar, de testes para prosseguir os estudos, e preocupado Julien anda pelos pátios. Ele encontra os pedreiros que discutem a questão da ascensão social e dos feitos de Napoleão, agora tão injustamente desprezado.

Conquistando a confiança dos padres, Julien entra nos meandros e redemoinhos da política religiosa. O Narrador nos conduz aos círculos internos do sacerdócio, onde a política é mais 'maquiavélica' do que 'cristã'. Julien deixa admirados o bispo e os clérigos quando mostra os conhecimentos sobre poetas latinos humanistas – Horácio, Virgílio, Cícero – que são considerados pagãos. (Nessa época, o seminarista recebeuma carta anônima, contendo uma ordem de pagamento no valor de 500 francos, e fica a imaginar que vem da Senhora de Rênal.)

Devido as 'intrigas palacianas' do Clero, onde os jesuítas não suportam os 'jansenistas' (ditos 'calvinistas', porque pregavam a 'predestinação') o diretor do Seminário, o abade Pirard, solicita demissão. Julien perde, assim, o 'protetor'. Já, em Paris, o poderoso Marquês de La Mole quer ser Duque. Atarefado, afundado em questões judiciárias, negócios e negociatas, o nobre precisa de um secretário. Até oferece o cargo ao abade ex-diretor, mas este recusa (um valor que seria de 8 mil francos de salário, ou até o dobro) É então que o abade sugere o inteligente Julien Sorel, que será certamente perseguido caso continue no seminário de Besançon.

Surpreendentemente, tal personagem (Julien) não é estranha ao Marquês. (O abade até acha que Julien é um bastardo – 'fils naturel' – de um ricaço, e não seja o filho de um carpinteiro) O nobre aceita a indicação, e dias depois Julien recebe uma carta (disfarçada) do abade Pirard, e depois vai se apresentar ao bispo (aquele que adora poetas latinos) Julien, perplexo, logo começa a se imaginar em Paris, “le théatre des grandes choses” (o teatro das grandes coisas).

“A felicidade de ir a Paris, que ele imaginava povoada de pessoas de espírito intrigante e hipócrita, mas bem mais refinados que o bispo de Besançon e o bispo de Agde, a se eclipsarem aos seus olhos.” (“Le bonheur d'aller à Paris, qu'il se figurait peuplé de gens d'esprit fort intrigants, fort hypocrites, mais aussi polis que l'évêque de Besançon et que l'évêque d'Agde, éclipsait tout à ses yeux.” cap. XXX)

Ah, quantos romances franceses não tratam do herói provinciano que vai conhecer – e enfrentar – a grande metrópole parisiense! Temos o Jean Valjean de “Os Miseráveis”, temos o Lucien Chardon de “Ilusões Perdidas”, temos Georges Duroy de “Bel-Ami”, dentre outros. Quantos romances mineiros não tratam o do mesmo assunto? O antagonismo província X capital, ou campo X cidade. Vejamos “Totônio Pacheco”, ou “Amanuense Belmiro”, ou “João Ternura”, ou “O Encontro Marcado”, ou “O Grande Mentecapto”, ou “Hilda Furacão”, dentre outros.

Antes de viajar para Paris, o jovem deseja rever a Senhora de Rênal. Ele retorna a Verrières, e vai se explicar ao abade Chélan. Mas o interesse de Julien está no cair da noite: ele compra uma escada e vai bater à janela da madame! Ela, cheia de remorsos, fica perplexa e horrorizada. Não é a mulher amorosa que o jovem amante esperava encontrar. “Assim, a ausência destroi certamente todos os sentimentos humanos”, ele se magoa. Pregando a fidelidade, a Senhora faz penitência diante de deus, mas o que não impede que a proximidade, a penumbra do aposento, faça renascer a velha intimidade de 'amigos'. Na escuridão ressurgem as confidências. Quem terá enviado a carta anônima (com os 500 francos)? Se não foi a madame... [Nós, os leitores, sabemos que foi o abade Frilair, admirado com o conhecimento de latim do jovem seminarista]

Julien abafa a frieza de Madame com o anúncio de sua partida para Paris! “Eu abandono um lugar onde já fui esquecido até por quem eu mais tenho amado na minha vida, e eu a deixarei para não mais a rever. Eu vou para Paris...” (p. 262)

A Senhora esquece o remorso (e o olhar de deus) e abraça o jovem que já se levanta em despedida.... Julien consegue convencer a madame a deixar que ele se esconda no quarto dela durante todo o dia. A despedida faz reviver o afeto. Mas quando um criado descobre a escada, um alarme de 'pega ladrão' percorre a mansão dos Rênal. Antes de ser surpreendido, Julien pula a janela e foge, com tiros de fusil quase lhe estourando nos calcanhares. Assim, grotescamente, finda o Livro Primeiro.
....

O Livro II

Nessa parte de “Le Rouge et le Noir”, encontraremos Julin Sorel em Paris, convivendo entre o clero, a alta-burguesia e os nobres da Restauração (aqueles que sobreviveram e/ou foram exilados durante a Revolução Francesa, 1789-1799) Julien segue rumo a capital francesa, ouvindo as conversas dos viajantes na estrada. Os provincianos abandonam a 'paix des champs' (a paz dos campos) – expressão deveras irônica – para viver uma 'vida tranquila' na cidade grande – vida tranquila? ou vida anônima? Sem o olhar constante dos vizinhos... Afinal, no campo não há anonimato.

Diz um viajante na estalagem (com tendência 'bonapartista'), “Você quer viver no campo sem servir às paixões dos teus vizinhos, sem mesmo escutar a tagarelice deles. Que erro!” (“Tu veux vivre à la campagne sans servir les passions des tes voisins, sans même écouter leurs bavardages. Quelle faute!..” p. 276) E o outro viajante responde (com um tom 'pseudo-liberal'), “Eu vou buscar a solidão e a paz campestre no único lugar onde estas existem na França, num apartamento de quarto andar, junto a Champs-Élysées” (“Je vais chercher la solitude et la paix champête au seul lieu où elles existent en France, dans un quatrième étage, donnant sur les Champs-Élysées.” p. 276)

Segue-se todo um debate sobre Napoleão: feridas abertas! Falar sobre o Imperador depois da Restauração (1815-20) era o mesmo que - no século 20 – falar sobre o Hitlerismo, depois da Segunda Guerra Mundial. Sempre cria polêmica – uns a favor, outros contra. Napoleão abafou a Revolução – com outra Monarquia. Fez outros barões e condes, fez concordata com os clérigos. Aqui o romance clássico é um testemunho: o que aconteceu nos quinze anos após a sangrenta Batalha de Waterloo (junho de 1815) e a queda de Napoleão (exilado em outubro de 1815). A alta-burguesia, os pseudo-liberais, os fidalgotes provincianos (hobereaux) do Império Napoleônico... E o Narrador interrompe a discussão.

O mesmo Narrador que se contem para não ironizar a chegada de Julien à Paris, “Vou me privar de contar as exaltações de Julien ao chegar a Malmaison” (“Je me garderai de raconter les transports de Julien à la Malmaison” p. 278) e “À tarde, Julien hesita bastante antes de adentrar o espetáculo, ele tinha ideias estranhas sobre esse lugar de perdição”(“Le soir , Julien hésita beaucoup avant d'entrer au spectacle, il avait des idées étranges sur ce lieu de perdition.” (p. 279) e “Eis me aqui no centro da intriga e da hipocrisia” (“Me voici donc dans le centre de l'intrigue et de l'hypocrisie!” p. 279)

O abade Pirard explica a Julien o trabalho junto ao Marquês de La Mole, “l'un des plus grands seigneurs de France”, um dos maiores senhores da França, e o Abade exige a honestidade de Julien, que se mostra indignado quando o abade insinua uma possível desonestidade. Afinal, estamos entre nobres! A nobreza dos La Mole, o Marquês é par da França, e o filho Norbert, Conde de La Mole, é 'chef d'escadron de hussards', um militar, exímio praticante de esgrima, etc. Ou seja, estamos no topo da pirâmide social: e o abade a falar de desonestidades! (Ó, pobre Julien Sorel! Não sabes em que matilha de lobos adentraste...!) E o abade bem que avisa ao ex-discípulo: não faça inimigos meio aos poderosos!

E Julien anda admirado ao adentrar a maison do Maquês de La Mole. O Narrador até solicita a cumplicidade do Leitor, pois “até a você tem parecido, ó meu leitor, também mais tristes que magníficos” (“vous eussent semblé, ô mon lecteur, aussi trsites que magnifiques”, p. 285) O Narrador aqui se mistura a Narrativa e aos pensamentos da personagem, para mostrar o 'deslocamento' do Protagonista. Luxo e grandiosidade intimidam o influenciável Julien. Afinal, ele entra no mundo. “Entrada no mundo”, é o título do capítulo II. Mas, qual mundo? O ambiente da nova Babilônia (“nouvelle Babylone”), a Paris, a grande capital cosmopolita do século 19.

Ao encontrar a Biblioteca do nobre, Julien não pode evitar um êxtase, visto que “ele contemplava com arrebatamento as lombadas brilhantes dos livros: Eu poderei ler tudo isso! Ele se dizia.” (“il contemplait avec ravissement le dos des livres: Je pourrai lire tout cela, se disait-il.” p. 288) e “ele quase ficaria louco de alegria ao encontrar uma edição de Voltaire.” (“il faillit devenir fou de joie em trouvant une édition de Voltaire.”, p. 288) Na mansão do Marquês, Julien encontra o bispo d'Agde, que não reconhece o 'provinciano'. E encontra os belos olhos (beaux yeux) frios de Mathilde, a filha do nobre. “Ao fim do jantar, Julien encontra uma palavra para descrever o tipo de beleza dos olhos da Senhorita de La Mole: são cintilantes, ele diz a si mesmo” (“Vers la fin du repas, Julien trouva un mot pour exprimer le genre de beauté des yeux de Mlle de La Mole: ils sont scintillants, se dit-il.” p. 291)

No mais, Julien admira-se com o jovem Conde Norbert e evita o ressentimento – mesmo aceitando que o Conde é mais rico e nobre do que ele, um provinciano. Julien aproveita os jantares do Marquês para demonstrar os conhecimentos de Latim (e poetas latinos) que tanto deixaram admirados os burgueses provincianos e os religiosos – Julien não tem posses, não tem poder – mas tem ERUDIÇÃO. Muita erudição humanista, cultura da Roma antiga. E sabe discutir questões do tipo: “saber se o poeta Horácio foi pobre ou rico”. Porém, julien nada conhece sobre os 'contemporâneos', por exemplo, o romântico e épico Lord Byron, “Julien nada percebia destes nomes modernos, tais como Southey, Lord Byron, George IV, que ele ouvia serem pronunciados pela primeira vez.” (“Julien ne comprenait rien à tous les noms modernes, comme Southey, Lord Byron, George IV, qu'il entendait prononcer pour la primière fois” p. 292/93)

A medida que a narrativa avança, os nomes nobres são, vez ou outra substituídos, quando Conde de La Mole dá lugar a Norbert, ou Senhorita de La Mole, a Senhorita Mathilde, ou apenas Mathilde. Esta variação de 'nomeação' é uma sutil evidência da aproximação entre Julien e os jovens nobres. A Biblioteca é um 'lugar neutro', onde as cenas podem ser mais 'autênticas' e 'românticas' do que no ambiente cortesão dos jantares. No mais, a filha do nobre lê obras de Voltaire! (obviamente que às ocultas) e encontra o novo secretário sempre mergulhado nos grossos alfarrábios da Biblioteca.

Quanto ao Conde Norbert, a vontade do jovem nobre é fazer Julien abandonar o 'claustro' da Biblioteca, ao convidar o 'provinciano' para passeios à cavalo. A inexperiência de Julien causa quedas acidentais. O fato, narrado casualmente, durante o jantar, desperta o riso (logo reprimido) da Senhorita Mathilde. Aon contrário de atrair desprezo, o episódio cria bom humor entre os nobres, seus convivas e o recém-chegado secretário. Ocorrem, depois, novos passeios à cavalo, e nenhum outro acidente.

E os jantares do Marquês sempre recebem novos convivas, para distraírem os nobres – principalmente a Marquesa – e manter o 'glamour' do salão – isto é, a bajulação constante da generosidade nobre. Pode-se falar livremente, desde que não se ofenda os símbolos do Poder. Tudo é perimtido – desde que seguindo as 'normas' (a etiqueta social) Afinal, 'liberdade' não passa de 'slogan'. [Assim, também hoje em dia, nestes tempos reacionários, não é de 'bom-tom' falar de 'causas sociais', 'socialismo', 'igualitarismo', etc, na hora do chá das senhoras.]

No salão da nobreza, “a menor ideia vivaz pareceria uma grosseria”. Segundo o 'bom tom', todos se entediavam – temiam falar algo que atraísse a suspeita de 'libre-pensamento'. Os convivas se esforçam por adular os nobres – a espera de recompensas, de cargos políticos ou eclesiásticos. Julien morre de tédio com a hipocrisia dos salões. [Quase um século depois, teremos as descrições memoralísticas entre saudosistas e risíveis de Marcel Proust, em “Em Busca do Tempo Perdido”, “À la Recherche du temps perdu”) Julien morre de tédio nestes jantares - “É a parte mais penosa do meu trabalho. Eu me entediava menos lá no seminário” desabafa o secretário com o abade. Já o abade – verdadeiro 'parvenu' (arrivista) se escandaliza ao ver o jovem desprezar semelhante 'honra'. A senhorita Mathilde, ao buscar um livro na Biblioteca, ouve a conversa.

Continua...

jan-mar/10

sábado, 17 de abril de 2010

sobre O Vermelho e o Negro - STENDHAL






sobre “O Vermelho e o Negro” (Le Rouge et le Noir, 1830)
romance de Stendhal (Henry-Marie Beyle, FRA, 1783-1842)


Literatura enquanto Obra Clássica



(outras obras : Morro dos Ventos Uivantes; Os Miseráveis;
Fauno de Mármore; Bel-Ami)



O Romance da Vitória do Mundo Burguês
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Por que ler os Clássicos? Pergunta que sempre empolgou Borges e Calvino, literatos que usaram a Literatura para analisar a Literatura, nos aspectos de intertextualidades e influências (que inspiraram escritos teóricos de Bakhtin, Kristeva e H Bloom) A Obra Clássica: obra memorável e de reconhecido valor. Por que? Primeiramente, pelo fato de ser um 'testemunho de uma época', o “romance é um espelho”, escreveu o próprio Stendhal (1) Encontramos uma radiografia (estetizada, porém) de uma certa época, de uma cultura de uma dada sociedade.

O 'testemunho de época' seria uma referência externa. Mas e a Obra em si-mesma? Então considera-se a riqueza artística, a qualidade, a linguagem, as peripécias narradas, etc. É um crítica intrínseca para detectar um 'valor literário' atemporal. Seja um valor de Beleza, de Denúncia, de Experimentalismo. (Assim, o anti-clássico 'Ulisses' tornou-se um 'clássico' entre as obras de experimentações linguísticas...) Depois, na questão da intertextualidade e da influência, pode-se pesquisar quais as Obras posteriores – e não apenas obras literárias! - que foram influenciadas e inspiradas – por homenagem, paródia, ou quase-plágio – pela Obra dita 'clássica'.
Neste ensaio pretende-se uma leitura atenta de uma Obra Clássica. Tanto pela referência externa ('testemunho de época') quanto pelo intrínseco ('valor literário' a influenciar os demais). Publicado em 1830, antes da nova onda de Revoluções na Europa (que seguiram até 1848/49), o romance “O Vermelho e o Negro” (Le Rouge et Le Noir) de Stendhal (pseudônimo de Henry-Marie Beyle) representa um exemplo de clássico, reconhecido e louvado.

O romance de Stendhal seria baseado num 'caso real', o chamado caso Berthet, acontecido em 1827, com a execução de um criminoso, Antoine Berthet, de origem pobre, mas tendo cursado um seminário, por influência de um cura. Tornou-se preceptor de uma família, seduziu a Senhora, virou amante, e depois precisou fugir. Depois de um tempo em outro seminário, foi ser preceptor em outra família, ainda mais rica, onde seduzia a filha do Senhor. Não conseguindo 'dar o golpe', por intervenção da antiga amante, Berthet vai se vingar. Preso, é logo executado, aos vinte e cinco anos.

Na cidade francesa de Verrières, no Franco-Condado (Franche-Comté), encontraremos Julien, um jovem inflado de ambição que vai 'jogar' literalmente sua vida entre o 'vermelho' dos sonhos bélicos – as heróicas campanhas napoleônicas – e a encenada vocação de seminarista, futuro padre, com sua batina negra. O título evoca o ' jogo de azar' onde a bola na roleta de cassino gira, saltitando entre o vermelho e o preto.

O prefeito de Verrières, Monsieur le maire M. de Rênal, de família espanhola, foi industrial, e governa para os proprietários, para os conservadores. Entre eles o dono da madeireira : vieux Sorel (ou père Sorel) , o pai de Julien Sorel, 'notre héros' (nosso herói). De Rênal tem como antagonista político (e depois veremos que também 'amoroso') o diretor da casa de detenção (directeur du dépôt de mendicité) M. Valenod e no campo religioso o eclesiástico enviado de Besançon: M. le vicaire Maslon.

A fala predileta do Prefeito, “ne rapporte pas de revenue” (contar nada além do rendimento) é o lema do capitalismo na aurora do século 19: “contar os rendimentos é a razão que decide tudo nessa pequena cidade que vos parece tão bonita” (“rapporter du revenu est la raison qui décide de tout dans cette petite ville qui vous semblait si jolie.” p. 29) Basicamente, o 'sensato' é fazer algo porque é útil, lucrativo, e não porque seja belo e benéfico.

A esposa do prefeito, a Madame de Rênal, com seus 28 anos (casou aos 16 e o filho mais velho tem 11 a .) “A senhora de Rênal parecia uma mulher de trinta anos, mas ainda muito bonita” (“Mme de Rênal paraissait une femme de trente ans, mais encore assez jolie.”) A singela Senhora de Rênal, sem perceber o sucesso da beleza da mulher de trinta anos sobre os homens da província, “Se ela tivesse percebido esse tipo de sucesso, a Senhora de Rênal teria ficado bem embaraçada. No coração ela jamais havia abrigado nem a sedução, nem a afetação.” (“Si elle eût appris ce genre de succès, Mme de Rênal em eût été bien honteuse. Ni la coquetterie, ni l'affectation n'avaient jamais approché de ce coeur”)

O Narrador não hesita em tecer todo elogios à virtude da Senhora de Rênal. “Era uma alma ingênua, que jamais ousara julgar o marido, e a pensar que ele se incomodaria. Ela suponha, sem o dizer, que entre marido e mulher não deveria haver mais que bons relações.” (“C'était une âme naïve, qui jamais ne s'était élevée même jusqu'à juger son mari, et à s'avouer qu'il l'ennuyait. Elle supposait, sans se le dire, qu'entre mari et femme il n'y avait pas de plus douces relations.” p.36)

Encontramos um 'cura virtuoso' (cap. III/ Le Bien des Pauvres), o curé Chélan, que é um dos 'pais intelectuais' de Julien Sorel, como veremos. “Ao ler a carta que lhe escreveu o senhor Marquês de La Mole, par da França, e o mais rico proprietário da província, o cura Chélan ficou pensativo” (“En lisait la lettre que lui écrivait M. Le marquis de La Mole,pair de France, et le plus riche proprietaire de la province, le curé Chélan resta pensif.”)

O ambiente em torno de Julien é o do ódio dos proprietários contra os liberais ('libéraux') que participaram das campanhas de Bonaparte.

A 'estória' começa mesmo no Capítulo IV, quando o Senhor de Rênal resolve contratar um preceptor para cuidar da educação espiritual de seus filhos. Sabendo, através do cura Chélan, da inteligência e piedade de um dos filhos do madeireiro Sorel, vai negociar os 'serviços' do jovem Julien Sorel. O pai Sorel é um 'fripen', um velhaco (“o ar de falsidade e quase de velhacaria natural estava na cara”, “l'air de fausseté et presque de friponnerie naturel à sa physionomie...”)

O père Sorel vai chamar o filho Sorel, que está lendo no alto da serralheria, “no lugar de vigiar atentamente a ação de todo o mecanismo, Julien estava lendo. Nada causava mais desgosto ao velho Sorel; ele até perdoaria a Julien seu físico delicado, podo apropriado para o trabalho pesado, e tão diferente dos irmãos mais velhos, mas essa mania de leitura para ele era odiosa, ele mesmo que sequer sabia ler” (“Au lieu de surveiller attentivement l'action de tout le mécanisme, Julien lisait. Rien n'était plus antipathique au vieux Sorel, il eût peut-être pardonné à Julien sa taille mince, peu propre aux travaux de force, et si différence de celle ses aînes, mais cette manie de lecture lui était odieux, il ne savait pas lire lui-même.” p. 39)

Julien lia, apesar do barulho das serras!, o adorado livro “Mémorial de Sainte Hélène”, que diziam ter sido 'ditado' pelo Imperador exilado. O Narrador aprecia mostrar o contraste entre o leitor atento e a fúria dos maquinismos. E deixa-se descrever o 'herói', “era um pequeno jovem entre dezoito e dezenove anos, de aparência frágil, com traços irregulares, mas delicados, e um nariz aquilino.” (“C'était un petit jeune homme de dix-huit à dix-neuf ans, faible em apparence, avec les traits irréguliers, mais délicats, et un nez aquilin.” p. 40)

Acostumados ao trabalho pesado, a família Sorel despreza o 'espiritual' Julien, pensativo e pálido, “extrêmement pensif et sa grande pâleur”, por isso “objeto do desprezo de todos na família” e “desprezado por todo mundo, como um fraco” (“objet des mépris de tous à la maison”; “méprisé de tout le monde, comme un être faible”)

O Sr. Sorel quer saber de onde Julien conhece a família de Rênal, principalmente a Senhora de Rênal. Por que o prefeito desejaria como preceptor o seu filho viciado em livros? Mas pressionado a ser um 'doméstico', Julien pensa em fugir até Besançon, e engajar-se como soldado. (Suas aspirações influenciadas pelo glamour do ex-Imperador Napoleão...) Julien vive entre um destino de soldado e o de seminarista, entre a Bíblia e o “Memorial de Santa Helena”. Mas, enquanto isso, o Sr. Sorel se assegura que Julien 'será bem tratado', além de que o prefeito pretende financiar o hábito para o 'futuro padre'. Assim, toda a vida de Julien é decidida, a 400 francos por ano, 35 francos por mês. (Não sem uma árdua negociação entre dois sovinas, o madereiro e o prefeito)

Julien, então, vai trocar seu culto por Napoleão pelos 'sentimentos piedosos' e se ocupa em aprender a bíblia latina, emprestada pelo cura Chélan. Mas, tudo isso será uma 'aparência', pois interiormente Julien continua imaginativo, vivendo de 'aspirações grandiosas', pois “desde sua primeira infância, ele tinha momentos de exaltação” (“Dés sa première enfance, il avait eu des moments d'exaltation”)

E Napoleão simboliza justamente essa 'grandiosidade', a superação da condição humilde até a glória do poder. (Napoleão Bonaparte foi um tenente que chegou a Imperador da França, no início do século 19. Mas um exemplo mais próximo, na primeira é o triste fenômeno do nazista Hitler, um cabo austríaco que chegou a Comandante-em-Chefe das Forças Armadas alemãs numa 'guerra total' contra os anglo-saxões e contra os russos)

Mas na época da 'Restauração', o que dá lucro é ser padre, daí 'é preciso ser padre' – tem renda maior que de 'general-de-divisão'! Por que? A Monarquia de volta ao poder precisa restaurar o duplo poder – nobres + clero – e muitos clérigos, em todos os níveis haviam sofrido com a Revolução Francesa, duas décadas antes. Com a debilidade do clero, era preciso 'incentivar' os jovens a se dedicarem a 'carreira' (pomposamente chamada de 'vocação') de sacerdote.

Quando Julien chega a casa dos Rênal, ele se deslumbra com a belza da Senhora de Rênal, e ela se vê perplexa diante da juventude do novo 'preceptor'. Este fica 'desarmado' diante da gentileza e cordialidade dela, que prontamente lhe outorga o título de 'monsieur'. Seduzido, Julien promete ser paciente com as crianças, “Não tenha medo, Senhora, eu vos obedecerei em tudo” em seguida, o jovem 'seminarista' surpreende a todos, ao recitar trechos inteiros da Bíblia latina.

Seguem-se as “afinidades eletivas”, a confiança mútua e gradual entre a Senhora de Rênal e o jovem preceptor, quando este vai sendo apresentado (e habituando-se) a 'haute société' (alta sociedade), os ricos proprietários burgueses e donos-de-terras. Logo cria inveja por sua inteligência, criando ciúmes entre os empregados da Mansão. Mas a 'pacifiicadora' é a Senhora, sempre amável. Sabemos que ela teve educação religiosa, com os jesuítas, e desde jovem foi adulada por pretendentes, pois ela é herdeira de grande fortuna. Mas ela sempre achou os homens seres grosseiros, ambiciosos, insensíveis, hipócritas, até a chegada de Julien, com aqueles ares de jovem pobre mas letrado, com inteligência sedutora, que conquista aos poucos. (No mais, o Narrador explica que o amor na província é mais 'lento', gradual)

Em contraponto ao 'liberalismo' de Julien, a Senhora de Rênal detesta tudo o que parece 'cheirar a' liberalismo, ou espírito revolucionário, pois julga tudo isso 'profano', coisas de infiéis 'jacobinos'. (O mesmo nojo que depois os socialistas – e os comunistas – vão inspirar nos liberais, quando estes subirem ao poder depois das Revoluções de 1830 e 1848. Os liberais – conservando a 'piedade cristã' não hesitam em denominar os socialistas de descrentes, profanos, demoníacos)

Meio a semelhantes contrastes, a vida de Julien resvala em hipocrisia e negociação, mantendo sua aspiração ambiciosa, a desprezar aqueles que vivem ao seu redor. Julien, na verdade, somente era sincero em sua admiração ao heróico Napoleão. A cada humilhação, o jovem mantem seu ar de 'supériorité intellectuelle', mas ainda a se sentir desconfortável na presença de mulheres, ainda mais a Senhora, pois ele está sempre sufocada pela imaginação romanesca (isto é, a idealização da mulher)

Em público ele mantém o ar sério do hábito de seminarista, ou então uma eloquência febril, mas quando junto da Senhora de Rênal, ele mantem-se em embaraçoso silêncio. O Narrador descreve cenas onde o que mais se ressalta é a hipocrisia – onde se restaura todo a 'desigualdade' de classes (e de castas) que existia antes da Queda da Bastilha.

Os burgueses assistem a restauração da nobreza e do clero, mas sabem manter os 'negócios', e desejar ambos os mundos – o material e o espiritual. Viver bem, dar esmolas, beijar a mão do padre. (Ainda que o cura Chélan avise a Julien que isso é ilusão. É preciso escolher em qual mundo 'fazer fortuna' – neste mundo ou no outro...) Pois Chélan não acredita que Julien possa ser padre, então é melhor que o jovem se dedique a uma vida de 'burguesia provinciana'. Pode, por exemplo, casar-se com a criada da Senhora de Rênal, e ter uma vida sem ambições. (“Melhor ser um burguês de província do que ser um padre sem vocação”, diz o clérigo)

Julien até reconhece a amizade e a afeição do cura, mas não retribui – o desejo de Julien é vencer a tudo e a todos. O jovem preceptor insiste em 'palavras de uma hipocrisia cautelosa e prudente' e continua a recusar a criada da Senhora – ao mesmo tempo em que a Senhora adoece de tensão (ou ciúmes). Como pode a madame considerar a camareira (femme de chambre) uma rival? Assim a madame assume sua paixão pelo serviçal, um preceptor. O Narrador descreve com fineza psicológica e secura narrativa esse 'novo estado de sensações' da Senhora, “Ingênua e inocente, jamais esta boa provinciana havia torturado a alma, para tentar arrancar um pouco de sensibilidade a qualquer nova nuance de sentimento ou de desventura” (“Naïve et innocente, jamais cette bonne provinciale n'avait torturé son âme, pour tâcher d'en arracher un peu de sensibilité à quelque nouvelle nuance de sentiment ou de malheur.” p. 73)

A 'estória' é simples, mas o estilo descritivo e psicológico do Narrador é magistral, ele descreve o cenário e apresenta a ação. Tem uma escrita pouco 'floreada', até 'seca', sucinta, sem muita retórica. Volta e meia, o Narrador refere-se a própria função – afinal, trata-se de um romance – quando diz “Como a nossa intenção é de não elogiar ninguém...” (“comme notre intention est de ne flatter personne...”) ao leitor que se indaga se ele, o Narrador, está do lado do hipócrita, mas complexo, Julien, ou da sincera, mas simplória, ingênua, Madame de Rênal.

(Este estilo de Narração deve ser comparado com o de Flaubert, Balzac, Maupassant e Dostoiévski, como bem mostram os estudos e ensaios de Jean-Paul Sartre, em L'idiot de la famille - Gustave Flaubert de 1821 à 1857. )

Enquanto a sedução prossegue, Julien precisa afogar seu 'sentimento de inferioridade' garantindo a afeição da Senhora de Rênal. O jovem preceptor se imagina em batalha pela conquista do afeto da Madame. O que se mostra evidente quando ele exige que ela aceite as mãos dele entre as delas. É aqui o preâmbulo de tantas outras descrições românticas de almas apaixonadas. Claro que antes Julien precisa superar a timidez e a Senhora perder a ingenuidade...

Mas analisando-se bem, além do idílio romântico, Julien não ama a madame, mas quer ter PODER sobre ela. É um jogo onde o 'inferior' domina o 'superior'. O empregado começa a mostrar relaxado e desrespeitoso diante do Senhor de Rênal, o patrão e prefeito, símbolo da Autoridade. O burguês até tolera o preceptor, pois não pretende ver o 'talentoso' Julien servindo ao M. Valenod ou casado com uma serviçal... No mais, os 'da alta sociedade' evitam criar ressentimentos em talentosos e eufóricos jovens das 'classes baixas'. “São tais momentos de humilhação que fizeram os Robespierres” (“ce sont sans doute de tels moments d'humiliation qui ont fait les Robespierre”), desabafa a Madame Derville, a ex-colega da Senhora de Rênal no colégio do Sacré-Coeur, quando, ao hospedar-se na mansão dos Rênal, percebe o 'jogo de forças' que ali é encenado (a mesma 'visão de fora' que nós, os leitores, temos)

As reações são ora veladas ora explosivas – bem ao estilo Romântico – e a Senhora de Rênal se ressente do 'autoritarismo' do marido – sempre disposto a 'humilhar' o preceptor – mostrando que ela não é mais aquela 'esposa ingênua e submissa', que encontramos no início do romance. Enquanto isso, Julien procura ocultar seu lado idealista, ambicioso, liberal, mantendo a atitude hipócrita, sua 'reputação' e 'ar sério'. Para acalmar os ânimos, o Senhor de Rênal só conhece uma solução: o dinheiro. Ele acalma o jovem idealista com promessas de aumento de salário. É o patrão a pensar que todo desgosto do empregado está no 'valor do salário' – esquecendo a dominação e exploração que caracteriza a relação patrão – empregado.

Julien, no entanto, acredita que pelo menos esta 'batalha' ele conquistou: a de ser valorizado (com o aumento dos rendimentos). Falta ainda a Senhora entregar-se à paixão nunca antes experimentada. Mas ela ainda resiste.

O preceptor decide se afastar por uns dias, e vai visitar o velho amigo Fouqué, que tem outros planos para 'vencer na vida', agir como negociador, empresário. (Imaginaria ele que o século 20 seria o dos 'empreendedores'? Julien recusa a oferta de Fouqué para se associarem num negócio que pode ser rentável. “Nada podia vencer a vocação de Julien. Fouqué acabou achando que ele era um pouco idiota.” (“Rien ne put vaincre la vocation de Julien. Fouqué finit par le croire un peu fou.” p. 102) e o próprio Narrador tece considerações psicológicas, recorrendo a entes da mitologia, “Tal como um Hércules, ele encontrava-se não entre o vício e a virtude, mas entre a mediocridade seguida de um bem-estar e todos os sonhos heróicos da juventude.” (“Comme Hercule, il se trouvait non entre le vice et la vertu, mais entre la mediocritè suivie d'un bein-être assuré et tous les rêves héroïques de sa jeunesse.” p. 103)

Após a 'conquista', os desassossegos continuam, pois Julien tem consciência da 'distância social' entre ele e a Senhora (distância esta que vem do nascimento, característica do sistema feudal, contra o qual a Burguesia dizia lutar em prol da 'igualdade'), “Qualquer dia depois, esta mulher vai me lembrar a distância infinita que nos separa, ela vai me tratar como o filho de um serviçal.” (“L'autre jour em partant, cette femme m'a rappelé la distance infinie qui nous sépare, elle m'a traité comme le fils d'un ouvrier.” p. 103) e também “Aos olhos dessa mulher, eu, ele se dizia, eu não sou um bem-nascido” (“Aux yeux de cette femme, mois, se disait-il, je ne suis pas bien né.” p. 105) Aqui, 'bem-nascido' é uma expressão aristocrática, sendo aquele que nasceu no berço da nobreza ou da alta burguesia. Distinção que a Revolução pretendera abolir.

Sempre osciland entre a hipocrisia complexa de Julien e a ingenuidade simplória da Madame, o Narrador volta a destacar a mulher provinciana que é bela, porque é singela e pura, numa vida sem glamour ou emoções fortes (obviamente em contraste com a vida promíscua de Paris... como veremos em Balzac e Maupassant) Sejamos até 'anacrônicos' (pois Stendhal é anterior a Balzac) e digamos que a Senhora de Rênal é uma 'balzaquiana', aquela mulher de 30 anos a convrsar toda a beleza na placidez de caráter, sem que sua maturidade resvale em cinismo.

Belíssimas páginas sobre o jogo de sedução, em avanços e recuos, revelações e resistências entre Julien e a Senhora de Rênal. Julien, influenciado pelas aventuras de Fouqué, deseja ser o 'amante' da madame. As 'maquinações' de Julien são tantas que até 'irritam' o Narrador, “Infelizmente é esta a desgraça de uma civilização excessiva! Aos vinte anos, a alma de um jovem assim educado está a milhas de uma entrega, sem a qual o amor, com frequência, não é mais que o mais aflitivo dos deveres” (“Tel est, hélas, le malheur d'une excessive civilization! A vingt ans, l'âme d'un jeune homme s'il a quelque éducation, est à mille lieues du laisser-aller, sans lequel l'amour n'est souvent que le plus ennuyeux des devoirs.” p. 107)

Incapaz de ser sincero, Julien diz que precisa ir embora, pois está 'apaixonado' e isto é pecado para um 'padre'. Para a Senhora a paixão é uma novidade. O narrador comenta sobre as 'leitoras de romance' e completa “Visto que a Senhora de Rênal jamais havia lido romances, todas as nuances de sua felicidade eram novas para ela.” (“Comme Mme de Rênal n'avait jamais lu de romans, toutes les nuances de son bonheur étaient neuves pour elle.” cap. XIII, p. 108)

O importante para Julien é ser um bom 'soldado de Napoleão' e traça planos de 'batalha' para 'conquistar' a Madame de Rênal. Mas as coisas não seguem o 'plano'. Julien se faz de cândido, de 'gauche', e Madame adora essa 'candura' do jovem... (Madame Derville acha que Julien acha premeditado, um 'político', um 'sournois' – dissimulado ) Mas Julien torna-se outro 'amoroso' perseguidor – igual ao incansável Sr. Valenod, a tal ponto que a Senhora evita ficar à sós com o jovem 'apaixonado'.

A Madame se surpreende com as oscilações de Julien entre o preceptor cândido e o sedutor 'hardi' (ousado), “É timidez de amor de um homem de espírito”, ela se alegra. A ambição de Julien espera que no mínimo, quando a Madame aceitar o 'amor múuo', ela psse a tratá-lo com igualdade, pois “não se pode amar sem igualdade”. Sabe ele que não se sai bem no seu 'papel de don Juan' ('le rôle d'un don Juan', o famoso personagem das baladas de Lord Byron) Tanto que Julien vai ajudar o cura Chélan em sua mudança, e depois tem a ideia de escrever a Fouqué, para se desculpar, ao recusar-se a ser sócio num negócio. Julien alega sua 'vocação irresistível' para ingressar nas 'ordens sacras'.

A sedução não é algo 'natural' para Julien, “seu papel de sedutor lhe pesava tão horrivelmente”. Se para outros, a sedução é tão 'natural', para alguns, que querem seduzir, surge como uma 'maquinação', um 'jogo de máscaras', ridícula e sem sucesso. Ele se fatiga inventando manobras que depois considera absurdas.

O Narrador ironiza – a recorrente expressão 'notre héros' (nosso herói) – as cenas entre Julien e a Madame, como frases do tipo “pode-se dizer, em estilo de romance”, o que lembra que tudo não passa de literatura... (ou alguém influenciado pela literatura, tais os exemplos de Don Quixote e Madame Bovary) Pois Julien quer criar a imagem de um 'sedutor' que ele não é! Enquanto a Senhora ama no jovem justamente a introspecção, a 'candura' e a timidez!

O idílio amoroso de Julien e a Senhora de Rênal é – obviamente – cercado de prudências para ocultar a paixão. Mas a Madame não evita os remorsos para com o marido. E a Sra. Derville não hesita em avisar a amiga dos 'perigos'. Os contratempos aumentam o amor - e o amor aumenta os remorsos. “Em poucos dias, Julien rendeu-se a todo o ardor de sua idade, perdidamente apaixonado” e também “Ele tinha perdido efetivamente a ideia de um papel a atuar”. Mas sabemos que o 'amor' para Julien é 'a alegria de possuir', de 'subir na escala social', de não 'ser apenas um serviçal', em suma, é ambição. Uma verdadeira “Vontade de Potência” contra o mundo, diria F Nietzsche – que escreveu sobre Stendhal, “O último dos grandes psicólogos franceses”. [O Stendhal que não considerava a França um país muito civilizado – ele certamente imagina a Grã-Bretanha como mais 'liberal'... ] Julien, descuidado com a paixão, quase confessa à Madame sua ambição...

O 'realismo psicológico' - que evita que todo o idílio fique deveras 'romântico' – é pontuado pelo Narrador, quando lembra que Julien continua pensando no dinheiro (que cria a trágica 'diferença de classe') enquanto a Madame de Rênal coloca o 'amor' acima de tudo. Mas – pensemos – um jovem 'liberal' pode ser sincero com uma mulher de grande proprietário? Julien logo compreende que a Senhora está 'no campo inimigo' (“dans le camp ennemi”) E o Narrador revela o que está por detrás da 'aparência', e insistir na repetição do irônico 'notre héros', “Il manque à notre héros d'oser être sincere” - 'falta ao nosso herói ousar ser sincero'- o que lembra muito um “romance picaresco” (2), onde o herói pode 'aprontar' alguma encrenca...

Sejamos 'anacrônicos' e digamos que Julien sofre de um 'complexo de inferioridade', sofrendo por não ser um 'bem-nascido' e querendo se igualar – nem que seja na 'paixão' – com a rica herdeira burguesa. (No mais, é toda uma época quando é visível o desprezo dos 'bem-nascidos' pelos Robespierres que advêm das classes baixas.) E Julien aprende sua 'éducation de l'amour' com uma dama 'ignorante' no assunto, uma esposa de província, submissa ao marido...

Continuando o 'realismo' – que dilacera o idílio 'romântico' – temos as mesquinharias da 'política de província' [depois melhor descritas na “Comédia Humana” de Balzac, o literato de olhar 'sociológico'] e Julien se interessa mais pelas manobras da política do que pelas manobras de guerra – mas ele não pode esquecer que é um 'estudante de teologia' – esta divisão entre 'aparência' e 'essência', ao ser obrigado a aparentar o que não é: eis a ruína/tragédia de Julien Sorel.

Enquanto isso, a Senhora sonha com um Julien futuro, coberto de glórias, “Ela o imaginava Papa, ela o imaginava Primeiro-ministro, igual a Richelieu.” Justamente quando as forças monarquistas e clericais se reorganizam para assegurar a continuidade da Restauração – e abafar os anseios da 'pequena burguesia' e das classes populares. No interesse de 'notre sainte religion' os nobres e clérigos se organizam para receber um rei – e evitar a ascensão dos liberais, que só sabem enriquecer e aspirar aos cargos políticos, em fervorosa propaganda... É esta agitação festiva (e política) que distrai o amor da madame.

Julien desfila à cavalo na guarda de honra, enquanto outros 'messieurs' – até grandes proprietários – são deixados de fora! A alta sociedade se escandaliza, afinal Julien é o 'filho do carpinteiro', “nascido na lama, na ralé” (“né dans la crotte”) O jovem, empolgado, se sente um oficial de Napoléon, e “era o mais feliz dos homens”, ao ingressar no mundo das pompas, onde a vaidade é a moeda corrente. Ele se deixa fascinar pelas cerimônias eclesiásticas, o charme dos sacerdotes ofusca as glórias militares, “a admiração de nosso herói não tinha limites”. (Então o Narrador resolve não descrever a cerimônia, limitando-se a dizer que foi tema das conversas e jornais da província durante uns quinze dias...)

Quebrando o 'romântico', o Narrador não se perde em descrições, mas apresenta o ensaio, a política, as vaidades, os custos - “somente a cerimônia custou três mil e oitocentos francos” e que será paga por 'gentileza' do Marquês de La Mole, um dos nobres mais ricos da província... Por 'gentileza'? Claro que não! Tudo encenado para cativar o povo devoto e abafar o 'jacobismo', “Os camponeses estavam ébrios de felicidade e de piedade. Uma tal jornada desfazia a obra de cem números de jornais jacobinos.” (“les paysans étaient ivres de bonheur et de piètè. Une telle journée défait l'ouvrage de cent numéros des journaux jacobins” p. 137)

Os clérigos e os monarquistas criavam verdadeiros cerimoniais para iludir o povo e afastar os camponeses do 'liberalismo' , o 'jacobismo', assim como os fascistas adoravam criar 'cenas teatrais' para seduzir os proletários, com os líderes posando de semideuses a guiar o povo carente de liderança (assim os padres chegavam para curar os males do pecado...) Julien se deixa seduzir pelas pompas – Julien, o leitor de Napoleão! - e pensa emocionalmente em tornar-se padre, isto é, um sacerdote com poder.

As imagens dos monarcas ajoelhados diante dos sacerdotes são aquelas que acompanharão Julien em sua estada no Seminário de Besançon, onde precisará suportar a classe sacerdotal desde os professores até os seminaristas, seres cheios de invejas e ambições, mas alegando-se acima dos 'homens comuns', pois seguem uma 'vocação sacerdotal' de 'ensinar o amor' e 'propagar o evangelho'! Os monarcas de joelhos diante dos servos do Altíssimo “tout-puissant et terrible”, os sacerdotes tão perseguidos na terra, mas que “ils triumphent au ciel”, triunfam no Céu! Uma verdadeira simbiose entre a Monarquia e o Clero.

[Lembramos que o combate clerical X liberal foi ainda mais radical na Espanha do que em Portugal ou na França. Seguimos a radicalização de ambos os lados até a tragédia da Guerra Civil espanhola, nos anos 30 do século 20.]

Sabendo que se trata de um 'romance psicológico', onde cada detalhe do psiquismo das personagens – em interação – é essencial para o encadeamento das ações, percebemos a necessidade de seguir cada passo do 'enredo'. Assim, é um trabalho de 'ler as entrelinhas' tal como ler o “Hamlet” ou “Crime e Castigo”. Aqui podemos afirmar que o psicologismo de Stendhal leva certamente ao de Dostoiévski, assim como o sociologismo de Balzac igualmente muito deve ao mesmo autor (lembrando que toda 'psicologia' é psicologia social, abordar o indivíduo é analisar o indivíduo no social...)(3)

A psicologia de um anti-herói tal qual Julien se constrói como uma 'esponja' a sugar as expectativas dos demais, a sugar os mínimos comentários e reações às ações do Ego inflado, ambicioso, genioso. Julien sabe que seu talento incomoda os ricos medíocres, sabe que os proprietários comentam o 'absurdo' de um 'filho de carpinteiro' ter desfilado na guarda de honra, sabe que os mesmos hipócritas 'enrouquecem a pregar a igualdade', sabe que os ambiciosos culpam o capricho da mulher do prefeito, a cândida Senhora de Rênal.

Enquanto isso, o filho mais jovem da Madame está febril. A mulher se afunda em remorsos por seu adultério, “ela não tinha pensado na grandeza de seu crime aos olhos de Deus” (“elle n'avait pas songé à la grandeur de son crime aux yeux de Dieu” p. 142) A Madame se vê num dilema: a saúde do filho ou a paixão por Julien. Ela imagina que escolhendo a paixão, então ela será punida com a perda do filho. E Julien, que sente, sabe e analisa tudo, não entende como pôde inspirar tanto amor naquela mulher, esposa fiel e mãe zelosa! Ele sendo tão pobre e ignorante (no sentido de não ser 'educado') Em termos freudianos, diríamos que enquanto a Madame sofre de 'complexo de culpa', o jovem preceptor sofre de 'complexo de inferioridade'.

Se a mulher é fiel por medo – não por amor ao marido – em toda uma submissão social e religiosamente tecida, o marido aqui não demonstra qualquer suspeita – o que leva direto ao exemplo posterior de Charles Bovary, esposo traído da imaginosa Madame Bovary – e pensa que as 'cenas' emocionais da esposa não passam de “idées romanesques”! Os padres pecadores sequer sofrem tanto quanto a Madame a penalizar-se por amar um homem que não seja o marido. Ela quer se humilhar, confessar o pecado, e salvar o filho. O remorso poderá precipitar a mulher no abismo social! Julien precisa manter a calma, seu jogo de amor e ambição se emparalha, as cartas estão marcadas.

O enredo envolvendo homem pobre e mulher rica será muito explorado. Temos os exemplos de “Os Miseráveis”, também “O Morro dos Ventos Uivantes”, e “Bel-Ami”, ainda as obras brasileiras “Senhora” e “Olhai os lírios no campo”. São histórias envolvendo o conflito entre amor e ambição, desvelando as diferenças de classe e de sensibilidade, no jogo da ascensão e da promoção, nas piruetas do circo social.

[Quantos romances e novelas se influenciaram, se inspiraram em “Le Rouge et le Noir”? É difícil, senão impossível dizer. Mas fazendo uma análise tão detalhada do romance de Stendhal certamente entenderemos a força de sua narrativa. E nem precisaremos abordar as 'cópias' e 'quase plágios' que abundam pelo mundo midiático...]
continua...

jan-mar/10
notas

(1) "um romance é um espelho que passa por uma longa estrada. E ora reflete ao vosso olhar o azul do céu, ora a lama dos pântanos à margem. E o homem que carrega consigo será acusado de ser imoral! Seu espelho mostra a lama e vocês acusam o espelho! Acusem antes o caminho onde está o pântano, e antes o inspector de estradas que deixa a água acumular e pântano se formar.”

Un roman est un miroir qui se promène sur une grande route. Tantôt il reflète à vos yeux l’azur des cieux, tantôt la fange des bourbiers de la route. Et l’homme qui porte le miroir dans sa hotte sera par vous accusé‚ d’être immoral ! Son miroir montre la fange, et vous accusez le miroir ! Accusez bien plutôt le grand chemin où est le bourbier, et plus encore l’inspecteur des routes qui laisse l’eau croupir et le bourbier se former. (livro II, cap. XIX)
(2)o “romance picaresco” é um estilo romanceado da Espanha do século 16, com a presença de um herói aventureiro, em mil peripécias, meio anti-herói, meio vilão. Estilo que muito inspirou Miguel de Cervantes ao criar seu fabuloso imaginativo Don Quixote de La Mancha. No Brasil, temos um clássico do estilo, o romance “Memórias de um Sargento de Milícias” (1854-55), de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861 ), onde há toda uma fábula da 'malandragem'.

(3)Diferença entre “Le Rouge et le Noir” e “Crime e Castigo”: enquanto no primeiro o Narrador mostra o mundo (Verrières) e depois a personagem (Julien) (vai do mundo exterior ao mundo interior), no segundo a personagem (Raskólnikov) é mostrada e depois apresenta-se o mundo (São Petersburgo, Rússia)(vai do mundo interior para o mundo exterior) Basta compararmos as cenas iniciais dos dois romances.

sábado, 10 de abril de 2010

sobre A Tempestade (W Shakespeare)








sobre “A Tempestade” (The Tempest, 1611 )
peça teatral (comédia) de William Shakespeare
(GBR, 1564-1616)

O amor enquanto desencontros e encontro

O 'enredo' de A Tempestade é até simples. Mas um 'simples' na escrita do Sr. Shakespeare é sempre uma complexa obra-prima, como sempre se entusiasma o Sr. Bloom. Aqui temos outro caso de ambição e traição. O irmão soberano que tem o trono usurpado pelo irmão ambicioso (outros exemplos é o Rei Hamlet morto pelo irmão Claudius, e o ambicioso bastardo Edmund atraiçoando Edgar em King Lear) Antonio, o irmão de Próspero, o Duque de Milano, usurpa o poder exila o Duque e a filha deste, que se abriga numa ilha, onde habita um ser grotesco, filho de bruxa. Doze anos depois, quando a frota do usurpador navega às costas da ilha, o ex-duque, agora um poderoso mago, provoca uma tempestade, com a ajuda de um 'espírito da natureza' e interfere para consertar o erro (e daí termos toda a peça dramática)

Enquanto Próspero se deixa fascinar por metafísicas e magias, e assim a descuidar da 'coisa pública', do papel de soberano, seu irmão Antonio conspira para usurpar o trono do Ducado de Milano – com uma cooperação interesseira do Rei de Napoli, o pai de Ferdinando. Antonio decide exilar o irmão deposto. Mas Próspero recebe a ajuda de Gonçalo, que resguarda os livros que seguem com o exilado. E estes livros de magia serão a companhia de Próspero, a evoluir para um grande mago.

O poder da magia: Ariel – o espírito do ar – serve a Próspero pois confia que o mágico vai lhe conceder a liberdade prometida. Simboliza aquele que age por recompensa. Enquanto isso, Caliban – o espírito da terra – serve a Próspero por temer os poderes do mágico. Até porque Caliban reconhece o poder da magia! Pois ele é filho da bruxa Sicorax... Ele é o nativo a ser escravizado pelo invasor, e que obedece por temor. (Tanto é assim que Caliban não hesita em 'conspirar' com dois tripulantes náufragos para usurpar o 'domínio' de Próspero na ilha... Vejam cena II, do Ato 2, e cena II do Ato 3)

A tempestade mágica se abate sobre o navio, onde a tripulação e os nobres viajantes trocam blasfêmias e impropérios, loucos de medo ao divisarem o fim nos abismos tormentosos. Tanto tripulantes rústivos quando os engomados nobres se debatem meio as chicotadas das ondas e cada um tenta salvar sua pele. A cena é descrita vivamente por Ariel – responsável pela confusão toda – e de forma irônica. (Vejam a cena II, do Ato 1) Na hora do perigo, todos os homens, de todas as castas, são iguais.

Ao se perceberem salvos da tempestade, numa ilha paradisíaca de cenário luxurioso, os nobres se perdem em devaneios, imaginando a ilha desabitada, enquanto o Rei de Napoli geme de desespero, crendo na morte do filho Ferdinando (sabemos que o moço está em andanças no outro lado da ilha...) Meio a toda esta 'dicotomia' entre tragédia e comédia, temos a 'utopia' libertária de Gonçalo – cena I, ato 2 – que, imaginando-se dono da 'ilha desabitada' diz criar uma sociedade tão harmoniosa a ponto de 'suplantar' a Era de Ouro, o paraíso terrestre, ou El Dorado, ou a “era da espiga” (como diz um dos poemas de Garcia Lorca)

I' the commonwealth I would by contraries
Execute all things; for no kind of traffic
Would I admit; no name of magistrate;
Letters should not be known; riches, poverty,
And use of service, none; contract, succession,
Bourn, bound of land, tilth, vineyard, none;
No use of metal, corn, or wine, or oil;
No occupation; all men idle, all;
And women too, but innocent and pure;
No sovereignty;--

Na minha comunidade eu executaria
Todas as coisas ao contrário; pois não
Aceitaria comércio, nem magistrados;
Nada de letrados, riquezas, pobreza,
Nenhum tipo de serviço, contrato, sucessão.
Fronteiras, divisas, títulos, lavouras, nada;
Nenhum uso de metal, grãos, vinho ou óleo;
Nenhuma ocupação; todos em ócio, todos;
E as mulheres também, inocentes e puros;
Sem dominação; -

All things in common nature should produce
Without sweat or endeavour: treason, felony,
Sword, pike, knife, gun, or need of any engine,
Would I not have; but nature should bring forth,
Of its own kind, all foison, all abundance,
To feed my innocent people.

Todas em coisas em comum a natureza produziria
sem suor ou esforço: traição, criminalidade,
violência, arma, punhal, uso de engenhos,
nada disso teria; mas, a natureza traria tudo,
por si mesma, toda colheita, toda fartura,
para alimentar meu povo inocente.

I would with such perfection govern, sir,
To excel the golden age.

Com semelhante perfeição, eu governaria,
meu senhor, até superar a Era de Ouro.

Claramente, o objetivo aqui não é resumir a peça do Grande Bardo, mas ressaltar algumas imagens, tal como esta da 'ilha desabitada' enquanto lugar possível da Utopia – o ansiado começar de novo... Algo que certamente encontramos em Robinson Crusoé, quando ele constrói sua nova sociedade de um homem só na ilha desabatada no calor dos Trópicos.

Em “A Tempestade” também temos o 'amor simultâneo' de Ferdinando e Miranda, ao estilo “Romeu e Julieta”, como é evidente na cena I do ato 3,

Miranda: Do you love me?
Ferdinand:
O heaven, O earth, bear witness to this sound
And crown what I profess with kind event
If I speak true! if hollowly, invert
What best is boded me to mischief! I
Beyond all limit of what else i' the world
Do love, prize, honour you.
Miranda: I am a fool
To weep at what I am glad of.
Prospero:
Fair encounter
Of two most rare affections!
Heavens rain grace
On that which breeds between 'em!

Miranda: Você me ama?
Ferdinando:
Ó céus, ó terra, sejam testemunhas
do que digo e coroem com boa sorte se
eu professo com verdade! Se for falso,
invertam o que é bom em desventura!
Eu, além de todo limite que há no mundo
amo, honro e idolatro você!
Miranda: Sou uma boba
A lamentar o que me faz feliz.
Próspero:
Belo encontro de duas raras afeições!
Que os céus derramem graças
Sobre os frutos da união entre eles!

Miranda, deslumbrada, ao ver agora tão povoada a sua longa solidão, se refere a um 'admirável mundo novo' (“brave new world”), na cena I, do ato 5,

O, wonder!
How many goodly creatures are there here!
How beauteous mankind is! O brave new world,
That has such people in't!

Ó maravilha!
Quantas criaturas adoráveis existem aqui!
Quão belos são os humanos! Ó admirável mundo novo,
onde habitam semelhantes pessoas!

e é justamente esta 'alegoria' que Aldous Huxley usa para seu clássico da 'distopia', publicado em 1934.

Para Miranda, em sua ingenuidade favorecida pelo isolamento, na Beleza não há Maldade. E o ideal de toda Arte é a criação da Beleza. “A tristeza é a chaga em tudo o que belo”, Temos aqui um 'prenúncio' do que será o ideal da 'l'art pour l'art' do século 19, a Arte enquanto símbolo da Beleza (ideal que os modernistas destruíram...) Temos também uma influência sobre o Dorian Gray , de Oscar Wilde, que acredita ocultar sua perversidade sob uma máscara de Beleza. Uma pessoa tão bela não pode fazer o mal, ou tolerar a perversidade (e transfere a 'Feiúra da Maldade' para o belo quadro )

Outra referência (ou: outra obra que sofre com a 'síndrome da influência' em relação ao Bardo) é o romance “The Collector” (1963, O Colecionador) do britânico John Fowles, onde o sequestrador da bela Miranda, mocinha universitária que é tratada tal um belo espécime de colecionador, ele se imagina um Ferdinando a conquistar o amor de sua prisioneira. Mas o que temos é uma esperada tragédia. (Nada que Freud e a 'síndrome de Estocolmo' não explique...)

Sensivelmente, a peça dramática alcança ápices de imagética e metalinguística na cena I do Ato 4, com a digressões sobre a magia (e o encanto da própria encenação!) onde Próspero descreve para o fascinado Ferdinando a magia, a onipresença do 'mundo dos sonhos', de cujo matéria até nós somos feitos,

You do look, my son, in a moved sort,
As if you were dismay'd: be cheerful, sir.
Our revels now are ended. These our actors,
As I foretold you, were all spirits and
Are melted into air, into thin air:
And, like the baseless fabric of this vision,
The cloud-capp'd towers, the gorgeous palaces,
The solemn temples, the great globe itself,
Ye all which it inherit, shall dissolve
And, like this insubstantial pageant faded,
Leave not a rack behind. We are such stuff
As dreams are made on, and our little life
Is rounded with a sleep. Sir, I am vex'd;
Bear with my weakness; my brain is troubled:
Be not disturb'd with my infirmity:
If you be pleased, retire into my cell
And there repose: a turn or two I'll walk,
To still my beating mind.

Você parece comovido, meu filho,
Como se assustado: anime-se, senhor.
Nossas diversões findam. Nossos atores
Como já disse, eram todos espíritos e
Se dissolveram no ar, em pleno ar:
E, tal a fábrica infundada desta visão,
As torres até o céu, os palácios altivos,
Os templos solenes, o próprio Globo,
E tudo que nele há, deverá dissolver-se
E, igual a esta apresentação dramática,
Sem deixar vestígios. Nós somos feitos
Da matéria dos sonhos, e nossa vida curta
É envolta com o sono. Senhor, estou agitado;
Perdoe-me a fraqueza; minha mente perturba-se,
Não se incomode com a minha enfermidade.
Se lhe agrada, recolha-se e repouse:
Pois vou dar umas voltas, até acalmar
minha mente sem sossego.

Depois que o amor de Miranda e Ferdinando restaura a 'ordem das coisas' – a amizade entre os soberanos de Milano e Napoli (a lembrar que na época era digna de comentário a 'desunião dos povos italianos', num século em que os povos europeus formavam seus “Estados-Nações”) - Próspero, tendo perdoado os inimigos de outrora, liberta Ariel e renuncia à magia. O 'canto de cisne' de Próspero (no Epílogo) pode ser o 'canto de cisne' de William Shakespeare – quem quer que ele tenha sido – pois “A Tempestade” é considerada a última peça dramática do Grande Bardo.

...or else my project fails,
Which was to please. Now I want
Spirits to enforce, art to enchant,
And my ending is despair,
Unless I be relieved by prayer,
Which pierces so that it assaults
Mercy itself and frees all faults.
As you from crimes would pardon'd be,
Let your indulgence set me free.

... ou o meu plano falha,
Que era agradar. Agora eu
Sem espíritos para dominar
E arte para encantar,
Meu fim é o desespero,
A menos que eu seja aliviado
Pelas preces que vencem
a própria compaixão e liberta
de todas as faltas.
Como seriam dos crimes perdoados,
então a vossa indulgência me liberte.

jan/fev/10